OBRA BREVE
Eduardo Lourenço, no prefácio a esta edição.
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Rosa-loura
E canta-se que um dia era a tua boca uma concha, um vidro de metal cheio de melodia e esponjas encontrado no loesse, ao lado dos detritos e do vento passado, assim uma forma de raio ou cometa, latejante no caudal do núcleo onde se abrigava o sono interminável, eu disse dessa fonte o canto, o amarelo, a cor própria de deixar as mãos ao poente enquanto partia para o teu silêncio e para a tua ausência, e eis a despedir-me à beira do sol, junto das pedras, por dentro, com uma cicatriz,
com sabor, saborosamente viajando a morte e o seu espanto, abrindo portas e janelas, numa visita ao espelho e à memória, descendo ruas, o peito ao longo das avenidas, das cidades noturnas, das navalhas cintilantes, do
revérbero das lâminas, com o pullover e a língua, Dusseldorf, Marselha, a fonte verde,
correndo,
senta-se na Índia uma e outra e outra alvéola sobre a árvore de folha perene, aos bandos, como em baixo lofíneos desenham circunferências molhadas e é pela tarde que a neblina insinua e o corpo estremece, ah os frutos maduros de
quem rasga a pele do animal ferido, recoberto de feltro, cravado de ferros junto a
loucura navegando
as águas de mágoas em
as súbitas
as margens de
o loendro
Poema de José-Alberto Marques in "Loendro", Editora Átrio, 1991
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Natural de Torres Novas, frequentou a Licenciatura em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Obrigado a abandonar os estudos por razões económicas, exerceu diversas profissões ao mesmo tempo que fazia o Curso de História. Radicado em Abrantes desde a década de 1960, foi professor efetivo de Português na Escola D. Miguel de Almeida. Das diversas atividades de intervenção cultural e artística, destaque-se participação no segundo número da revista Poesia Experimental (1966), Operação 1 (1967) e na Conferência-Objecto (Galeria Quadrante, 1967). Recebeu o 1º Prémio Nacional de Literatura Infantojuvenil nas comemorações dos 20 anos do 25 de Abril, com o livro A Magia dos Sinais (1996). Em 1996 recebeu a medalha da cidade de Abrantes. Ligada ao movimento da poesia experimental portuguesa desde as suas primeiras manifestações no final de década de 50, a obra de José-Alberto Marques alia a experimentação fonossemântica e grafossemântica com um lirismo autobiográfico e uma aguda consciência social e política. O quotidiano pessoal surge reenviado ao espaço social coletivo, e a insistente presença de um e de outro são reflexivamente interrogadas pela materialidade da língua e da escrita. Estas são, por vezes, objeto de operações de fragmentação e constelação gráfica, mas também de experimentação narrativa.
Fonte: WOOK
Os amantes imponderáveis são archotes da matéria na sua frondosa verdura
e através da distância perfumada cintilam como as constelações
Como é magnífica a ébria lucidez do esplendor
e como é alta elástica e incandescente essa torre vermelha
que os dois corpos formam numa coluna do universo!
Uma lua desdobra-se num grande leque branco
enquanto o fogo dança sob os arcos nas grutas efervescentes
As pálpebras fecham-se para ver melhor as linhas do cristal
da nudez revelada com os seus veios e anéis de mercúrio e ouro
Despenham-se um no outro como violentas dunas
e na vermelha colmeia da amante o tenso peixe explode
em constelações de pólen ou em arabescos de fogo
A doçura queima a seda porejante dos músculos repousados
e os corpos dilatam-se na tranquilidade de uma grande dália de água
Poema de António Ramos Rosa, do livro "GÉNESE", editado por Roma Editora, em Abril de 2007, com posfácio de Pascal Fleury
Acontece. E eis que, subitamente,
Tudo se esvai. Tudo quanto a esperança
Nos colocou ao alcance. Tudo...
E o murmúrio último das ondas é,
Senão o soluço do barco naufragado,
Pelo menos o seu eco. Ah! coração,
A quanto podes mais, se o teu sangue
Pára e gela de súbito. Somente
As artérias do espírito pulsam,
Na sombra que à sombra deixam
O rastro de um furtivo viajante.
Como inesperada tempestade
Vieste. Ninguém gritou.Placidamente
O barco navegava. A história
- De mim eu falo - chegava ao porto máximo. Eis
Que a confusão dispersou os acordes secretos
Do mais íntimo ser. Não há música,
Por mais doce, que atravesse
A solidão maldita do meu espírito
Petrificado, ainda de olhos fitos
Num obscuro futuro,
Que as mãos humanas abram, ergam
Ao sol dos meus mais belos dias:
Aqueles em que a morte entreabria
As portas da sobre todas inenarrável visão.
Baste-me pois a desumana
Atitude. Vendo
Qual esfinge que ao homem faz sentir
A sua imagem: intrínseco saber não revelado;
Revendo - meu nome é legião -
O mundo atravessando as ondas do tempo,
Enquanto me aqueço frio, mas atento,
Não ao passado, não ao futuro, mas
Ao presente. Nenhuma tábua,
Pois o que vive destruiu
O que era conhecido e
Tudo o que era saber. O momento
É só o que ele sabe. Nenhuma tábua
Se me agarra às mãos, nem o inimigo
Revigora aquele fervor antigo, aquele
Ódio mais feito de amor. Confundido,
Jamais porém vencido pela divina
Indiferença dos que eu mais amei.
Agora começa a jornada, e mais do que isso,
O fogo da mais sozinha angústia.
