Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
QUERIA DEPOR O GOVERNO MAS A ÚNICA COISA QUE MANDEI ABAIXO FOI A MULHER DE UM TIPO QUALQUER
30 cães, 20 homens em 20 cavalos e uma raposa
e repara, eles escrevem,
tu és um palhaço para o estado, para a igreja,
estás no sonho egóico,
lê história, estuda o sistema monetário,
repara que a guerra racial já tem 23 000 anos.
bem, lembro-me de há 20 anos estar sentado com um velho alfaiate judeu,
o seu nariz à luz do candeeiro era como um canhão apontado ao inimigo; e
havia um farmacêutico italiano que vivia num apartamento caríssimo na
melhor zona da cidade; conspirámos depor
uma dinastia cambaleante, bêbedo sempre que possível,
bem lido, esfomeado, deprimido, embora, na verdade,
um belo naco de rabo tivesse resolvido o meu rancor,
mas eu não sabia isso; ouvi o meu italiano e o meu judeu
e fui por ruelas escuras a fumar cigarros cravados
e a ver as traseiras das casas a ruir em chamas
mas de algum modo falhámos: não éramos
suficientemente homens, suficientemente grandes ou pequenos,
que só queríamos falar ou estávamos apenas entediados, então a anarquia caiu por terra,
e o judeu morreu e o italiano ficou furioso porque eu fiquei
com a mulher dele quando ele foi à farmácia; ele não gostou de ter
o seu governo pessoal destituído, e ela destituiu-se com toda a facilidade
e eu tive alugma culpa: as crianças estavam a dormir no quarto ao lado;
mais tarde ganhei 200 dólares aos dados e apanhei uma camioneta para Nova Orleães,
e fiquei na esquina a ouvir a música que saía dos bares
e depois entrei nos bares
e sentei-me a pensar no judeu morto,
em como tudo o que fez foi coser botões e comversar,
e como cedeu apesar de ser mais forte que qualquer um de nós -
ele cedeu porque a bexiga não dava mais,
e talvez isso tenha salvado Wall Street e Manhattam
e a Igreja e Central Park West e Roma e a
Rive Gauche mas a mulher do farmacêutico, ela era simpática,
estava cansada de bombas debaixo da almofada e de vaiar o papa,
e tinha uma silhueta fantástica e umas pernas lindas,
mas suponho que pensava como eu: que a fraqueza não está no Governo
mas em cada um dos Homens, que os homens nunca são tão fortes como as suas ideias,
e que as ideias eram eram governos transformados em homens;
e a cena começou num sofá com um martíni entornado
e acabou no quarto: desejo, revolução,
sem nada de absurdo e as cortinas sacdiam com o vento,
sacudiam como sabres, estalavam como canhões,
e 30 cães, 20 homens em 20 cavalos perseguiam uma raposa
sob o sol através dos campos,
e eu levantei-me da cama e bocejei e cocei a barriga
e soube que cedo muito cedo teria de ficar
muito outra vez.
POEMA DE CHARLES BUKOWSKI RETIRADO DO LIVRO "OS CÃES LADRAM FACAS", EDIÇÃO ALFAGUARA, NOVEMBRO DE 2018
Charles Bukowski
uma cidade só se revela verdadeiramente depois da chuva
em passo fundo, as ruas e as avenidas se tornam outras depois de
tocadas pela água, sugerem desvios, abre-se na cidade outra cidade
outra malha de rumos, e aí não importam as direções que
tomamos - todas elas desembocam num ponto cego do mapa
a película de óleo cobrindo uma poça d' água
digo que os espelhos do mundo se sustentam no fio entre a
malignidade e um fulgor aquarelado
o arco da aliança -
miragem
rastro
(queimar pela água os véus do sem-corpo)
também as aves reaparecem depois da chuva
a praça da cuia, não há quem cruze por ela sem ter medo de
adoecer no caminho, assistindo às pombas, a plumagem num
cinza que sobe pelo pescoço em multicolor metálico
há uma catedral em frente a essa praça, e é curioso, eu a vejo
ainda como se parada no meu olhar de vinte e dois anos, ainda
deslocada nesse tempo, na época em que o sino tocava à noite,
de meia em meia hora
poucos meses depois o seu evaldo faria um abaixo-assinado
pedindo o fim das badaladas, dizia que acordava, que tinha
insônia, que outros no bairro talvez tivessem insônia
e aconteceu, os sinos pararam, uma pena: as mulheres à volta
gostavam que o som as acompanhasse nos seus gemidos de atriz,
no guinchar dos agudos, num e outro orgasmo falso
POEMA DE MAR BECKER, in «CANÇÃO DERRUÍDA», LIVRO PUBLICADO EM PORTUGAL PELA ASSÍRIO & ALVIM EM JANEIRO DE 2023
_____________________________________________________
o que eu chamo de anjos são como que
as sombras que ninguém viu mas certamente
pousaram sim nas
flores na hora em que por costume frida tomando sol no
quintal
tocou-as com
o seu pé-fantasma
para sentir o orvalho
ignorando por alguns segundos a perna
amputada
há um ano
JAMES BLAKE
COURTNEY
Muito perto de ti
Perto do teu coração
Muito perto da tua respiração
Por que ainda respiras
até que uma gota de sal
caminhe pelas linhas do teu rosto
do teu corpo
e se cale em definitivo na tua boca.
