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EM LOUVOR DO TEMPO
Às vezes talvez uma simples dor no dedo mínimo de um pé ou o brilho nos olhos de uma mulher
que passa e passa decididamente decerto para sempre e sinto ser possivelmente essa mão
inconfundível devido a uma determinada pressão no ombro desde sempre esperada
sim talvez essa dor ou esse brilho ou esse brilho e essa dor simultaneamente
distraem-me do vento que roda lá fora que roda loucamente lá fora que roda como se rodar fosse para ele uma verdadeira maneira de ser que roda envergando todas as suas vestes de inúmeras peças tufadas compridas e transparentes
e ascende das areias invariavelmente passivas da praia humilde feminina sensível às constantes embaixadas envolventes do mar até às pedras altas do velho forte altas e altivas no cimo dasua altura e da sua idade
na forma de um vulto esguio redondo e rodopiante de pinheiro ou simples ampulheta ou clepsidra
O vento a essas horas incertas perdidas da noite quando a obscuridade desde há tanto que mais parece desde sempre cobriu com o seu manto todas as coisas designadamente os compridos corpos humanos
e abafou os miúdos inumeráveis ruídos que costumam acompanhar a luminosidade cega do dia
entoa então por vezes nas árvores e nas casas e em coisas como os arames e as mais variadas saliências da terra
o seu canto levíssemo levitante vagamente triste cortante mais cortante mesmo
que a faca cujo gume acaba de sair das múltiplas mãos dos móveis amoladores
um canto que faz lembrar o uivo de certos animais feridos talvez na raiz da sua sensibilidade
ou a súbita irrupção dos primeiros violinos numa sala abafada pelo
veludo das cadeiras ou as peles das senhoras da alta sociedade
um canto próprio inconfundível decerto inolvidável para quem uma noite o ouviu
dificilmente dicionarizável porque a essas horas os académicos dormem
sonhando talvez com o discurso de ingresso de um novo membro na academia
e o vento é de uma sociabilidade altamente duvidosa e canta canta nas dobras da noite
Eu estou deitado e então sinto a ponta das pés nos lençóis recém-mudados
sinto como mais uma parte do meu corpo os próprios lençóis
e imediatamente faço calar o coro que na rádio canta o messias de haendel
e abre assim um espaço que não é o do meu quarto mas sim o da catedral
de toledo aconchegada na penumbra de certas tardes dos fins de maio
O vento vem na sua suavíssima voz e toda a gente morre de súbito para mim
os cuidados deitados talvez comigo desaparecem inspiro profundamente
e sinto-me tão bem que até me parece penoso dizer que me sinto tão bem
não vá eu deixar porventura de me sentir assim tão bem não vá o vento calar-se
Deve haver algures no meu corpo um lugar expressamente reservado para a voz do vento
uma cavidade qualquer assim como as salas dos aeroportos destinadas às pessoas muito importantes
mas esta minha só para o vento a única pessoa muito importante agora para mim
As ramadas das árvores agora sim agora devem viver
agora devem manifestar vivamente que vivem
haverá talhadas luminosas e brancas na crista das inúmeras ondas do mar da baía
e eu oiço completamente o vento e ouvir o vento é suficiente para me sentir vivo
para sentir as amplas asas da paz abertas no peito no leve leque das suas penas
Desvaneceram-se decididamente na vasta sede da noite
as rápidas mulheres munidas de imensos pés que sem reserva amei
jamais imprimi palavra alguam nas páginas brancas do papel tão brancas e sucessivas como dias
não tenho passado nem coisas quaisquer a fazer acabo até agora mesmo de nascer
Neste momento sou apenas sou pelo menos desde os pés da cama até aqui à cabeceira a voz vasta do vento
e a minha cama range como quando pomos os pés nesses velhos sobrados onde se deixa grelando a batata entre
cresce o ritmo da minha respiração o pulso bate-me cada vez mais apressadamente
volto-me vagamente vagarosamente mais ou menos lá para donde pressinto que o vento vem
é possível que morra de um momento para o outro quando menos espere
e a cabeça me fique a baloiçar ao vento de um lado para o outro primeiro
de parede para parede do quarto depois lá fora entre leste e oeste
Há um vento impetuosamente solto na noite da minha vida um vento
mais louco do que mulheres esbeltas e lentas nos seus longos cabelos
e sinto que as pontas dos pés me chegam mais longe cada vez mais longe
e não leio na agenda nenhumas horas marcadas nem sei de locais de encontro o leve sabor amargo
não necessito tomar o metro pedir gim tónico que vá bebendo gole
a gole no bar desertió pensando talvez que ali esteve um dia hemingway esperando talvez como eu
saboreando o leve sabor amargo do gim desfazendo o limão vendo as cortinas esvoaçar ao vnto
O vento vibra na sus voz de vento alarga aos quatro cantos
aos inumeráveis recantoa da noite as espirais translúcidas do seu vulto
infunde uma vida irritante saltitante e irrequieta em coisas
como latas amolgadas e enferrujadas precisamente nas partes amolgadas
como madeiras apodrecidas pelo salitre e pela chuva como portinholas desengonçadas
o vento sopra na areia enverga as vestes cheias de folhos e dobras
da areia possivelmente para ter um mínimo de corpo e tornar-se visível
e bailar rodopiando no largo à volta do vulto do cruzeiro
e caminhar caminhar cada vez mais caminhar cada vez a passos mais largos
e proceder à sistemática ocupação dos mais recônditos recantos da terra
Vejo vislumbro através da janela levemente entreaberta
que o vento circula a muitos quilómetros por hora na estreita estrada
que o vento enche preenche o espaço arenoso indeciso e nublado entre estas poucas casas sonâmbulas
que passa a mão inquieta de muitos dedos abertos e dispersos e diluídos
primeiro aqui pela aldeia depois possivelmente por toda a terra
e não tardará talvez a elevar vales a aplanar muitos dos montes
num trabalho perseverante e esgotante e esgotante que são joão baptista e cristo
aliás ocupados com outras coisas se devem ter visto imporentes para levar a cabo
E eu aqui sem nenhuma memória abandonado até por estas paredes ainda há pouco à minha volta
apenas dispondo deste resto de corpo onde o vento pode à vontade
vibrar quanto quiser até quando quiser e assim vibrando
demonstrar que existe que vive e dizer eu sou o vento e nasci em tantos
do tal em tal sítio e a sua afirmação valer como um bilhete de identidade
Creio que morreria se não pressentisse não sei bem como
mas através de um latejo levemente diferente do coração
que o vento já tão irrequieto esta noite ficaria talvez triste
por ver desaparecer não um dos poucos amigos e admiradores veneradores
atentos e obrigados que talvez sinceramente tenha
não um espectador interessado do longo e variado festival que nestes momentos apresenta
mas uma coisa mais um obstáculo mais a demolir e a vencer
Tenho oito cadeiras trabalhosamente entrelaçadas no distante vime da juventude
quando pelas tardes de calma e calor me banhava na vala junto ao moinho
e os vimes os mais ginasticados emissários da vegetação das margens
cortavam em tiras a sombra que poisava ao de leve na água
tenho essas oito cadeiras disponho-as em fila com a seca solenidade de um cerimonial
