VASCO GRAÇA MOURA
"Antes de mais eu queria agradecer este convite para vir a Santa Maria da Feira e ainda agradecer, pela sua presença aqui, ao José Saramago com quem, desde há muitos anos, tenho uma excelente relação de amizade e de grande admiração pela sua obra. Acontece que no meu curriculum isso está exarado, uma vez que fui Presidente do Júri que,em '86, atribuiu o Prémio D. Dinis a O Ano da Morte de Ricardo Reis, antes, portanto, do Prémio Nobel. E, singularmente, tanto O Ano da Morte de Ricardo Reis como um outro livro que José Saramago publicou mais tarde, e de que eu, devo dizer incidentalmente, gosto menos,Jangada de Pedra, consistem de algum modo em meditações sobre a Europa. A Europa dos anos trinta, no caso de "Ricardo Reis", portanto a Europa das inquiteções que se desenhavam e acumulavam no horizonte europeu a partir de '36; a Europa da adesão de Portugal e Espanha à CEE, no caso da "Jangada". Esta Europa foi objecto de uma meditação sob forma, digamos, de parábola literária por parte de José Saramago. Por sinal na Jangada de Pedra, trata-se de uma parábola extremamente clara da concepção que o José Saramago fazia, e faz ainda hoje, de um papel histórico para Portugal e para Espanha como ponte priveligiada situada no Atlântico, algures entre o Brasil e África; concepção que eu respeito, não correspode à minha, mas que é, sem dúvida, importante e tanto mais
importante o é quando se trata de obras excelentemente bem escritas e coroadas, no seu conjunto, por um prémio da envergadura do Prémio Nobel.
Devo também dizer que comungo de algumas perplexidades, provavelmente não com o mesmo fundamento ideológico, que foram expressas por José Saramago. Sou profundamente céptico, por exemplo, quanto à veleidade federadora da Europa, tal como parece estar a desenhar-se no quadro da Convenção. Sou profundamente céptico quanto à maneira como certas ópticas de Bruxelas encaram uma série de problemas sectoriais e gerais da Europa. E penso, sobretudo, que a Europa existe, que é um continente com um conteúdo e que tem uma série de traços específicos, muitos dos quais, de resto, exportou para fora das suas fronteiras, mas penso também que há uma coisa que falta para que possamos falar de uma verdadeira cidadania europeia. Não é apenas uma maior transparência, uma mais cuidada e completa informação dos cidadãos sobre o que se passa nos centros de decisão das instituições europeias; a questão é que não temos uma relação afectiva com a Europa. Podemos ter uma excelente relação intelectual, podemos problematizar, construir, desenvolver, tecer todas as considerações que quisermos sobre a Europa, a História da Europa, a Geografia da Europa, o papel da Europa no mundo, mas falta-nos aquilo que nos une à nossa terra, que une aos que são daqui a Santa Maria da Feira, aos que são do Porto à cidade do Porto, aos que são portugueses a Portugal, aos que são espanhóis a Espanha, aos que são italianos a Itália, falta essa componente afectiva que faz com que, por exemplo, um americano quando fala em the nation, a nação, ponha a mão no peito e se sinta norteamericano. Nós, nesse sentido, ainda não nos sentimos europeus, e vai certamente faltar bastante tempo para que consigamos (o que não quer dizer que vamos desistir). Posto isto, queria abordar o tema que me foi proposto: "Dante ou Shakespeare, qual o poeta desta hora absurda?". E, de algum modo, temos de considerar que há uma matriz europeia que permite pegar em dois autores tão diferentes como Dante ou Shakespeare e tentar, a partir deles, encontrar uma resposta a esta questão. Eu devo dizer que prefiro transformar este díptico, Dante ou Shakespeare, num tríptico, e acrescentar um terceiro nome que é o de Balzac, porque penso que ele abre algumas pistas importantes para a questão. E, por isso, vou utilizar partes de um ensaio que tenho andado a escrever, de que farei uma síntese, que é mais ambicioso, digamos assim, mas que nalguns aspectos é mais do que um título, prenuncia, de algum modo, quanto a esses autores aquilo que no século XX já veio a chamar-se o teatro do absurdo, ou seja, uma certa consciência do absurdo, na sua forma de espectáculo, ou, pelo menos, de encenação.