POEMA DE RUY CINATTI in "NÓS NÃO SOMOS DESTE MUNDO" QUE FAZ PARTE DA «OBRA POÉTICA» VOLUME 1, EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, OUTUBRO DE 2016, PÁGS. 130, 131.
FOZ DO TEJO, UM PAÍS
O rio não dialoga senão pela alma
de quem o olha e embebeu a sua alma
de olhares ribeirinhos no passado
ou à flor do pensamento no futuro.
É um país que fala dentro da fronte,
olhando as naus, navios, barcos pesqueiros
e o trilho das famintas aves pintoras
de riscos negros, que perseguem o odor
das redes cheias, as outrossim poéticas
familiares gaivotas. É uma costa inteira
de imagens de gaivotas dentro dos olhos.
São bocas a pensar razões da vida,
gargantas já caladas pela nascença e morte,
quando entre si se vêem ou juntas olham
o mar dos seus próprios dias. São cabeças
velhas de labutar, entre dentes cerrados,
as palavras mudas de um ofício no mar,
antigas de silêncio, como se no esófago
guardassem há muito a sabedoria de ir
enfrentar o mar, transpor o mar, estar.
Tal como um rio o mar só quer falar
pela dor e alegria de alma com que o chama,
há séculos na orla, um povo mudo,
com as palavras presas, guturais sem fôlego,
dentro de si, tão firmes no palato, artticuladas
na língua interior. E o mar é quieto ou bravo,
e a alma tensa de uma paixão secreta,
escondida atrás da boca, e sempre aberta,
tal como as pálpebras diante desta água.
Só a alma sabe falar com o mar,
depois de chamar a si o Rio, no imo
de cada um, recordações, de todos
os que cumprem na linha da costa o seu destino.
O de crianças, berços nascidos à beira-mar,
aleitadas por água marinha bebida por rebanhos,
alimentadas por frutos regados pela bruma.
Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar,
passam sem son na glotre, para nós mesmos dizermos
que o tempo já findou das caravelas outrora
e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.
Também as varinas, fenícias áfonas no poema
que as canta, sabem as formas, pelo olhar,
de serem mulheres com peixes à cabeça.
E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra
língua do mar, os nomes com que nos chamam
para o seu modo de levar entre as casas e o mar.
Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo
as de poetas, só as pancadas das palavras
no encéfalo parecem ser voz do mar.
É uma nação única de memórias do mar,
que não responde senão em nós. Glória, misérias,
que guardámos por detrás do olhar lírico
e da língua, a silabar dentro da boca.
Nunca chamámos o mar nem ele nos chama
mas está-nos no palato como estigma.
Dezembro de 1997
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão in "Obra Breve", Edição 0976, Maio 2006, Editora Assírio & Alvim, Págs. 692 e 693.
SEBASTIÃO REI
Não chegou de manto
nem com lenço e pranto
Não entrou a barra
com pendão e amarra
Não veio em ginete
com a sua gente
Não voltou da guerra
com os mortos dela
Não voltou de púrpura
com ferida ou sutura
Não voltou de coroa
nem ceptro a Lisboa
Não veio da batalha
com trajo de gala
Não trouxe burel
nem viseira e elmo
Nem trajou de estopa
nem demandou porto
Não veio doente
nem com mantimentos
Não chegou na frota
ou deu à costa
Nem alçou pendão
nem selo de mão
Nem veio às matinas
com saio de linho
Nem calçou pelica
com fivela e vira
Não voltou ao cais
nem em mês ou ano
Perdeu arraiais
e tendas de pano
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
CANTO MARÍTIMO DA RIA
De manhã o mar estende-se ao rés do Sol,
banhamo-nos para cegar de luz,
nadamos através do halo de calor.
Poder sentir a luz a escorrer junto à boca
dá-nos a humildade e a pacificação.
Um sopro mergulha no fluido da luz
de onde talvez brotou ao ser nascido,
e é a minha alma que flutua
feita de moléculas de água.
Tudo em esplendor cintila, e imagino
que quando a alma de Heitor o abandonou
foi numa manhã ao rés do mar de Tróia.
Tal como o Mediterrâneo este é um mar
parado sem o movimento, que é a onda
e o som, cingido entre os anéis de terra.
Tocou-me a água nos olhos extasiados,
seria esse o baptismo que ungiu
o meu dom das visões reais e irreais.
O mar é uma acha em brasa
que lacera uma das minhas faces,
por isso ofereci ao vento
a outra nas manhãs sombrias.
E dei o meu corpo à superfície lisa
que unia os quatro elementos,
ou seja a terra, o mar, o ar, o fogo
tal como quando os Gregos os pensavam.
Vendo as garças a voarem lentas
sobre os pequenos lagos ígneos
sei que se fossem comburentes
não vboltariam ao solo brancas e quedas,
como quando ostentam o colo
entre os juncos das margens similares,
e de súbito intuo que a Natureza
trouxe as garças para os altos juncos
e me levou a mim ao raso mar
onde o meu corpo bóia incandescente
jazendo quando dorme, ou morre, ou nasce.
A minha juventude amou a manhã
sabendo que ambas as idades são iguais,
mas o corpo arde plano na água do fogo
enquanto o Sol se queima entre a terra e o ar,
e somente os filósofos metereologistas
souberam separar os elementos juntos
na Natureza visível e invisível.
Volto a banhar-me na Ria, no silêncio,
no ardor, no sonho, na volúpia
e termino o poema com o mesmo
fogo interior sorvido pela boca
do verso inicial no pleno mar.
Não só nesta praia a saudade de Heitor
me é trazida pelo fulgor do mar
como a de um jovem morto outrora
por Valéry, pelo Sol e por Fauré.