e rígido e digno na minha estatura liberta enfim das volumosas volutas de barbitúricos
aguardo cheio de calma que o vento se sente multiplicadamente nas oito cadeiras que tenho
na casa caída e térrea que tenho na vida minuciosa e diária que tenho
Talvez o vento levante a voz aumente ainda mais de volume
convoque ventos de outros espaços e sopre na força irresistível da tempestade
e venha violentamente até mim e varra da minha casa
e varra da minha vida tudo absolutamente tudo o que não seja o vento
e sejam talvez coisas planas e chatas e domésticas e imensamente
miúdas e não disponham desta voz côncava do vento
Há nuvens negras que se deslocam apressadamente para o sul
há filas de canas que oscilam e fazem ao vento a elegante reverência da vassalagem
ou pelo menos da boa educação tudo se anima vibra soa na noite
O vento vai vencendo obstáculos dispõe cada vez de maior espaço
anexa pela violência territórios que ainda há pouconnlhe opunham certa resistência
ensaia agora agora a sua vastíssima valsa na ampla sala da noite
canta uiva produz esse inimitável som impossível de procurar nas páinas dos dicionários
afina a voz para as mais agudas notas do seu canto dilacerador e íntimo
Virá o dia muitos corpos afastarão finalmente da fronte os últmos véus do sono
muitos olhos procurarão a luz sentirei mais minhas as pontas dos pés
o canto quezilento e quebradiço dos pássaros no pátio nas árvores nos beirais
disputrá o lugar à voz do vento nos meus ouvidos
Voltarão primeiro um por um depois em bandos os cuidados
as pontas dos cabelos compridos de mulheres jovens entrar-me-ão para a boca
mas é provável é mesmo muito provável que algures nalguma parte profunda e perdida do meu corpo
continur vazia arejada e arrumada com o pó limpo uma sala
exclusivamente reservada à única pessoa verdadeiramente importante
até que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe
talvez de um secundaríssemo instrumento na complexa e simples orquestra do vento
POEMA DE RUY BELO QUE INTEGRA "TODA A TERRA", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, FEVEREIRO 2003, E PREFÁCIO DE LUÍS ADRIANO CARLOS
UM ROSTO NO NATAL
Caiu sobre o país uma cortina de silêncio
a voz distingue o homem mas há homens que
não querem que os demais se elevem sobre os animais
e o que aos outros falta têm eles a mais
No dia de natal eu caminhava
e vi que em certo rosto havia a paz que não havia
era na multidão o rosto da justiça
um rosto que chegava até junto de mim da nicarágua
um rosto que me vinha de qualquer das indochinas
num mundo onde o homem é um lobo para o homem
e o brilho dos olhos o embacia a água
Caminhava no dia de natal
e entre muitos ombros eu pensava
em quanto homem morreu por um deus que nasceu
A minha oração fora a leitura do jornal
e por ele soubera que o deus que cria
consentia em seu dia o terramoto de manágua
e que sobre os escombros inda havia
as ornamentações da quadra do natal
Olhava aquele rosto e nesse rosto via
a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados
e os pés gretados de homens humilhados
de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés
ao longo de desertos descampados
Morrera nesse rosto toda uma cidade
talvez pra que às mulheres de ministros e banqueiros
se permita exercitar melhor a caridade
A aparente paz que nesse rosto havia
como que prometia a paz na indochina a paz na alma
Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-de erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei nais uma vez aquele rosto era natal
é certo que o silêncio entristecia
mas não fazia mal pensei pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia
Poema de Ruy Belo, in "País Possível"
PEREGRINO E HÓSPEDE SOBRE A TERRA
Meu único país é sempre onde estou bem
é onde pago o bem com sofrimento
é onde num momento tudo tenho
O meu país agora são os mesmos campos verdes
que no outono vi tristes e desolados
e onde nem me pedem passaporte
pois neles nasci e morro a cada instante
que a paz não é palavra para mim
O malmequer a erva e o pessegueiro em flor
asseguram o mínimo de dor indispensávl
a quem na felicidade que tivesse
veria uma reforma e um insulto
A vida recomeça e o sol brilha
a tudo isto chamam primavera
mas nada disto cabe numa só palavra
abstracta quando tudo é tão concreto e vário
O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
pois eu nunca estou bem aonde estou
nem mesmo estou sequer aonde estou
Eu não sou muito grande nasci numa aldeia
mas o país que tinha já de si pequeno
fizeram-no pequeno para mim
os donos das pessoas e das terras
os vendilhões das almas no templo do mundo
Sou donde estou e só sou português
por ter em portugal olhado a luz pela primeira vez
POEMA DE RUY BELO in «Transporte no Tempo»
FALA DE UM HOMEM AFOGADO AO LARGO
DA SENHORA DA GUIA NO DIA 31 DE AGOSTO DE 1971
A mim morto no mar entre algas e corais
que notícias me dais aí da superfície
dessa única terra onde vivi
e foi minha ambição morrer pra nunca mais?
Ainda cheira a esteva por aí?
Que mundo de repente recupera
quem ao abrir um dado dicionário sente o cheiro
do jornal infantil folheado em criança
no pavimento térreo dessa adega
onde o verão intenso nem entrava
mas intensificava mesmo a humidade?
Ainda porventura a alguém
se lhe molham os olhos ao lembrar
quem à vontade meninice fora assim corria
como quem aí tem aquela única casa
afinal sua toda a sua longa vida?
Ao menos uma folha se moveu quando morri
à vista desse cerro aonde o vento dependura cantos
nas mais instáveis copas dos pinheiros
onde a névoa se adensa e cobre aquele castelo
ali erguido para humanizar o mar
e até perpetuar esse quebrar das ondas
contra esses rochedos um recurso secular
que a terra utilizou para se opor à sedução da água
instável envolvente e incapaz de conseguir a paz
como o chão que na pedra tem a máxima fixação?
Alguém notou acaso a minha falta
para além dum visível ponto de referência
um aceno do sono ou som do sino
gesto de mão sorriso silhueta?
Sentiram-se levados a exaltar-me
os que na destruição me vislumbravam
uma certa razão das suas vidas?
Alguém me aquecerá o coração ao fogo
quando o frio do fundo e das correntes
fender as minhas vísceras dispersas
por estes cinco mares onde espalho
a morte merecida pela minha condição de peixe?
Se alguém descer até estas profundidades
porventura será capaz de decifrar
o mistério reflectido nestes olhos
eternamente abertos sobre o meu amado mundo?
Alguém foi como eu profundamente vil
e muito mais o foi por conhecer que o era?
Onde dormem agora os que eu amei?
Como lhes foi possível perecer
se eu por os amar os tinha por eternos?
Seriam só eternos para mim?
Que paz lhes pesa agora sobre o peito?
O sol ainda nasce? Ouve subitamente alguma música
quem tão perdido estava que de súbito começa
e olha para tudo com os olhos limpos
de quem as coisas vê pela primeira vez?
Quem lá na minha aldeia sacrifica hoje
o porco semanal em troca dum grunhido
desfeito contra os montes circundantes?
Morto o miguel ainda fica a faca?
Ainda pelas ruas ao domingo
se tem de procurar não pôr os pés nos bêbados prostrados
convencidos talvez de vir a ter em tão precária posição
mera antecipação da humana condição definitiva
alguma solução para a sua indigna sujeição?