Penso que Dante, Shakespeare e Balzac são os três maiores autores da literatura ocidental, depois de Homero. O José Saramago ainda não chegou à canonização post mortem, portanto não tem que figurar nesse panteão, e digo isto com muito boas razões: um dos maiores críticos americanos - agora permitam-me um parêntesis - Harold Bloom que, de resto, fez há tempos uma conferência sobre José Saramago, em Lisboa, acaba de publicar um livro chamado Genius (génio), em que procura percorrer a obra de uma série de génios, para ele praticamente todos europeus, e ligados àquilo que ele considera ser o cânone ocidental; ora bem, na introdução ele diz: "Só falo dos mortos e não falo de Saramago porque ele ainda não morreu", o que é, portanto, um bom álibi para mim, por referir Dante, Shakespeare e Balzac como os três maiores autores da literatura ocidental, depois de Homero, e que são, também em minha opinião, os que mais profundamente compreenderam e organizaram na sua obra o espectáculo da condição humana no confronto violento dos seus comportamentos, dos sentimentos e dos conflitos com as normas supostamente aplicáveis e os chamados códigos de comportamento corrente.
Cada um à sua maneira, não apenas pela via do teatro, porque só Shakespeare é que no fundo cultivou o teatro, eles dramatizaram, no caso de Dante, o percurso do ser humano pela via da regeneração estra-terrena, o chamado status animarum post mortem, o estado das almas depois da morte; no caso de Shakespeare, a paixão amorosa e a paixão política e o seu terrível efeito nos protagonistas, no caso de Balzac, o papel do dinheiro, do interesse económico e do individualismo egoísta como mola real das sociedades modernas. São três vias do espectáculo no sentido globalizador. Provavelmente são, para a nossa civilização europeia, no plano da criação literária, as três matrizes principais dela, para além das múltiplas metáforas que o termo espectáculo proporciona.
São três vias do espectáculo, mas que também podemos considerar aproximadas de uma noção de absurdo, embora sejam diferentes os termos em que essa noção se põe em cada um dos casos considerados, como também será diferente a nossa própria procura de sentido a empreender na leitura de cada um deles. No caso de Dante, por exemplo, o absurdo, para ele, só poderia estar correlacionado com a transgressão dos códigos de Deus. Não há absurdo gratuito nem as suas descrições do inferno se pretendem absurdas, o inferno dele é uma consequência absolutamente lógica daquela transgressão dos códigos de Deus e, por sua vez, é uma consequência simbolicamente ilustrada em cada um dos horrores e abjecções que nos descreve como correlativos dos vícios e das degradações da vida terrena.
Para a mentalidade religiosa medieval, o inferno, enquanto ausência de Deus, tinha de ser uma presença, era um vazio que tinha de ser um "cheio" (cheio de casos exemplares de expiação e lamento). Talvez por isso pudéssemos dizer que, nesse sentido, o absurdo não tem lugar na catedral minuciosamente agenciada que é a Divina Comédia, uma vez que nela o horror, sendo uma forma de castigo, é ainda uma forma de sentido. Mas é claro que hoje, numa sociedade laica que há muito perdeu a força no senti´do escatológico, tal como ele era vivido no tempo de Dante, a maior parte dos casos do labirinto dantesco surge-nos como outras tantas figurações do absurdo que tendemos a aproximar, por exemplo, do impacto visual da pintura de um Jeronimus Bosch, produzida dois séculos mais tarde, em relação à qual perdemos uma chave de leitura coerente, talvez por ser uma chave iniciática que nunca chegou a ser bem explicitada. Há quem sustente que aqueles horrores, aquelas figuras monstruosas do Bosch, eram pintados com vista à contemplação por parte dos iniciados de uma seiat existente nos Países Baixos a que ele pertenceria e, portanto, seria uma meditação que no fundo faria sentido a partir da contemplação do absurdo.