Tantos mil anos-luz da imagem
de Heitor estão depois do seu vulto
quantos do vulto do jovem morto
mais me separa a saudade da imagem.
6/11/93
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO in «CANTOS DO CONTO» QUE INTEGRA "OBRA BREVE - POESIA REUNIDA", EDIÇÃO 0976, MAIO 2006, DA EDITORA ASSÍRIO & ALVIM
SOBRE O CAMINHO
Nada
Nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra
Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença
Não colecciones dejectos o teu destino és tu
Despe-te
não há outro caminho
POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE in "VÉSPERA DA ÁGUA", EDIÇÃO DE MARÇO DE 1979, EDITORA LIMIAR - ACTIVIDADES GRÁFICAS, LDA
Ainda esta poeira sobre o coração
queria que chovesse sobre os ulmeiros
sair limpo desses olhos
da luz que se demora a polir os seixos
A corrosiva música das vogais que te devora
o silêncio do muro
às vezes quase azul
o verão afinal onde o ar é mais duro
POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE in "LIMIAR DOS PÁSSAROS", EDIÇÃO DE NOVEMBRO DE 1978, EDITORA LIMIAR
BORRAS DE IMPÉRIO
I
Os impérios sempre se fizeram
com os que são forçados a fazê-los
e com os que ficam para ser mandados
e cuspidos pelos que querem fazê-los.
Por isso, há nos povos imperiais
algo de um visgo de alma: que ou é cuspo,
ou um prazer dolente como de escarra e cospe.
II
Há impérios que deixam no deserto ruínas de capitais pomposas.
E há os outros que se desculpam com tremores de terra
de terem passado sobre si mesmos como gafanhotos.
III
Pergunto-me a mim mesmo como foi possível:
ou os impérios o seu povo até que ele seja
uma raça agachada, mesquinha e traiçoeira,
ou é com gente dessa que os imnpérios se fazem,
já que nada glorioso se constrói humanamente
sem 10% de heróis e 90% de assassinos.
Que coisa fedorenta a glória, sobretudo
enquanto não passam séculos e só ruínas
fiquem - onde nem o pó dos mortos
ainda cheire mal.
IV
Portugal é feito dos que partem
e dos que ficam. Mas estes
numa inveja danada por aqueles terem
sido capazes de partir, imaginam-lhes a vida
a série de triunfos sonhados que eles mesmos
nas horas de descrerem da mesquinhez em que triunfam
todos os dias. E raivosamente
escondem a frustração nos clamores
da injustiça por os outros lá não estarem
(como eles estão), do mesmo passo
que se ocupam afanosamente em suprimi-los
(não vão eles ser tão tolos-
- a ponto de voltarem).
8 de Junho de 1971
(EXORCISMOS, 1972)
CÂNTICO NEGRO
«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: «vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar pos pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide, tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguérm me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!
POEMA DE JOSÉ RÉGIO
(POEMAS DE DEUS E DO DIABO, 1925)
A música era linda,
vinha do rádio, meiga, mansa,
macia como um corpo quente de mulher...
era doce, cariciosa e lânguida...
Mas eu tinha ainda nos ouvidos,
como um clamor de milhões de bocas:
«No campo de concentração hoje ocupado pelas nossas tropas
os alemães queimaram milhares de vivos num forno crematório...
Nas cubatas, os mortos misturavam-se com os moribundos...
O sargento S.S. não pôde recordar quantos homens tinha morto...
Os mortos apodrecem aos montes, e os vivos arrancam-lhes as roupas
para as fogueiras em lado se aquecem...
EM MUITOS CADÁVERES ENCONTROU-SE UM CORTE LONGITUDINAL:
ERAM OS VIVOS QUE TINHAM TIRADO AOS MORTOS O FÍGADO E OS RINS PARA COMER -
A ÚNICA CARNE QUE AINDA RESTAVA NOS CADÁVERES...»
E lembro-me de repente dum filme muito antigo
em que o criminoso perguntava:
«De quoi est fait un homme, monsieur le comissaire?»
e nos seus olhos lia-se o pavor
de quem viu um abismo e não lhe sabe o fundo...
De quoi est fait un homme? De que são feitos os homens
que queimaram vivos outros homens? que tinham centos de crianças
a morrer de fome e pavor, escravos como os pais?
que matavam ou deixavam morrer homens aos milhões,
que os faziam descer ao mais fundo da degradação,
torturados, esfomeados, feitos chaga e esqueleto?
Eram esses mesmos homens
que faziam pouco da liberdade,
que vinham salvar o mundo da desordem,
que vinham ensinar a ORDEM ao planeta!
Sim, que traziam a paz com as grades das prisões,
a ordem com as câmaras de tortura...
E depois a música vem, cariciosa e lenta,
a julgar que apaga a ignomínia que lançaram sobre a terra!
A julgar que esqueceremos a abjecção dos que sonharam
apagar da terra a insubmissão do homem livre!
Não - nem cárceres, nem deportações, nem represálias, nem torturas
acabarão jamais com a insubmissão do homem livre,
do homem livre nas cadeias, cantando nas torturas,
porque vê diante de si os irmãos que estão lutando,
que hão-de cair, para outros sempre se erguerem,
clamando em vozes sempre novas
QUE O HOMEM NÃO SE HÁ-DE SUBMETER À VIOLÊNCIA!