Ainda vem à quarta de almoster o ferrador
ferrar machos cavalos na barraca de madeira
erguida ali à beira do caminho
que me levava a casa e devolvia à vida?
Porventura o barbeiro ainda se chama marcelino?
Compram cada semana os seus trabalhadores
reunidos na praça após matar o bicho
os senhores dos pauis e vinhas e courelas?
Festeja-se na adega o termo da colheita
dessa azeitona vorazmente varejada da oliveira
sobre o espesso pano de serapilheira?
Alguém caiu de cima de uma árvore
por causa da geada de janeiro
e até da aguardente ingerida em jejum
em todos estes anos desde a morte do bizarro?
A cheia traz o s+avel pela primavera?
Há bailes na ribeira a dois quilómetros
passado o pinheiro manso pelo carnaval?
Como se chama agora a dona da farmácia?
Há fogueiras em junho onde debaixo de aparente devoção
se exalta a vida e normaliza a natureza?
Os noivos vão casar-se de carroça
e abrem de abalada as mãos cheias de confeitos sobre as testas dos miúdos
que se juntam à espera para os ver passar
e não sabem ainda como é triste a alegria?
A quem pertencem hoje as lavegadas
onde as mulheres mondavam as searas
e as folhas arrancavam às videiras
que vedavam às uvas o acesso ao sol?
Nestas núpcias eternas com a água
sobre sinos e ventos sibilantes
não se ouvirá soar a monocórdica
e harmónica música daquelas campainhas
das máquinas registadoras dessa lojas
desse porto e da vila onde dormi
os últimos dez anos de visitas começadas
num verão lembro-me bem num dia três de agosto
dentro da composição número mil e oito da cp
(alguém de letra irregular o deixou escrito num romance
comprado na estação do entrocamento
e por mim esquecido ao chegar a são bento)?
Existirá ainda o escuro casarão até talvez capaz de atenuar
a música do sino que ritmava a vida
nessa vila pequena aonde o homem
mais de frente enfrentava o frio olhar da morte?
Que é feito da pensão perto dos estaleiros
onde eu bebia com os pescadores e carpinteiros
e que deixei de vez para ir ao encontro
da musa mais discreta e silenciosa dos meus versos?
E eu que nos lençóis via a neve polar
que às vezes ao cheirá-los me sentia transportado
subitamente a sítios e a dias do passado
que só os soube na verdade apreciar
levado pela mão de camilo pessanha e dylan thomas
eu que em lençóis de linho ambicionava repousar
são de água os meus lençóis e à volta é o mar
Se me via cingido de cidade
se nem já mesmo o sol deixava entrar em casa
sem antes ele limpar os dois sapatos ao entrar
devo afinal a gestos artificiais
o meu regresso às coisas naturais
Não pense quem vier que estou sozinho
entre inúmeros peixes das profundidades
e os corpos de incontáveis pescadores
como o jovem lourenço são miguel
que aqui se despediu dessa vida de aí
a cinco salvo erro de janeiro de sessenta e cinco
Não reparam que olho com os olhos cheios de água
quem só mais do que eu pertence ao mar
por aqui habitar só aparentemente antes?
Moradores da terra fogo ou ar
sabei que o solo sólido da terra foi apenas para mim
insegurança oscilação vertigem
e que em verdade agora mais do que acabar
o que fiz foi voltar à minha origem
POEMA DE RUY BELO IN "TODA A TERRA" E RETIRADO DA COLECTÂNEA "TODOS OS POEMAS", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM REIMPRESSO EM JANEIRO DE 2020
UMA VEZ QUE JÁ TUDO SE PERDEU
Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhuma ocasião vale o temor
Ergue a cabeça dignamente irmão
falo-te em nome seja de quem for
No princípio de tudo o coração
como o fogo alastrava em redor
Uma nuvem qualquer toldou então
céus de canção promessa e amor
Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
lembro-te apenas o que te esqueceu
Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
uma vez que já tudo se perdeu
Poema de Ruy Belo in "Homem de Palavra[s]", pág. 312 da colectânea "Todos os Poemas", edição Assírio & Alvim de Abril de 2014 (4.ª Edição)
HOMEM PERTO DO CHÃO
Na primavera quando as tardes se arredondam
e já nas praias nascem as primeiras ondas
e volta sobre o mar a ave solitária
o homem enche de ar o peito vespertino
arranca o corpo à chuva e às nuvens do inverno
e chega a ter desejos de ficar
Mas em que rosto isento de contradição
há-de ele peregrino erguer a tenda?
Não abrem na cidade à sua frente as ruas
caminha ante deus como se visse
esse deus invisível
Florescem quando passa contraditórios clarins
cantando cada um sua ideia diversa
nenhuma o levará à pátria que procura
Tenham outros tambores ele tem
a pesada cabeça entre as mãos caída
Ele que desça ao fundo de todos os olhos
que nos trazem a alma à flor da pele
também não serão lá o coração ou a infância
Quando a tarde morrer ou o outono vier
do seu olhar é que as aves todas partirão
Aí temos um homem perto como nunca nem ninguém do chão
POEMA DE RUY BELO in " AQUELE GRANDE RIO EUFRATES"
A MULTIPLICAÇÃO DO CEDRO
O senhor deus é espectador desse homem
Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
nos olhos o tempo suave das árvores
Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
cada uma das quatro estações
A primavera veio e ele árvore singular
à beira do tempo plantada
vestiu-se de palavras
E foi a folha verde que deus passou
pela terra desolada e ressequida
Quando as palavras o deixaram de cobrir
ficaram-lhe dois dos olhos por onde
o senhor olha finitamente a sua obra
Até que as chuvas lhe molharam os olhos
e deles saíram rios que foram desaguar
ao grande mar do princípio
POEMA DE RUY BELO "IN AQUELE GRANDE RIO EUFRATES"
UM QUARTO AS COISAS A CABEÇA
Mesmo que fosse mais do que este quarto a minha vida
à volta da cabeça pronta a rebentar
mesmo que fossem quatro apenas as paredes
quatro paredes são de mais para uma vida
e há palavras horríveis ó meu deus sintagma da gramaticalidade
pura pura negação da vida três palavras onde
se apoia há muito o homem que afinal só fala por falar
e eu me apoio agora em holocausto ao ritmo à vibração verbal
há dizia eu palavras pavorosas que não são precisamente o adjectivo
que substituo por razões de métrica mas são palavras como
por exemplo vida e há muito haver deixado a minha infância
coisa talvez que só por havê-la deixado alguma coisa significa
e ser não já profissional qualificado mas pessoa crescida
que não leva talvez gravata mas que tem vida privada
gulosamente devassada por vizinhos companheiros de trabalho
e tem outras pessoas e tem horas e tem ruas ò meu deus
ó forma essencialmente vocativa do meu grito grande merda esta vida
Talvez haja a janela haja árvores e céu
talvez se eu caminhar ao longo do comprido corredor
que talvez una uns com os outros estes dias
talvez se houve uma entrada ao fundo haja uma saída
Hei-de passar a merda desta vida à procura de papéis?