Mas para lermos Dante correctamente, não podemos esquecer que nele o verdadeiro espectáculo está ligado ao cenário cósmico supremo e a um Deus feito de luz, espectáculo total e totalizante, em que todo o universo se subsume e que não exclui a inúmera série de espectáculos menores que nos é dado presenciar, muito em especial no Inferno e no Purgatório, e que nesse pulular concreto, nesse fervilhar vivencial, tornam o texto repassado de humanidade e realismo, do vício à regeneração e do castigo à recompensa. À sua maneira, Dante cria a obra de arte total, a que os alemães do fim do século XIX chamavam Gesamtkunstwerk, e convoca todos os saberes, todas as instâncias da criação cultural, todas as tradições cultas, todos os mitos, todos os seres, todas as paisagens, todas as invenções linguísticas e todas as experiências. Parte do labirinto das abjecções para a rarefação etérea da pureza, parte do espectáculo aviltante do pecado para a cena sublime e inatingível de Deus. Mas ele assume tudo isso na sua própria personalidade. Escreve o guião, faz a encenação, faz o ensaio, faz as marcações, puxa a cortina, apupa, aplude, pune, salva, o que torna o espectáculo ainda mais intrinsecamente complicado e, talvez, mais absurdo. Um homem arroga-se o lugar de Deus, de uma espécie de lugar-tenente e de intérprete autorizado de Deus, e fala em nome dele. A sua comédia polariza-se entre o absurdo de Deus e a prerrogativa de quem, assim como quem dele usurpa o lugar, contra todas as ortoxodias, fabrica uma diva, a Beatriz, para, na luz de Deus, só contemplar uma bem-aventurança e, como nas grandes feéries dos espectáculos humanos, conclui sobre os focos das girândolas da luz da metafísica e das gambiarras divinas. E também duplica os jogos dos actores. De algum modo, Dante está para Deus como Beatriz está para a vergine madre, a virgem mãe, filha do seu filho, e como Adão e Eva evocam ser o primeiro homem e a primeira mulher, emblemáticos progenitores de todos os espectáculos e de todos os absurdos, que hão-de reconduzir sempre à vertigem do logos divino e do seu sentido, pelo menos no que deles nos é dado entrever como ultimo fim do ser humano.
Muito diferente é Sakespeare. Ele problematiza de outra maneira os conflitos, os vícios e as paixões do mundo. Conhece, imagina e encena a disputa do poder e a violência amorosa, o desastre e a guerra, a verdade e a mentira, a intriga e o crime. Mostra a História e as histórias como espectáculo permanentemente nosso contemporâneo, entrecruza o destino com as molas reais do comportamento dos homens e disso se faz o trágico inevitável e irreversível do seu e do nosso teatro. Diz Harold Bloom, de quem já falei, que Shakespeare é quem conhece melhor a nossa natureza porque foi ele quem os inventou. Será de acrescentar que nos inventou como bodes expiatórios e sem outra saída, ou seja, cada um só lhe interessa como bode expiatório verídico da tragédia. Nele o ser humano só existe à luz insidiosa da traição ou para ser traído. Pode haver fontes conhecidas de muitas das suas peças, nomeadamente das históricas,mas não há precedentes consistentes nem do Hamlet, nem do Rei Lear, nem de Macbeth, nem de Otelo, antes dessas peças serem escritas. E Shakespeare não conhece Deus. Ele cria as suas criaturas, cria a sua medida e desmedida do humano, do humano sacrificado ao altar da fatalidade irreversível, não por uma evolução de razões de predestinação, não por um destino fixado nos astros, uma rejeição do livre arbítrio que, para o mundo religioso da época, era conferido ao homem por Deus, mas porque o crer das suas personagens acaba por ser um crer confinado a si mesmo, à luz de um mal sem alternativa. Todos os homens são maus e reinam na sua maldade, diz-se num dos sonetos, de um mal que é tão natural, como é natural a humana desumanidade nos conflitos a que conduz. Mesmo através das hesitações de Hamlet, em que afinal é meramente ilusório o esboçar das possibilidades de escolha.
Só o maneirismo shakespeareano poderia tornar possíveis todas as violências, todas as dilacerações, todas as interrogações e todas as ferocidades à escala de um palco de instabilidade e de almas estruturadas. Em Shakespeare todo o mundo é um palco, all the world is a stage, não um curso alu.cinado de sombras e de sonhos como em Calderón, mas sim um entrechocar pungente de seres vivos a culminar na tragédia e na solidão de que os restantes humanos, os que sobreviveram, apanham os restos e os cacos, para deles formarem uma imagem do mundo e de si mesmos. Por isso, o absurdo do Shakespeare nos toca pelo seu teor de crua deumanidade. Por isso, também, surge numa altura em que o individualismo renascentista da confiança do homem já está em decadência, já está em crise. É uma confiança que já está a ser triturada por um feroz mecanicismo do Estado absoluto que se vai impondo cada vez mais. Na obra de Shakespeare, Deus como sentir supremo do universo jã não se encontra aos comandos. O absurdo shakespeareano tem a ver com a trágica falta de sentido da sociedade humana, prolongando mais violenta e radicalmente os tópicos renascentistas da "nave dos loucos", do "mundo às avessas", dos disparates e do "desconserto do mundo", que também foram tema para o nosso Camões. O homem deixa de compreeder o seu destino e tende a ser apresentado como joguete de forças e de catástrofes que não controla. O nosso poeta nacional também o intuiu e apresentou uma saída que para ele acabaria por corresponder à formulação de uma hipótese de sentido metafisicamente alicerçada. Há um soneto em que o Camões descreve uma série de problemas para os quais não encontra solução e termina dizendo: "Mas o melhor de tudo é crer em Cristo".