Homens sem partido e de todos os partidos,
que nasceram com a revolta porque não lhes vale de nada viver para serem escravos,
homens sem partido e de todos os partidos - menos todos quantos
só sabem dizer ORDEM! e reclamar VIOLÊNCIA!
os que pedem sangue porque são sanguinários, sim,
mas também todos os que nunca souberam querer nada,
os que dizem «Não é possível que se torturem os presos políticos»,
os que não podem acreditar
porque não querem ser incomodados pela pestilência dos crimes cometidos para eles
- para eles continuarem a acreditar que a ORDEM não é apenas a mordaça
sobre as bocas livres que hão-de gritar até ao fim do mundo
QUE SÓ O HOMEM LIVRE É DIGNO DE SER HOMEM!
1944 - 45
POEMA DE ADOLFO CASAIS MONTEIRO (Porto, 1908 - São Paulo, Brasil, 1972)
A ESPERANÇA DO LIVRO
Como um painel, soerguendo-se da névoa marinha, um busto vermelho, carcomido, a boca hiante, de um mistério vazio. A meus pés, um exército de formigas-negras procura, num árido frenesim, o caminho para a pedra. A orla branca de espuma, as vagas que rolam violentas, impedem o acesso do negro exército de insectos.
Quem poderá escutar da boca daquela divindade algo para além da sua nudez de morte? O seu frio eco trespassa-me de horror, a distância perdida torna-se fúnebre. As máscaras encobrem em vão o inexorável.
«Onde está a esperança?», alguém grita ou seria apenas o amplo espaço que flamejara? Era um esplendor cruel e o grito, se alguém o gritara, logo fora varrido pela força do vento. Alguém no entanto gritara: «Não feches o livro.» Respondi: «Virei todas as páginas sem encontrar a esperança.» A voz pronunciara ainda algumas palavras de um além da bruma: «A esperança é talvez o livro.»
Cansara-me de fitar a carcaça de pedra vermelha, olhos e boca abertos por onde entravam o sol e a água. A tenacidade da ruína muda aterrorizava-me. Mas além da bruma eu ouvia a voz de uma possível esperança. Era preciso atravessar a inexorável claridade e procurar na tarde a merenda que me desse o alento para prolongar o livro. As folhas escritas pesavam sobre o dorso direito; as folhas brancas curvavam o ombro esquerdo. Desejava libertar-me das primediras, como de um fardo, mas as outras, na vertigem do possível, tornam a marcha ébria, de um vagabundo prenhe do murmúrio de todas as palavras que um dia seriam o Livro, que já o eram no passo ligeiro em que caminhava através da bruma.
Poema de António Ramos Rosa in "Antologia poética", edição D. Quixote, 2001.
Prefácio, Bibliografia e Selecção de Ana Paula Coutinho Mendes
ESCREVO-TE COM O FOGO E A ÁGUA
Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.
O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensaguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.
Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.
Poema de António Ramos Rosa in "Antologia Poética" com prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, edição Publicações D. Quixote, 2001
Os ombros estremecem-me com a inesperada onda dos meus
vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti,
amanhã morrerei.
Talvez eu comece a morrer na tua mão direita,
alterosa e quente na minha mão
sufocada. Agora mesmo na europa
começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida
percorrida por um álcool penetrante, é a imediata
atenção ao misterioso trabalho da idade.
Vinte e nove anos agora, na europa, sobre os canais
sombrios da carne, sobre um vasto segredo.
Será apenas isto, um ponto móvel
da eternidade, isto - a sufocação veloz e profunda
da vida inteira na minha garganta? E depois
o acender das luzes, bruxelas como uma câmara
de archotes e ao alto as ameias
enovoadas dos astros? Devo olhar com uma grande
memória aquilo que acaba na violência triste
do poema.
Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilónia
partem rios. Por detrás das cortinas,
despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho
vinte e nove bocas urdindo
a falsa doçura da confusão. Os países constroem
a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão
pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante
a loucura masculina
da minha vida. Pensa um pouco na beleza
ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível
das pessoas ou o seu respirar
que arde e brilha e se apaga à superfície
das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso
rapidíssimo
que jamais desasparece do silêncio, na candeia
que cobre com agulhas de ouro os escombros
dos lírios. E por cima de tudo estende
a tua pequena mão eterna. Cai
tu própria na treva quente da minha
cega mão masculina de vinte
e nove
anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda
inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta
cheia de sangue actual - amanhã morrerei.
Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas
velozes, pedras que pareciam
imortais. Eram casas que se levantavam
sobre o meu coração. Vi que tomavam
animais feridos, flores imaturas, objectos
breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam
alguma coisa eterna. Era gente
de vinte e nove anos que se despedia dolorosa
pormenorizada
violentamente de uma parte da sua carne, a parte
mais iluminada da sua
carne de vintee nove anos. Amanhã
morrerei.
Poema de Herberto Helder in "Poesia Toda", Ediçao 406, em Março de 1996, Assírio & Alvim
UM ROSTO NO NATAL
Caiu sobre o país uma cortina de silêncio
a voz distingue o homem mas há homens que
não querem que os demais se elevem sobre os animais
e o que aos outros falta têm eles a mais
No dia de natal eu caminhava
e vi que em certo rosto havia a paz que não havia
era na multidão o rosto da justiça
um rosto que chegava até junto de mim da nicarágua
um rosto que me vinha de qualquer das indochinas
num mundo onde o homem é um lobo para o homem
e o brilho dos olhos o embacia a água
Caminhava no dia de natal
e entre muitos ombros eu pensava
em quanto homem morreu por um deus que nasceu
A minha oração fora a leitura do jornal
e por ele soubera que o deus que cria
consentia em seu dia o terramoto de manágua
e que sobre os escombros inda havia
as ornamentações da quadra do natal
Olhava aquele rosto e nesse rosto via
a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados
e os pés gretados de homens humilhados
de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés
ao longo de desertos descampados
Morrera nesse rosto toda uma cidade
talvez pra que às mulheres de ministros e banqueiros
se permita exercitar melhor a caridade
A aparente paz que nesse rosto havia
como que prometia a paz na indochina a paz na alma
Eu caminhava e como que dizia
àquele homem de guerra oculta pela calma:
se cais pela justiça alguém pela justiça
há-de erguer-se no sítio exacto onde caíste
e há-de levar mais longe o incontido lume
visível nesse teu olhar molhado e triste
Não temas nem sequer o não poder falar
porque fala por ti o teu olhar
Olhei nais uma vez aquele rosto era natal
é certo que o silêncio entristecia
mas não fazia mal pensei pois me bastara olhar
tal rosto para ver que alguém nascia
Poema de Ruy Belo, in "País Possível"
DA DOCE GUARDA
Vamos para essa casa iluminada
sem candeia. Às vezes, muitas vezes
cantaremos.