Sempre entre mim e ao que chamam coisas há-de haver palavras
e dirão que há-de haver não só algum sentido para as coisas
mas um sentido seja ele qual for para a merda da vida
onde nasce de súbito um pequeno imenso monstro descendente de um tirano
e a mãe desse tirano descendente que podia ser tamanha como simples mãe
é mãe por profissão por pose pela posição de tão tonta cabeça
multiplicadas pelas capas das estúpidas inúmeras revistas
forma mais fugitiva de fugir à fome à alegria própria ao real
cabeça digo não apenas sem ideias mas cabeça onde já nada começa
criança que se sabe quantos quilos pesa que cor tinha
a primeira e menos metafórica das merdas que cagou
e o pai da criança que horrorosamente se apresenta como pai profissional
como marido inteirramente a par das regras da mulher
meu deus que merda metafórica esta merda desta vida
E eu ter de passar a vida à procura da chave
e procurar abrir e não saber da chave
e não existir nunca porta ou chave
e chave ser palavra ambígua ter sentido
e haver muitas palavras e muitíssimos sentidos
e a vida ser só uma e ser a vida
e haver mãos para as coisas gestos para as mãos
e não haver que porra uma saída
E esta cara esta cabeça susceptível de ser vista
e tudo quanto faço interpretado e comentado
e haver nomes e eu ser isto e não aquilo
eeu sentir-me em nomes encerrado
Quero dormir não ter esta doença de pensar
estender-me sob o céu o mais possível ao comprido
e que bastante terra cubra o meu comprido corpo
e eu seja terra apenas e a terra nada seja
Que eu durma ó meu nada e tu meu nada existas só
para na noite ouvir quem como eu é isso apenas que deseja
POEMA DE RUY BELO, RETIRADO DO LIVRO «PAÍS POSSÍVEL» - EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JANEIRO DE 2016
AH, PODER SE TU, SENDO EU!
Ei-lo que avança
de costas resguardadas pela minha esperança
Não sei quem é. Leva consigo
além de sob o braço o jornal
a sedução de ser seja quem for
aquele que não sou
E vai não sei onde
visitar não sei quem
Sinto saudades de alguém
lido ou sonhado por mim
em sítios onde não estive
Há uma parte de mim que me abandona
e me edifica nesse vulto que
cheio de ser visto por mim
é o maior acontecimento
da tarde de domingo
Ei-lo que avança e desaparece
E estou de novo comigo
sobre o asfalto onde quero estar
POEMA DE RUY BELO RETIRADO DE "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES" - EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
ODE DO HOMEM DE PÉ
Rua ferida pelo sol mais uma vez te saúdo
pelos passos lentos como o rolar dos anos
pelos dias vulgares cheios de maçãs
pela timidez que na loja nos assalta de pedir o troco
pelas crianças mal vestidas para a vida
nos bicos dos pés te saúdo
pela paixão que transferiu campaspe
do amor de alexandre então dono do mundo
para o coração de apeles pintor pobre
que tinha como dom o simples dom de olhar
por tantas coisas belas que ficaram fora dos meus versos
pelos rostos presentes pelo grande ausente por tudo
Oh como o sofrimento purifica minha rua
Ele passa-nos as mãos por todo o corpo
desce por nós como um olhar de mãe
e a mais agasalhada vida vê-se nua
Voz justificação de toda esta arquitectura que somos
chove a meu lado atrás de mim na minha frente
Eu mero obstáculo à incondicional vitória da chuva
peço o teu concurso para cantar a rua à chuva
Rua onde as casas olham quase com desgosto
aquela que a seu lado é demolida
onde eu pecador me confesso e agradeço
este milagre de estar vivo ainda na quinta-feira
passadas já segunda terça e quarta
e poder erguer as duas mãos acima da terra
rua onde passaram meus pais
onde invejei pela primeira vez o vinco das calças dos adultos
onde compartilhei com estranhos a estrela da manhã
e chorei a queda do maior amigo que não sei quem foi
rua onde tudo ganhei tudo logo perdi
onde assisti ao convívio silencioso das mais diversas árvores
e vi van gogh o holandês entre elas esperar as estações
que vinham alegres e submissas de mãos dadas com crianças
onde pensei que a dança liberta da condição de seres poisados que todos temos na vida de todos os dias
e muitas outras coisas que depois esqueci
rua que me levaste a tanto sonho vão
que me viste passar neste meu corpo sem nunca o conhecer
bem pouco basta minha rua para faze feliz o homem:
acender por exemplo repentinamente a luz
na sala onde pairava um certo mal-estar
o que dissipa como que para sempre a sua triste condição
Ou então na morte do escritor amigo recitar
o elogio fúnebre de há muito preparado
que se haverá de matar ainda mais o morto
e ele vivo terá por força de o imortalizar
Inútil inverter-te como antes rua para renovar a vida
A inquiteção que eu sentia quando me esquecia do sinal da cruz
quando de pernas excessivamente livres
cingia não de cruz mas sim de coração os inúteis caminhos
quando se me exigia o sacrifício dos olhares
e era meu dever nunca fazer ruído algum ao passar pela vida
Deixou de ser uma aventura atravessar-te rua
ao fim de ti nem mesmo há já esse equeno almoço
aonde pelo menos qualquer coisa começava
Não disponho de alento para muitos anos
Sinto-me velho nasci em 33 estamos em 60
vou fazer vinte anos. Isento do serviço militar
incapaz de lutar mandar obedecer
como que fiquei sempre à espera da maioridade
É tempo de assistir aos funerais dos amigos
começo a estar bom para jazer
«bom é acabar» - dizia o vice-rei
Já sou de deus deixei de ter idade rua
ele passou a ser a minha própria idade
não me levouu em conta o céu antecipado
e se algum dia porventura alguma criatura me moveu
o deus que é também teu há muito o esqueceu já ó rua
Se título algum tive já me vai caindo
só deus é minha veste e minha história
Que ele me abra ó rua a porta da palavra
Agora que por fim alguém em sua voz me chama
pelos rostos presentes pelo grande ausente
que me livrou num tempo de injustiça por tudo
ao fim de ti ó rua te saúdo mais uma vez te saúdo
POEMA DE RUY BELO IN "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
RUY BELO (27 DE EVEREIRO DE 1933 | 8 DE AGOSTO DE 1978)
A MULTIPLICAÇÃO DO CEDRO
O senhor deus é espectador desse homem
Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
nos olhos o tempo suave das árvores
Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
cada uma das quatro estações
A primavera veio e ele árvore singular
á beira do tempo plantada
vestiu-se de palavras
E foi a folha verde que deus passou
pela terra desolada e ressequida
Quando as palavras o deixaram de cobrir
ficaram-lhe dois dos olhos por onde
o senhor olha finitamente a sua obra
Até que as chuvas lhe molharam os olhos
e deles saíram rios que foram desaguar
ao grande mar do princípio
POEMA DE RUY BELO EXTRAÍDO DO LIVRO "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
MORTE AO MEIO-DIA
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer
POEMA DE RUY BELO EXTRAÍDO DO LIVRO «PAÍS POSSÍVEL», EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JANEIRO DE 2016
RUY BELO
ATRAVÉS DA CHUVA E DA NÉVOA
Chovia e vi-te entrar no mar
longe de aqui há muito tempo já
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Mais tarde olhei-te e nem te conhecia
Agora aqui relembro e pergunto:
Qual é a realidade de tudo isto?