CAMELOS
Que Saara terei de atravessar
se sonho todas as noites com camelos?
Camelos de rei mago
pastando à porta da minha primeira casa,
camelos beduínos e camelos anões de Tozeur
enchendo as divisões da casa paterna.
Camelos a galope atravessando os rios
com seu caudal de areia transbordando,
riachos que agora são dunas,
pontes de sede, em fuga incessante.
Na sala, em frente da lareira
onde impera Santiago Matamouros
em seu cavalo branco rampante
espada ao alto, pisando crescentes,
bigodes e turbantes,
a minha mãe obstina-se
em montar um camelo da cor dos seus olhos.
Ao levantar-se o camelo derruba-a.
Ajudo-a a pôr-se em pé e ela pergunta-me:
Que Saara terás de atravessar
se sonhas com camelos e comigo?
POEMA DE JUAN VICENTE PIQUERAS RETIRADO DO LIVRO "INSTRUÇÕES PARA ATRAVESSAR O DESERTO - POEMAS ESCOLHIDOS",EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, FEVEREIRO DE 2019
Todo o princípio terá um fim, nem que o princípio seja infinito.
Das ruínas erguer-se-á o Belo ou o Medonho.
Quantos algarismos cabem num número? Somente aqueles que podes suportar.
Há um princípio, um meio e um fim... E o que há nos seus intervalos?
Era o seu território. Vasto como a sua imaginação. Conhecia de cor todos os caminhos, carreiros, becos e atalhos que ia descobrindo entre montes, vales, desfiladeiros, na sua jornada de pastoreio. Dava-lhes um nome como se fossem gente, como fossem da sua igualha, como se fossem o prolongamento do seu corpo, da sua mente. Partilhavam o mesmo espaço, a mesma terra, as mesmas pedras, as mesmas angústias e dúvidas, respiravam o mesmo ar. E os nomes de baptismo eram aspergidos com borrifos de água tornando-se oficiais; e a partir daquele instante os diversos caminhos, os carreiros, os becos, os atalhos, os montes e os vales que a sua vista alcançava formavam uma nova geografia, uma vida própria, saíam do limbo e do esquecimento, do anonimato e passavam a ter vida própria, a ter direito a um nome.
E os nomes dados eram extraordinários, cheios de força, «roubados» de livrinhos aos quadradinhos que herdara de seu pai que não sabia ler nem escrever, mas tinha uma paixão pelo desenho não importando o assunto que tratasse. E de seu pai herdara o fascínio da banda desenhada. Apesar de já saber ler e escrever, sentia-se mais à vontade na interpretação das linhas e das formas de onde saíam animais, casas, pessoas de todas as idades e feitios, pobres ou ricas, e conseguia perceber muito facilmente a história que o autor queria contar. E muito novo conseguiu perceber que havia histórias que desenhavam ânsias, desejos, vontades, e que era nas várias diversidades que assentava todo o edifício da humanidade, o respeito e o equilíbrio de todas as coisas que povoavam o mundo - o seu mundo - e fez um juramento, tendo como testemunhas o seu cão, o seu rebanho, as árvores, as pedras, a terra que pisava, o vento, as ervas, as flores e a água límpida que corria no riacho, do seu propósito de defender com lealdade todo o território que a sua vista conseguia abarcar.