Será uma terra coberta de ossos
mas nunca serão nossos.
Nesse lugar alguém semeará
ervas daninhas, mas nunca
serão minhas.
Em último caso, sempre surgirá
um anjo que nos concederá uma
doce guarda - de um lado o coração
do outro, a espada. Na hora certa
ele nos entregará um cavalo e o segredo
de montá-lo.
Vamos para essa casa iluminada, sem candeia
espadeirando o escuro. Que noite prodigiosa
é o futuro.
Poema de Lídia Jorge, in "Livro das Tréguas", edição Publicações D. Quixote, 2019
A SOLIDÃO DOS HOMENS CANSADOS
A
cada dia que passa me sinto mais fatigado. Um
homem procura ternura
no seu regresso a casa (um
homem não vê o instante em que despe
o ultraje) quando
sai de pés descalços pelo soalho da tarde em
busca de um
copo de olvido. Um homem conhece a casa
pelo gato à janela -
duas pupilas acesas sentam-se
à sua mesa
sentam-se à mesa da alma. E a casa recebe o homem
com uma noite sempre nova
(um homem entrega tudo a quem o
salve do exílio)
quem lhe aplaque a solidão que existe nos
homens cansados.
Poema de João Luís Barreto Guimarães, in "O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS", Edição Quetzal, Fevereiro de 2019.
MORTE ANÓNIMA
(EM MEMÓRIA DE ROBERTO LEÃO)
De quando em quando a Morte teima em
nos surpreender. Sem grande alarido
é certo (sequer sem se anunciar) antes
súbita e precisa
lacónica
indiferente. Mas sempre ela
a Morte
(crua e definitiva) como que
querendo mostrar inexorabilidade -
nem sempre a morte imortal que coube a Pátroclo
(entregando-se em glória à
espada do divino Heitor) ou
a que colheu Heitor arrastado por Aquiles
(sequer a que teve Aquiles na
ponta da seta de Páris). Falo de
uma morte simples mais
humana
(sem história) estranho que
nos morra mais quem morre de
morte anónima.
Poema de João Luís Barreto Guimarães, in "O Tempo Avança por Sílabas" edição Quetzal, Fevereiro de 2019
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ROMANCE DE POMPEIA
Ninguém nos vem em socorro
Ninguém nos liberta os braços
Há dois milénios que somos
os amantes soterrados
Nem o mais ínfimo agouro
na manhã daquela tarde
Mas era o último encontro
sem que ninguém o sonhasse
E soubemos ir tão longe
tão enlaçados ficámos
que em tudo vibrava o sboço
de uma já eternidade
Mergulhados neste sono
há dois milénios ou quase
é ainda o dia de hoje
esse ontem tão recuado
Ou foi sonho o dia de ontem
e desde então acordados
nem cremos que à nossa roda
existisse uma cidade
que lá fora houvesse um Foro
lojas casas balneários
Apenas o teu pescoço
Apenas as tuas pálpebras
Apenas o antegosto
de sabê-las deflagradas
Sentimos súbito um sopro
mais escaldante Julgámos
que o ar se tornara louco
do calor dos nossos lábios
que ia arder o mundo todo
com o fogo que lhe dávamos
Só depois vimos que o fogo
de encontro a nós avançava
líquido espesso de rojo
como um imenso lagarto
putrefacto e cujo dorso
cada vez mais coruscava
E tanto crescia em torno
da casa onde stávamos
e tanto subia ao topo
de paredes e telhado
e tanto o ardente bojo
se ia tornando compacto
que de súbito esse forno
de todo nos apertava
Leio terror no teu rosto
pânico em tuas spáduas
pavor em todo o teu corpo
que era hápouco o de uma galga
o de uma galga no ponto
mais elevado do orgasmo
E nesse ponto de há pouco
eternizados ficámos
Somos assim um do outro
há dois milénios ou quase
saboreando o tesouro
da eternidade do auge
Ao profundíssimo poço
até hoje inviolado
que no chão se abriu e onde
vivos ainda tombámos
chegam-nos vagos rumores
do que por cima se passa
todo o sonho todo o logro
que por cima tem passado
Cascos agudos de donos
e pés desnudos de escravos
cupidez de demagogos
estupidez de soldados
os que bramam contra o lodo
para mais lodo criarem
os que rastejam no tojo
até se julgarem águias
os que ao céu o fogo roubam
mas em fumo se desfazem
utopias de alguns tontos
visões de alguns visionários
que se quebraram de encontro
ao gelo dos homens práticos
de cujos hábeis engodos
nos poderiam ter salvo
E também a luz a força
de corpos jovens e ágeis
corças panteras e potras
mais belas quanto selvagens
há lei do que há-de ser podre
todavia condenadas
Antes o fim que nos coube
Se é que fim pode chamar-se
a este abraço em que somos
um só astro uma só státua
uma só chama um só tronco
por toda a eternidade
mais livres porque um do outro
um ao outro acorrentados
Ninguém nos venha em socorro
Ninguém nos deslace os braços
POEMA DE DAVID MOURÃO-FERREIRA, in "OBRA POÉTICA" [1948-1995], EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, NOVEMBRO 2019