Afinal onde é que as coisas continuam
e como continuam se é que continuam?
Apenas deixarei atrás de mim tubos de comprimidos
a casa povoada o nome no registo
uma menção no livro das primeiras letras?
Chovia e vi-te entrar no mar
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Que importa que algures continues?
Tudo morreu: tu eu esse tempo esse lugar
Que posso eu fazer por tudo isso agora?
Talvez dizer apenas
chovia e vi-te entrar no mar
E aceitar a irremediável morte para tudo e todos
POEMA DE RUY BELO IN «O TEMPO DAS SUAVES RAPARIGAS E OUTROS POEMAS DE AMOR», EDIÇÃO 1402, JULHO 2010, ASSÍRIO & ALVIM
A FLOR DA SOLIDÃO
Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem saber que em tudo um pouco nós morremos
Poma de Ruy Belo
ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM PÁSSAROS E ÁRVORES QUE O POETA REMATA COM UMA REFERÊNCIA AO CORAÇÃO
Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração
POEMA DE RUY BELO
RUY BELO (1933-1978)
MORTE AO MEIO-DIA
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopre e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e para trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer
POEMA DE RUY BELO
RUY BELO
ENGANOS E DESENCONTROS
Canto o homem solar que pisa a neve
A palavra confirma-se em silêncio
as metáforas sobem as metáforas descem
O homem é desejo e não trabalho
é essa mesmo uma das suas definições
Todos os paraísos se baseiam no presente
mas ao matar a morte matam o prazer
O agora do corpo une-nos à morte
O que é que eu fiz da minha juventude?
pergunta tristão uma vez findo o sortilégio
que o unia a isolda a loura e do rosto claro
Canto esse antigamente esse tempo impossível hoje para nós
quando rivalen o súbdito de marc
com o furor dos amadores da cornualha
se apaixonou por brancaflor irmã de marc
e assim deu início a um conto de amor e da morte
Isolda amou tristão com louco amor
e ouvia o seu cantar como só canta
o rouxinol quando o verão acaba
Ambos refugiados na floresta de morois
vêem chegar a estação quente uma terceira vez
tão belos e imóveis como estátuas mas
marc o ingénuo tio de tristão
em vez da realidade via as aparências e
quanta tortura amor terá causado
A única época feliz do homem terá sido o neolítico
quando o momento triunfava do futuro
Aquele que depois se dedicou a edificar a casa de amanhã
foi vítima do quadro do presente
O paraíso é de anjos e animais
articulemos nós só a palavra vida
Com a frágil felicidade sempre ameaçada
tristão despede-se da sua loura amiga
e extrai o seu prazer do esquecimento
Pesa-lhe na cabeça um pensamento
aves do bosque sede ao seu serviço
E tristão busca isolda com
a cruz no crânio dos loucos de outrora
Quando o sol se levanta traz a claridade
deixai-os ir ao fundo da loucura no
país afortunado dos viventes
Mas nunca mais na vida a voltaria a ver
Cólera de mulher é coisa de temer
e a mulher de tristão fá-lo morrer
antes que chegue o navio de isolda
Sem alteridade não há unidade
A poesia pode muito para mim
pois vem iluminar os meus fantasmas
Quando uma sociedade se corrompe
corrompe-se primeiro a linguagem
A tarde escreve uma curva suave
Vou muito simplesmente com o vento
sem sequer conhecer que fujo de mim mesmo
O trigo na campina amadurece
passeio no jardim a cena passa-se no espírito
digo-te adeus e digo adeus à minha juventude
Falo desses teus olhos matutinos
coroo-te de flores ó donzela
tão branca como a cera alta como a gazela
Tens no olhar o prestígio da guerra
voz velada de sol talvez luar
Quero um país que tenha a minha idade
Sinto ter ante mim tempos sem fim
Chego ao termo de quanto pode amar um homem
Já não há uma pátria para mim
falas e logo o tempo se detém
na fragrante fragrância do teu rosto
que luz constantemente em abundância
O murmúrio da minha indignação
por graça da beleza e juventude ignora
o impuro comércio cortesão
Morrer é uma coisa que se vê
O teu amor cresce como uma árvore
há vozes de desgosto na separação dos corpos
Eu canto aves animais herbívoros ou carnívoros
e centra-se na tarde e cerca-me completamente
este crepúsculo esta hora de poetas
A noite entra depois pelas nossas janelas
e traz consigo pitagóricos gente que vive só pelos desertos
Eu porém vivo vou de cidade em cidade
Escrever-te é a maneira de te ter presente
deste satisfação a um amigo e companheiro
pagaste a dívida de amizade e de fraternidade
Por confia em ti nada perdi
é a ti que te quero e não abraços teus
addeus mulher amada mundo meu
Eu digo eu canto e logo o mundo faz-se
ó ave vida momentânea sobre as águas
Chorar eis tudo o que por fim me é possível
antes a sepultura para mim que para ti
eu prefiro seguir-te a enterrar-te
se morres despedimo-nos da vida
pensar-te morta é morte para mim
que a dor que for me chegue sem aviso
tudo menos o meio de ficar no receio
Mas se te perco tu que és a minha esperança
qual é então a esperança que me resta?