Quanto a Balzac, ele escreve numa sociedade aparentemente mais demesticada no tocante à violência física e sangrenta nua e crua, mas compreende todos os mecanismos da paixão, do poder e do funcionamento do dinheiro, da estruturação social em função dele, da sujeição dos comportementos e dos sentimentos à sua força, da violência social e moral que ele pode acrretar.
O seu espectáculo, a "comédie humaine", já não "a comédia divina", vive dessa encenação de aristocratas e plebeus, de banqueiros e de políticos, de magistrados e de comerciantes, de aventureiros e de arrivistas, de rurais e citadinos, de herdeiras e de cortesãs, cujos nós seriam urdidos pelo seu conterrâneo Joseph Fouché, o chefe da polícia, a orientar-se friamente por um Nasdaq avant la lettre, tudo reconduzido a uma ordem cujas leis implacáveis relevam o poder económico e os ditames da burguesia instalada. O espectáculo está mais próximo de nós e poe em cena toda a sociedade. Marx valorizava-o nas suas análises, porque Balzac tinha compreendido essa específica actuação entre a ficção e a realidade.
À sua maneira, Balzac é ainda shakespeareano, descontados o sangue derramado e a brutalidade dos meios de liquidação das personagens. E domestica o romantismo dos impulsos, a dominar o século XIX, que por alguma razão fez leituras próprias de Dante e Shakespeare, várias vezes no tablado da ópera e no teclado das escalas, no ritmo e na orquestração das emções. A tudo isso, Balzac substitui, no seu universo, as noções de processo judicial, de mecanismos de crédito, de especulação, de ganho e de falência, de crimes de colarinhos brancos e de crime tout court, as ambições e as frustrações, as regras sombrias de uma entidade difusa - o Estado - e de um demónio omnipresente - o dinheiro - , as manhas e expedientes de cada um, que funcionam em vez das vias do pecado, da perdição e da expiação de que fala Dante, e em vez dos punhais sub-reptícios e dos venenos isabelinos apresentados em Stratford-on-Avon.
Se quisermos referi-lo a Dante, em Balzac o inferno chama-se falência, o purgatório chama-se carreira, o paraíso chama-se sucesso. O espectáculo, com ele, transfere-se definitivamente para a ordem do imanente. Com Dante, somos uma nostalgia do divino; com Shkespeare, somos um arrepio catártico ante a ferocidade do mundo; com Balzac tornamo-nos todos participantes do grande espectáculo da sociedade moderna. Correspondentemente, a noção de sentido foi mudando e a de absurdo também. O século XIX português fez nele uma primeira incursão com o Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, embora orientada para o absurdo da decadência nacional. Mas também o nosso século XIX revisita rapidamente o mundo às avessas, dando-nos a faceta de um Faustino Xavier de Novais; os defuntos a tremer, / com desejo de aquecer, / buscam serviços activos: / vão à caça, pescam, dançam, / e quando lassos descansan, / rezam por alma dos vivos.
Para a hora de hoje, para esta hora absurda, e já que não falamos em Kafka, qual dos autores referidos poderá ilustrá-la melhor? Se formos por essa via, tenho para mim que qualquer um deles nos oferece textos que podemos ler como parábolas a tal respeito. Só que provavelmente elas ficam todas aquém da realidade. Assim como George Steiner observa que os horrores de Dante não são nada comparados com os dos campos de concentração nazis, também podemos dizer que os de Shakespeare, no esbracejar impotente de cada personagem condenada na sua individualidade única, não são nada ao pé das purgas, torturas e genocídios provocados por totalitarismos e fundamentalismos de vária ordem ao longo do século XX, e ainda que os de Balzac não ultrapassam a infância da arte, no confronto com a selva que é hoje a vida financeira internacional e a desmultiplicada hipocrisia do poder.
Poderes absurdos, portanto, que não estão quantitativamente à medida dos que conhecemos em tempos muito mais próximos de nós, mas que dão bem a medida da aspiração da alma humana a um sentido da harmonia e da felicidade, nas expressões mais genialmente artísticas que lhe couberam e que, por isso mesmo, comportam, de algum modo, uma hipótese de redenção se neles procurarmos um sentido".
Intervenção de Vasco Graça Moura no Simpósio sete sóis sete luas realizado no ano de 2002 em Santa Maria da Feira no Auditório da Biblioteca Municipal e subordinado ao tema "A Europa na Geografia da História". Participaram, além de Vasco Graça Moura, José Saramago, Antonio di pietro e Carlos Magno como moderador.