já não tenho tempo para ganhar o amor, a glória ou a Abissínia,
talvez me reste um tiro na cabeça,
e é tão cinematográfico e tão sem número o número dos efeitos especiais,
mas não quero complicar coisas tão simples da terra,
bom seria entrar no sono como num saco maior que o meu tamanho,
e que uns dedos inexplicáveis lhe dessem um nó rude,
e eu de dentro o não pudesse desfazer :
um saco sem qualquer explicação,
que ficasse para ali num sítio ele mesmo sítio bem amarrado
- não um destino à Rimbaud,
apenas longe, sem barras de ouro, sem amputação de pernas,
esquecido de mim mesmo num saco atado cegamente,
num recanto pela idade fora,
e lá dentro os dias eram à noite bem no fundo,
um saco sem qualquer salvação nos armazéns obscuros
POEMA DE HERBERTO HELDER in "SERVIDÕES", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, MAIO DE 2013
A CASA ILUMINADA
Olhai honestamente para o vosso passado
escondido da rua pelos arbustos
oferecendo-se aos pedaços
naquilo que o rasurado quis extirpar
nos trechos sem relação que vos assaltam no sono
no desabamento, na estranheza
outro nome possível se transcreve
a face molhada por uma chuva repentina
e o seu invencível sentido
Somos ainda os nativos, os mais remotos
Assim que chegarmos ao mar alto
e perguntarmos por que razão
seremos baixados por cordas
à casa demolida ainda iluminada
POEMA DE JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA in «Introdução à Pintura Rupestre», edição Assírio & Alvim
ENTRE OS ATOS
Espantamo-nos por encontrar o mundo na nossa memória
o mundo que se começa a ouvir no fundo da casa
o mundo que circula em nós entre os corpos deitados
no meio do terreiro da dança
nas cabanas indígenas
no assobio que os indígenas trazem amarrado ao pescoço
com uma atenção fascinada
o mundo que é um dos raros animais
que sabe descer as árvores de cabeça para baixo
Espantamo-nos por uma conivência
atestada desde há muito
nos ser entregue de chofre
cheirosa como uma floresta inteira
uma agitação de enxame
uma oficina celeste
a entrelaçar-se no sopro
fosse o que fosse
a zumbir em volta do rosto
O mundo é às um toldo que desdobramos às apalpadelas
durante o dilúvio
espantamo-nos que reproduza
na nossa cabeça o grito de uma pintura rupestre
os trilhos que ninguém me diz terem mudado de sítio
as recitações entre duas tormentas
que permitirão às fibras dessa árvore interna sobreviver
o resgate e as cores das casas
onde voltados de lado
repetidamente morremos
O mundo desencadeia-se em plena noite
organiza a vida errante
escolhe itinerários, fixa as paragensele
transforma a língua daquele que o mastiga
em corpo estranho
em fabrico inédito da sua matéria anónima
e assim nos dá a contemplar
a imagem irreconhecível
POEMA DE JOSÉ TOLENTINO DE MENDONÇA in "Introdução à Pintura Rupestre"
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PEREGRINO E HÓSPEDE SOBRE A TERRA
Meu único país é sempre onde estou bem
é onde pago o bem com sofrimento
é onde num momento tudo tenho
O meu país agora são os mesmos campos verdes
que no outono vi tristes e desolados
e onde nem me pedem passaporte
pois neles nasci e morro a cada instante
que a paz não é palavra para mim
O malmequer a erva e o pessegueiro em flor
asseguram o mínimo de dor indispensávl
a quem na felicidade que tivesse
veria uma reforma e um insulto
A vida recomeça e o sol brilha
a tudo isto chamam primavera
mas nada disto cabe numa só palavra
abstracta quando tudo é tão concreto e vário
O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
pois eu nunca estou bem aonde estou
nem mesmo estou sequer aonde estou
Eu não sou muito grande nasci numa aldeia
mas o país que tinha já de si pequeno
fizeram-no pequeno para mim
os donos das pessoas e das terras
os vendilhões das almas no templo do mundo
Sou donde estou e só sou português
por ter em portugal olhado a luz pela primeira vez
POEMA DE RUY BELO in «Transporte no Tempo»
FALA DE UM HOMEM AFOGADO AO LARGO
DA SENHORA DA GUIA NO DIA 31 DE AGOSTO DE 1971
A mim morto no mar entre algas e corais
que notícias me dais aí da superfície
dessa única terra onde vivi
e foi minha ambição morrer pra nunca mais?
Ainda cheira a esteva por aí?
Que mundo de repente recupera
quem ao abrir um dado dicionário sente o cheiro
do jornal infantil folheado em criança
no pavimento térreo dessa adega
onde o verão intenso nem entrava
mas intensificava mesmo a humidade?
Ainda porventura a alguém
se lhe molham os olhos ao lembrar
quem à vontade meninice fora assim corria
como quem aí tem aquela única casa
afinal sua toda a sua longa vida?