O PASSAGEIRO DO ÚLTIMO BARCO
Transportas a espada que te matará
Pousas a cabeça nos últimos filamentos de sol
E a ceara embala a cor do oiro, e esperas mansamente
sem remorsos, sem mágoas, sem rancores
pacificada e lúcida esperando que o rio inunde
a tua alma e desague no coração
As margens brilham na tua boca antes de se fecharem
E o dique abrir-se-á e
dos teus olhos cairão as últimas águas
que te transportarão até ao jardim
onde as gaivotas cheiram a alecrim.
Procuro as letras que faltam. Julgo que caíram, ou se perderam na viagem da memória até à mão. Não as encontro. Chamo-as pelo seu nome; não respondem. Imagino-as a suspender a respiração para não denunciar o seu esconderijo. Às vezes gostam de brincar até se cansarem, e mostram-se com um brilho irónico na boca, percebendo o meu desespero.
Sem as letras não consigo acabar a palavra suspensa sobre a folha do caderno que acabará por cair de cansaço, e o seu corpo frágil e inacabado morrerá. Procuro uma palavra substituta mas também me faltam as letras.
Então fecho o caderno. Pode ser que amanhã elas me surpreendam e se mostrem com um largo sorriso cheio de ironia.
a lua pousou nos teus olhos
e da tua boca
saíram palavras
que iluminaram o caminho
no regresso a casa
MIA COUTO
Mia Couto, escritor moçambicano, foi distinguido com o Grande Prémio de Conto Branquinho da Fonseca da Associação Portuguesa de Escritores com o livro "Compêndio para desenterrar nuvens"
O Grande Prémio de Conto Branquinho da Fonseca, instituído em 2023 pela Associação Portuguesa de Escritores, e patrocinado pela Câmara Municipal de Cascais e Fundação D. Luís I, destina-se a galardoar anualmente uma obra de contos em português.~~
Nasceu na Beira, Moçambique, em 1955.
Foi jornalista e professor, e é, atualmente, biólogo e escritor. Está traduzido em diversas línguas.
Entre outros prémios e distinções (de que se destaca a nomeação, por um júri criado para o efeito pela Feira Internacional do Livro do Zimbabwe, de Terra Sonâmbula como um dos doze melhores livros africanos do século XX), foi galardoado, pelo conjunto da sua já vasta obra, com o Prémio Vergílio Ferreira 1999 e com o Prémio União Latina de Literaturas Românicas 2007. Ainda em 2007 Mia foi distinguido com o Prémio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura pelo seu romance O Outro Pé da Sereia.
Jesusalém foi considerado um dos 20 livros de ficção mais importantes da «rentrée» literária francesa por um júri da estação radiofónica France Culture e da revista Télérama.
Em 2011 venceu o Prémio Eduardo Lourenço, que se destina a premiar o forte contributo de Mia Couto para o desenvolvimento da língua portuguesa.
Em 2013 foi galardoado com o Prémio Camões e com o prémio norte-americano Neustadt.
Em 2020 foi galardoado com o Prémio Jan Michalski de Literatura, atribuído anualmente pela Fundação suíça Jan Michalski, tem o valor monetário de 50.000 francos suíços e inclui também uma escultura em madeira do artista nigeriano Alimi Adewale, e distingue a trilogia As Areias do Imperador, publicada em Portugal pela Editorial Caminho em 2015-2018
FONTE: EDITORIAL CAMINHO, WOOK
A minha verdade é a minha verdade. Diferente da tua que dizes ser a verdadeira.
Cada um tem a sua verdade que está de acordo com as suas convicções, as suas certezas, as suas crenças, os seus códigos morais e éticos, a sua greografia emocional e de nascimento, o que viu e assimilou dos escritos, das conversas, dos mundos que pisou, as rupturas e a solidificação do pensamento que assenta sobre pilares que sustentam e suportam a sua personalidade, o seu carácter.
A minha verdade pode ser diferente da tua, apesar de acreditarmos nas mesmas coisas, mas que são vistas com o meu olhar, o meu coração, o meu corpo. É na diferença e no confronto das ideias que a verdade se mostra e se impõe: diferente das pretensas verdades que são ditas em função das circunstâncias e dos momentos, e que depois se atropelam porque caminham em sentidos opostos. Por que a verdade só tem um sentido e não cabem duas verdades no mesmo espaço ao mesmo tempo.
E uma mentira mil vezes repetida passa a ser verdadeira?
Uma mentira mil vezes repetida continua a ser uma mentira.