Mais amarga a mulher que a própria morte
mais amarga que a morte é a separação
e aí tu em paris e eu em argenteuil
Louvados os caminhos da mulher
e aquele que por eles caminhar
Em mim canta por vezes abelardo
e é a mim que heloísa tenta
por vezes agradar e não a deus
Os actos de um amor que for em mim contentamento
não podem apoiar agora a penitência
Os sítios e as horas nossas testemunhas
encontram-se na minha consciência
Deus sonda os rins e o que neles se esconde
artistas da mentira e da bajulação e canto a
desolada mulher do fim do mundo mulher que
não teme o tema da prosperidade
não a venha a vaidade a visitar
A morena é do sol que nela incide mas
tu virgem loura és o lírio da montanha
Introduziu-te o rei na sua câmara
e tocou-te de estrelas de mistério
Alterno a alegria com a dor
na pureza da prece perturbada
participo da angústia e do prazer
em tanto desespero quanto aspiro
Ando em prosperidade e aflição
sou um homem de júbilo e de pena
e rio tanto mais quanto mais choro
Arrebata-me o róbur do rubor
Galateia desdenha mas espera
enjeita mas seduz ao mesmo tempo
Eu faço uso da carne e roupa branca
à minha mágoa impus um fundo freio
como de tudo o que se vende no mercado
pois é de deus a terra e quanto encerra
Quando eu despertar hei-de aflorar o vinho
não darei importância a quanto não
me preparar para a definitiva posição
Há muito desertei da minha fé
são meus amigos pecadores e publicanos
recuso aquele que sonda corações e rins
não me suja comer com as mãos por lavar
Eu suportei o dia e o calor
deixai-me ao acabar rezar completas
Pequenino e submisso como um riso
eu canto o insensível pássaro do nada os
lençóis de linho sob o cáustico cloreto as
estampas antigas onde os anjos sobem
escadas de salvação com homens pela mão
de olhos cheios de sombra e de penumbra em
casinhas térreas esmagadas pelas chuvas na
consequente conclusão do verão
Eu canto a solidão do céu só entre céu e terra
palavras pitorescas proferidas num
discurso dominado pela erudição
combinações confusas e entrecruzadas a
vermelhidão do púcaro da peste
Eu canto as rosas de trepar abertas em fevereiro a
tesoura que podava pela tarde
as casas corpos definidos sobre a terra as
luzes da ceia abertas nos casebres as
covas que o vento cava na água do mar
esse mar bravo de muitos dias de fevereiro
Já os olhos das árvores abotoam
Viajo pelo tempo até ao porto da velhice
onde poisar a pluma da penumbra
Eu canto as violetas vistas nos teus olhos
canto a cega conspiração das tuas mãos canto o
paquete que aparelha para o mar a
missa rezada em capela escusa
naquela noite confidente e cúmplice
dos olhos das mulheres ardendo como tochas
Neste verão fechado em nevoeiros
de dias devassados pelo som da ronca
eu canto a tarde posta sobre a tua testa
a ressalga do mar na minha casa
nas minhas duas mãos nas minhas lágrimas
Eu canto o teu vulto evidente nesta praia
e lá na ponta o forte dando já o corpo ao anoitecer
e sinto aqui o mar mesmo na cama
valsar a toda a volta desta tonta vida
Eu canto o pássaro que poisa já no ramo ou
uma reviravolta de quadrante
que arrasta folhas mortas no outono
e retiro a cabeça das vidraças desta vida da
terra deixada da mulher amada no
furor ambulatório dos meus passos
Durmo cego no mais secreto mar
A vida é como um manto ó agustina
e o adultério não é fácil à mulher
como o não era no século sétimo anterior a cristo
quando alguém começava a esperar pela morte
ou no século doze quando a fonte de vaucluse
corria e o verão chegava sem eu esperar
e a voz da tempestade vinha na idade
Eu canto as tardes frescas qundo nas
repartições nos não congregam os cuidados
e as longas alamedas se cumulam de flores vermelhas
e as donzelas se embrenham em silêncios tão pesados como bofetadas
Canto as rameiras que usam nos cabelos uns pentes de pedras
e se lhes vêem as saias de baixo amarelas e lilases
e há mulheres nobres de rostos com tons de um verde-maçã e violeta
sob os ramos mais baixos de sinceiros
e outras árvores de folhas amarelas e reversos brilhantes como prata
e a voz de uma ave oculta em laranjeiras
pode subitamente provocar o pranto
Canto uma flor desconhecida que abre
seu ventre mate na íntima penumbra de florestas
quando em quase toda a natureza humana
a vibração de besta substitui a alegria
e as mulheres multiplicam os cabelos
de uma cor fulva e serpenteantes
eu canto o despertar da ira como um gesto inicial
quando não descoberto o mundo apetece e
nos poemas não cabem as ffelpudas folhas das nespereiras e
se sabe esperar meses pelo resultado de uma frase dita num salão
Eu canto a crueldade generosa e o febril fogo castigador
vivos no homem que não pervertia ainda
essa paixão vencida que há por baixo da mentira
canto o cansaço de quem cai na relva e sob a gigantesca tília
jaz quando as rameiras não eram ainda
as aves proibidas que só saem ao anoitecer
e a pequena pedra sua a sua água perlada
e há no manso mar nuvens que anunciam o calor
canto aquele português que não domina ainda
a face decomposta e deformada
mas onde se reflecte a luz do sol e onde cai a chuva
e que sabe saborear amoras bravas
e os caldos de sêmola aprecia
num retiro furtivo de evasão das mundanas congregações
canto o tempo em que havia colóquios mortais
debaixo das ameixieiras rutilantes
e o pecado não era tíbio e consentido
por mulheres que viviam na intimidade da sensualidade
e amavam quer o cheiro quente de um campo lavrado
quer a emanação olorosa da fruta
que amadurecia nas salas das casas
canto a miséria franca inda sem luvas
eu canto tudo isso ou não canto realmente nada disso
Canto o tempo dos gastos com as permanentes
deslocações da corte de uma terra para outra
e os cortesãos há séculos vergados sobre o chão
rodeados talvez de espargos bravos quando
os dias se passavam em amores
e nos mais variados exercícios de armas
e uma casta esmoler aliviava os precisados
sem em troca exigir-lhes as virtudes dos vencidos
Canto o tempo de sol e as pragas de gafanhotos vindas com a chuva
quando a sensualidade corroía já esse homem altivo
por se saber prestes a morrer
quando ninguém gostava da ambiguidade fugidia e fácil
e as mulheres se mostravam já capazes
da verdadeira compreensão da sensualidade
amiúde divinizadas perlos homens para as isolarem
Canto os contemporâneos dos homens ilustres
que mais tarde falhavam outra vez
quando a felicidade era um sofrimento já passado
junto de tílias perto de alguns pássaros
que caíam cerrados como pedras
canto os poços tão fundos que segundo os velhos
se ouvia o cantar dos galos nesse dia que havia para lá do fundo
quando havia inúmeros objectos cujo uso se esqueceu
e um silêncio pouco após ameaçado levemente
pelo cantar dos galos pelas flautas dos pastores
e a penumbra não era precursora da sombra
Eu encho o peito de ar e canto tudo isso
Que alguém ampare o que for que em nós espere
que alguma coisa dure antes de ir-
-se embora ó morna urna eterna e nocturna
ávida e lêveda dúvida lívida mas tórrida
parássemos e víssemos e velhíssimos nos embrulhássemos num
sensual servil lençol sob o dossel azul e mole
A área da matéria é vária e etérea
o átrio é pétreo e vítreo
mas a larva ou a erva que sirva para que a água ferva
que a vida a não absorva nem a ponha turva
que o debate debite azeite por quem opte e lute
Contemplo por exemplo o amplo tempo
onde o tema do drama recai numa trama
e o meu acto é um tecto para um grito
que gosto de ver roto quando luto num
segundo que descendo dura menos que subindo
muito menos que amando nada se me afundo ao
relento cego sossegado branco
Não mais hei-de voltar ao estaleiro onde me despedi de solteiro
na noite solitária de mãos dadas com o vento
Foi da maré vazante a vitória precária e aparente