Ao menos uma folha se moveu quando morri
à vista desse cerro aonde o vento dependura cantos
nas mais instáveis copas dos pinheiros
onde a névoa se adensa e cobre aquele castelo
ali erguido para humanizar o mar
e até perpetuar esse quebrar das ondas
contra esses rochedos um recurso secular
que a terra utilizou para se opor à sedução da água
instável envolvente e incapaz de conseguir a paz
como o chão que na pedra tem a máxima fixação?
Alguém notou acaso a minha falta
para além dum visível ponto de referência
um aceno do sono ou som do sino
gesto de mão sorriso silhueta?
Sentiram-se levados a exaltar-me
os que na destruição me vislumbravam
uma certa razão das suas vidas?
Alguém me aquecerá o coração ao fogo
quando o frio do fundo e das correntes
fender as minhas vísceras dispersas
por estes cinco mares onde espalho
a morte merecida pela minha condição de peixe?
Se alguém descer até estas profundidades
porventura será capaz de decifrar
o mistério reflectido nestes olhos
eternamente abertos sobre o meu amado mundo?
Alguém foi como eu profundamente vil
e muito mais o foi por conhecer que o era?
Onde dormem agora os que eu amei?
Como lhes foi possível perecer
se eu por os amar os tinha por eternos?
Seriam só eternos para mim?
Que paz lhes pesa agora sobre o peito?
O sol ainda nasce? Ouve subitamente alguma música
quem tão perdido estava que de súbito começa
e olha para tudo com os olhos limpos
de quem as coisas vê pela primeira vez?
Quem lá na minha aldeia sacrifica hoje
o porco semanal em troca dum grunhido
desfeito contra os montes circundantes?
Morto o miguel ainda fica a faca?
Ainda pelas ruas ao domingo
se tem de procurar não pôr os pés nos bêbados prostrados
convencidos talvez de vir a ter em tão precária posição
mera antecipação da humana condição definitiva
alguma solução para a sua indigna sujeição?
Ainda vem à quarta de almoster o ferrador
ferrar machos cavalos na barraca de madeira
erguida ali à beira do caminho
que me levava a casa e devolvia à vida?
Porventura o barbeiro ainda se chama marcelino?
Compram cada semana os seus trabalhadores
reunidos na praça após matar o bicho
os senhores dos pauis e vinhas e courelas?
Festeja-se na adega o termo da colheita
dessa azeitona vorazmente varejada da oliveira
sobre o espesso pano de serapilheira?
Alguém caiu de cima de uma árvore
por causa da geada de janeiro
e até da aguardente ingerida em jejum
em todos estes anos desde a morte do bizarro?
A cheia traz o s+avel pela primavera?
Há bailes na ribeira a dois quilómetros
passado o pinheiro manso pelo carnaval?
Como se chama agora a dona da farmácia?
Há fogueiras em junho onde debaixo de aparente devoção
se exalta a vida e normaliza a natureza?
Os noivos vão casar-se de carroça
e abrem de abalada as mãos cheias de confeitos sobre as testas dos miúdos
que se juntam à espera para os ver passar
e não sabem ainda como é triste a alegria?
A quem pertencem hoje as lavegadas
onde as mulheres mondavam as searas
e as folhas arrancavam às videiras
que vedavam às uvas o acesso ao sol?
Nestas núpcias eternas com a água
sobre sinos e ventos sibilantes
não se ouvirá soar a monocórdica
e harmónica música daquelas campainhas
das máquinas registadoras dessa lojas
desse porto e da vila onde dormi
os últimos dez anos de visitas começadas
num verão lembro-me bem num dia três de agosto
dentro da composição número mil e oito da cp
(alguém de letra irregular o deixou escrito num romance
comprado na estação do entrocamento
e por mim esquecido ao chegar a são bento)?
Existirá ainda o escuro casarão até talvez capaz de atenuar
a música do sino que ritmava a vida
nessa vila pequena aonde o homem
mais de frente enfrentava o frio olhar da morte?
Que é feito da pensão perto dos estaleiros
onde eu bebia com os pescadores e carpinteiros
e que deixei de vez para ir ao encontro
da musa mais discreta e silenciosa dos meus versos?
E eu que nos lençóis via a neve polar
que às vezes ao cheirá-los me sentia transportado
subitamente a sítios e a dias do passado
que só os soube na verdade apreciar
levado pela mão de camilo pessanha e dylan thomas
eu que em lençóis de linho ambicionava repousar
são de água os meus lençóis e à volta é o mar
Se me via cingido de cidade
se nem já mesmo o sol deixava entrar em casa
sem antes ele limpar os dois sapatos ao entrar
devo afinal a gestos artificiais
o meu regresso às coisas naturais
Não pense quem vier que estou sozinho
entre inúmeros peixes das profundidades
e os corpos de incontáveis pescadores
como o jovem lourenço são miguel
que aqui se despediu dessa vida de aí
a cinco salvo erro de janeiro de sessenta e cinco
Não reparam que olho com os olhos cheios de água
quem só mais do que eu pertence ao mar
por aqui habitar só aparentemente antes?