da terra e sua gente sobre a pátria permanente
de peixes e corais conchas e tudo o mais
Eu canto as mulheres cabelos de sargaço e áticos narizes de aço
ou rostos de marfim que me perdem a mim
e entre elas tu comprida cabeleira
tanto tempo perdido coisas sem sentido
palavras para o teu ouvido flores do teu vestido
mulher que choro agora e ausente embora é comigo que mora
causa desta tristeza que me altera a natureza
enfim coisas insignificantes que hoje valem mais que antes
E aquele pinheiro positivo e uno
oposto aos fáceis fogos vesperais
pinheiro antes de mim e digno de respeito
mais profundo que um homem e que sabe mais
alheio às manhas que por si a própria vida tem
e muito mais as tem naturalmente quem
com paixão vive a vida e a vive sem medida
e a consente em imolar ao mar
que há muito ouve insistente chamar
e é complexo como a máxima mulher
Ó mar azul meu actual paul
ó catedral de angústia ó pequena réstia
dessa feliz felicidade que sei que não há-de
haver sem eu correr o risco de a perder
ó essa voz que cresce com o dia que desce
sobre esse pinheiro manso onde ainda me condenso
e não nesta miséria que é eu ser pessoa séria
Canto a vela cheia de vento que me arranca num momento
e me faz imolar ao mar que como um deus exige a vida de homens
que lhe ouviram a voz sentiram vocação e
cedo se iniciaram nos mistérios de um supremo ser
que na água que é rapidamente a mim me lava
E canto a neve que se atreve ao que me deve
névoa vinda do sul por sobre o mar azul
luz do lápis-lazúli que se azula
e açula a rasa solidão do mar
melancólica morte dessa praia ao norte
a praia onde desmaia toda aluz que saia
do dia luminar que lá ao longe vai levar
a alegria feroz da luz veloz
deixando sobre o mundo o grito do meu luto
ebulição da vida a custo reprimida
viola violenta que a luz é que sustenta
E sonho como fausto em renovar a vida
gesta já gasta que arrasta a flor da giesta e
sustento-me de ti mesa da vida posta
luz que me aquece quando tudo me arrefece
mulher que passas pela estrada branca
da vida amena ao som da leve avena
olhos redondos olhos como abrunhos
e que vergas à luz como uma verdadeira amendoeira
e morro muito a custo após o mês de agosto
dor dolorosa minha e do meu sonho
num pensamento ermo de um enfermo
que ora aspiro a frescura perfumada de um limão
termo e habitação da terra por deus dada
ora é meu destino a dor lida no olhar do pescador
e mesmo quando durmo em dor me afirmo
O meu desporto é a versificação
e troco o próprio verão por três quatro palavras
dessas a que é alheio o coração
Um verdadeiro pescador é dias que nas redes traz
uma vida não chega pra fazer um pescador
na consciência oculta e ignorada do seu tempo
Mas tantas coisas houve que passaram para mim
essa dor onde havia íntimas mulheres
largos ao sol quadros antigos tons de luz
recantos odorosos como a adolescência
essa prega dos lábios onde nasce o riso
o limiar da dor ou os acessos ao amor
tudo isso situado nas imediações dos olhos
Canto o homem que tinha ainda alguma voz no rio
que corria veloz pra preservar a limpidez e
no rosto um resto de malícia e de melancolia
e a voz na noite tanto esmorecia
que por cima do vento mal se ouvia
e os medronhos caíam as folhas buliam
na perfídia do perigo ou na nudez da perversão
Mas nada disso havia ainda nesse tempo
além do célere corcel do tempo que corria
do dispensável excesso de experiência
convite à convicção da consciência
terrível e terrestre turbulência
Eu canto a mínima ruína de queimar os dedos o
passo tão calculado como o de uma prostituta
infiltração nas íntimas instituições
pródigos monumentos a nós próprios e
o terrível turíbulo da torpe turbulência
abundância de mãos em máximas imersas
acção dispendiosa para a paz do mundo
Quem se busca a si próprio bruscamente afasta
o manto gotejante das águas tirrenas
do peregrino pertinaz de ítaca ou da
criança apenas convencida da recente vida
sem bem conhecer afinal como conseguida
A útil única e vibrátil vida que
no ríspido rigor real ainda vibra
no quente coração dos corajosos homens
ao ritmo de uma néscia narrativa
provém dos livros desse adolescente aberto
às grandes massas do instinto e risco
dificilmente tributáveis pelo fisco
Se aos deuses nada há a acrescentar
pouco lhes há também a retirar
e muitas vezes mesmo a invejar
Conhecesse eu as ruas tão bem como a vida
recebesse no rosto o bafo azul do nevoeiro
e as amplas janelas que de par em par
deixam entrar em casa imenso o mar
jamais haviam de deixar passar
a nesga negra da profunda negação
esse orgulho do sexo que odeia o segredo
as vozes do serão no morno ar às vezes
Canto a destra desenvoltura que amestra a desventura
e o castigo que traz a paz da culpa
e os grandes gritos só devidos aos aflitos
manto de insulsa água que rodeia as árvores
e o ríspido risco assumido vivo e a
rajada de luar humilde na calçada
Envelheci talvez. Tenho coisas atrás
essa cara convulsa agora causa de rerpulsa
os sórdidos recantos desse rosto
que um intenso gosto antes tivera em contemplar
o desnível possível à cascável acessível
alguém menor que a pedra inferior à onda
mais planta do que absurdo e árvore jamais
onde desprevenida se jogava a nossa vida
sem ser-nos devolvida alguma imagem
onde minimamente esparso ardesse o remorso
Sempre fora o meu mal evitar fazer mal
Esse espectro do nosso desespero o confidente
amara apenas essa rapariga
para a emancipar do infortúnio
Aqui sobre estas águas eu suspenso deixo
a vida até qualquer outro verão
onde outra vez procure em vão o que ora procurei
Eu canto a margem terra empedernida
que exagera e se mostra enfim tão indecisa
quanto antes entre terra e água e o
vento devorador dessas nocturnas raparigas
Das amadas mulheres só me ficam
as que no casamento buscam a legalização
do ouro que a especulação assegurou aos seus antepassados
hoje tão cintilantes quão discretas antes
Viram-se homens de muitos gestos mas de poucas mãos
e viu-se o ar mandado pelo mar
atravessar as ávidas janelas
e entrar de mansinho nas primeiras casas
representantes da cidade e dos seus habitantes
de sorriso escolástico nos lábios
As ondas de tão sôfregas mordiam
pretensas pedras mas afinal terra
e contra o cais as palmas como que batiam
na tragédia que toda a festa encerra
A cidade era parda àquela hora
naquele tempo em que nascem brancas maias
e a mais bela é a cor rubro-saturno
Névoa ou mágoa de sal tudo era azul
Toda a noite eu dançava entre as fogueiras
precisava de ouvir vozes humanas
para me dissipar a solidão
e queria viver e não morrer
e via corações nos cântaros de barro
e ria e ria mais ao vê-los rebentar
a golpes de espadim entre sério e a brincar
Onde estavam agora os amigos de outrora
que comigo corriam pelas praias
e a inocente fronte só de beijos me a cobriam
no correr dos dias?
Só me quedava ver escorrer das bocas negras dos mendigos
aquela água que corre das carrancas
quando a tormenta cerra o céu dos templos
As aves são um sol branco e maior
sobre o trigo que cresce e que decresce
como o homem que nasce e nascendo envelhece
e eu passo e vou e volto e então abro
os olhos sobre o rio do balcão do paço
e há um vasto espaço nos meus olhos
E canto a alegria de volúveis bailarinos
camareiros arautos fâmulos donzéis
e sonho que não mais acabará essa alegria
As casas as fachadas tudo se reveste de veludo
e casa por ladrões rondada é casa roubada
E a resina arde em meio da multidão
que enche as ruas onde então já danço
entre o aroma ou música que areja
os quartos já fechados desde há muito
que ergue casas já há muito demolidas
e uma voz ouvida e perdida
se vê pelo presente repetida
inicial lustral como uma madrugada
Que importa que no mundo morram os ministros?
É patriótico negar a nacionalidade
aos naturais de um país vencido
que só buscou no mar razão de ser. Eu canto a
memória fugitiva como a água
que parece estender alguma mão de paz
sobre a ácida lâmina de um sabre
Gente amarela e morna amordaçada
domina esse país aonde a ironia
dissimula a impossível alegria
numa vida que vai por mim contaminada
vida do largo da areia e do vento
À minha personalidade própria de poeta
na carne cerebral de que careço
a eternidade vem-me das papoilas
desfolha-se-me a vida como as pétalas das rosas
e pensei e li mais do que vivi
E só tu sobressais entre as demais
mulher eterna com a luz na fronte
e dominante agora em todo o horizonte
Humano mesmo se demasiado humano
povoam-me cidades sossegadas
de sonhos que semeiam as semanas
onde o só silêncio é soberano
Dobra-se a brisa à mão do meio-dia
a fantasia é fértil em verdade
e do presente obscuro português
algum futuro há-de enfim nascer
Do salmo lúgubre da luz final do dia
que já há quatro séculos se entoa
hão-de rasgar a noite portuguesa
as raparigas da cidade de lisboa
E eu hei-de voar ao vento do momento
Dizias qualquer coisa? Esta manhã? Perfeitamente
Madrid, 31/V/1977
POEMA DE RUY BELO IN «O TEMPO DAS SUAVES RAPARIGAS E OUTROS POEMAS DE AMOR»
RUY BELO
TU ESTÁS AQUI
Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável e selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome domértico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas qu fiz fi-las para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir umas coisas das outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizere que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui
Poema de Ruy Belo in "O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor", edição Assírio & Alvim (1402), Julho 2010
Ruy Belo
TO HELENA
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
A maneira mais triste de se estar contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais
simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente
e mais contraditório quanto mais coerente
A vida enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lealmente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de se ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um
parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente
de tudo perdor e todos justiçar dente por dente
de tanto desisitir e de ser tão constante
de articular melhor sendo menos fluente
e fazer maior mal quando se está mais inocente
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
é para interessar-se ser indiferente
Quando helena recusa é que consente
se tão pouco perdoa é por ser indulgente
baixa os olhos se quer ser insolente
Ninguém é tão inconscientemente consciente
tão inconsequentemente consequente
Se em tantos dons abunda é por ser indigente
e só convence assim por não ser muito convincente
e melhor fundamenta o mais insubsistente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente
Poema de Ruy Belo in "O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor", edição 1402 da Assírio & Alvim, Julho de 2010
Era depois da morte herberto helder
Ia fazer três anos que morrêramos
três anos dia a dia descontados no relógio
da torre que de sombra nos cobriu a infância:
rodas no adro - gira a borboleta que se atira ao ar -
o jogo do berlinde o trinta e um pedradas
nas cebeças nos ninhos nas vidraças
Foi quando verdadeiramente começou
a conspiração dos líquenes cabelos e avencas
na mina onde molhámos nossos jovens pés
e tirámos retratos para morrer mais uma vez
Os nossos filhos - nós outra vez crianças -
comiam e gostavam das laranjas essas mesmas laranjas
que mordemos em tempos ao chegar nas férias de natal
no quintal que as máximas mãos deixaram já depois abandonado
Era a seguir à morte meu poeta
era na meninice havia festa e na sala da entrada
pensávamos na morte - nunca mais - pela primeira vez
Trincávamos cheirávamos maçãs no muro sobre a praia
roubávamos o balde ou íamos atrás do homem dos robertos
Era nas férias havia o mar e íamos à missa
ouvíamos a campainha e o padre voltava-se pra nós
- orate fratres - ou íamos ao cemitério apesar do catitinha
Era depois da morte sobre a plana infância
o primeiro natal o cheiro do jornal
lido na adega ou na casa do forno
sentados pensativos sobre a terra húmida
Era na infância o sol caía enquanto água corria
entre os pés de feijão e os buracos de toupeiras
calcados prontamente pelas botas
soprava o vento e vinha a moinha da eira
o cão comia o bolo e morria debaixo da figueira
e teria sepultura com enterro e cruz e muitas flores
Havia casamentos o meu pai falava
e os noivos deitavam-nos confeitos das carroças
E os registos mistério tempo da prenhez
Era talvez no outono havia asma
havia a festa da azeitona havia os fritos
ao domingo havia os bêbados estendidos pelas ruas
havia tanta coisa no outono havia o cristovam pavia
Era a primavera o rio rápido subia
os barcos navegavam entre a vinha
e alastrava a sombra e a tarde adensava-se
num espesso e branco nevoeiro de algodão
noite dos candeeiros sombras nas paredes
e minha mãe pegava na espingarda ia à janela
e ouvia-se o chumbo no telhado lá ao longe
O leovigildo o marcolino o sítio do miguel
a sesta a monda das mulheres
a queda do bizarro exposto na igreja
isso e o almoço a saber mal
quando vinham da escola pra saber significados
Eram as despedidas de coelhos e galinhas antes das viagens
Eram as festas era o roubo dos melões
era a menstruação oculta da criada
Era talvez em tempo de tormenta
havia ferros entre a palha por baixo da galinha
que chocava os ovos dentro de um velho cesto
eram as nossas casas em adobe
e era o carnaval os bailes os cortejos
Íamos para a praia e eu lia camilo
ouvia o mar bater sem conseguir compreender
como podia estar ali se tinha estado noutro sítio
Era o tempo dos primeiros amores
eu via o pavão adoecia e só muito mais tarde lia
o trecho que me competia entre as amadas raparigas
A casa não ficava muito longe dos montes
não havia a cidade nem os outros
punham ainda em causa o meu reino de deus
senhor de tudo o que depois não tive
Era depois da morte ou era antes da morte?
Mas haveria morte verdadeiramente?
Lia o paulo e virgínia chorava e perguntava
se tudo aquilo tinha acontecido
Era o meu pai era esse sonhador incorrigível
sem nunca mais saber que havia de fazer dos dias
Eram as folhas novas eram os perdigotos
saídos não há muito ainda da casca
Era era tanta coisa
Seria realmente após a morte de herberto helder
Poema de Ruy Belo "Homem de Palavra[s]", 1970
ATRAVÉS DA CHUVA E DA NÉVOA
Chovia e vi-te entrar no mar
longe de aqui há muito tempo já
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Mais tarde olhei-te e nem te conhecia
Agora aqui relembro e pergunto:
Qual é a realidade de tudo isto?
Afinal onde é que as coisas continuam
e como continuam se é que continuam?
Apenas deixarei atrás de mim tubos de comprimidos
a casa povoada o nome no registo
uma menção no livro das primeiras letras?
Chovia e vi-te entrar no mar
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Que importa que algures continues?
Tudo morreu: tu eu esse tempo esse lugar
Que posso eu fazer por tudo isso agora?
Talvez dizer apenas
chovia e vi-te entrar no mar
E aceitar a irremediável morte para tudo e todos
Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é trsite envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gente com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente
Poema de Ruy Belo (O problema da habitação - Alguns aspectos, 1962)
Algumas proposições com pássaros e árvores
Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração
Poema de Ruy Belo
UM DIA NÃO MUITO LONGE NÃO MUITO PERTO
Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?
In Homem de Palavra[s]