Moradores da terra fogo ou ar
sabei que o solo sólido da terra foi apenas para mim
insegurança oscilação vertigem
e que em verdade agora mais do que acabar
o que fiz foi voltar à minha origem
POEMA DE RUY BELO IN "TODA A TERRA" E RETIRADO DA COLECTÂNEA "TODOS OS POEMAS", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM REIMPRESSO EM JANEIRO DE 2020
A MULTIPLICAÇÃO DO CEDRO
O senhor deus é espectador desse homem
Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
nos olhos o tempo suave das árvores
Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
cada uma das quatro estações
A primavera veio e ele árvore singular
à beira do tempo plantada
vestiu-se de palavras
E foi a folha verde que deus passou
pela terra desolada e ressequida
Quando as palavras o deixaram de cobrir
ficaram-lhe dois dos olhos por onde
o senhor olha finitamente a sua obra
Até que as chuvas lhe molharam os olhos
e deles saíram rios que foram desaguar
ao grande mar do princípio
POEMA DE RUY BELO "IN AQUELE GRANDE RIO EUFRATES"
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
POEMA DE JORGE DE SENA
põe um disco a correr. a chuva não demora
mais do que o esvaziar das nuvens se te
confessasse as coisas que já atirei ao mar
(o revólver do crime palavras numa garrafa)
não darei nome ao poema seria como quem
coloca legendas aos dias e eu: sou como
água (tomando a forma dos lugares que molha)
vou repetir (para quem só agora ligou
este poema:) no cesto de frutos da mãe
as estações do ano sucedem-se e o disco
era um disco tão antigo tão antigo que
a certa alturantigo tão antigo que a
certa alturantigo tão antigo que a certa
alturantigo tão antigo qu
POEMA DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES DE «ESTE LADO PARA CIMA», DE 1994, RETIRADO DO LIVRO «O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS» - EDIÇÃO QUETZAL, FEVEREIRO DE 2019
O TEMPO CONCRETO
O tempo duro
com estas unhas de pedra
este hálito pobre
de órgãos esfomeados
estas quatro paredes de cinza e álcool
este rio negro correndo nas noites como um esgoto
O tempo magro
em que minhas mãos divididas
nitidamente separadas e caídas
ao longo dum corpo de cansaço
pedem o precipício a hecatombe clara
o acontecimento decisivo
O tempo fecundo
dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito de febres
repassadas no travesseiro igual das noites e dos dias
das ruas agrestes e pequenas da mágoa
familiar e precisa como uma esmola certa
O tempo escuro
da peste consentida do vício proclamado
da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos
da fome concreta dum sonho proibido
e do sabor amargo dum remorso invisível
O tempo ausente
dos olhos dum desejo de claras cidades
em que acenamos perdidos às soluções erguidas
com vozes bem distintas de cadáveres opressores
com gritos sufocados de problemas supostos
O tempo presente
das circunstâncias ferozes que erguem muros reais
dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos
das anedotas contadas num outro mundo de cafés
e das vidas dos outros sempre fracassadas
O tempo dos sonhos
sem coragem para poder vivê-los
com muralhas de mortos que não querem morrer
com razões de mais para poder viver
com uma força tão grande que temos de abafar
no fragor dos versos disfarçados
O tempo implacável
em que juramos de pé viver até ao fim
maiores dos que nós ser todo o grito nu
pureza conquistada no seio da vida impura
um raio de sol de sangue na face devastada
O tempo das palavras
numa circulação sombria como um poço
de ecos incontrolados
de timbres inesperados
como moedas de sangue cunhadas numa noite
demasiado curta e com luar de mais
O tempo impessoal
em que fingimos ter um destino qualquer
para que nos conheçam os amigos forçados
para que nós próprios nos sintamos humanos
e este fardo de trevas esta dor sem limites
a possamos levar numa mala portátil
O tempo do silêncio
em que o riso postiço dos fregueses da vida
finge ignorá-lo enquanto soluçamos
de raiva de razão reprimida revolta
e os senhores de bom senso passeiam divertidos
O tempo da razão
(e não da fantasia)
em que os versos são soldados comprimidos
que guardam as armas dentro do coração
que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue
a tinta de escrever duma nova canção
poema de antónio ramos rosa
Assimilando a árvore a borboleta e os gatos
no amarelo fragrante e no silencioso redemoinho
com a saliva do calor e os escuros fragmentos
regresso à lentidão de um baile a um violoncelo
tocado por um gnomo sobre um telhado de metal
Trago uma lâmpada de orvalho para atravessar o abismo
e um pássaro adormecido sobre uma folha verde
Entre madeira e sombra, sob uma plácida lua
mobilizo os cristais nocturnos e as vespas azuis
entre as constelações que dialogam num tranquilo tremor
Sob as clavículas das árvores e copas flutuantes
enuncio a materna cascata e as metáforas que respiram
Movo a escultura do desejo na diagonal aspirada
e na fragrância do arco quando a consistência
é a bondade que flui entre os cornos da dança
Atravesso os murmúrios disfarçados ou os símbolos
que alçam as lânguidas cabeças submersas
até que os signos os alcancem e os respirem
Rio nas pausas da harmonia e no incêndio das alfombras
Escondo-me num olho e voo dentro da sombra
Nas nuvens passam touros brancos e águias verdes
Sedento movo as paredes na ternura da água
Aperto a suave madeira de um corpo e as suas cavernas vivas
enquanto deslizam as lentas estrelas sobre a água
Nos jardins minúsculos a brevidade e a delicadeza
Os conceitos suspiram entre a língua das flores
Guitarra e musgo e tempo acariciado
perpetuam o crepúsculo e a ausência de perguntas
Mulheres com sombrinhas descalças sobre a praia
o vento revolve-lhes as lâmpadas e as saias
Coloco a mão na âncora deste ritmo
O sangue penetra a garganta o sangue das flautas
e abre-se o tenaz labirinto voluptuoso
que é um orgão do sol e um violino da lua
De poro a poro, de poro a fruto, de fruto a estrela
uma água enigmática desliza entre carícias
Perpetua-se o prelúdio da metamorfose da matéria
e o corpo saboreia o horizontal relâmpago
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA
UM PONTO
Um ponto - talvez um centro
em permanência de tranquilidade
para a noite inteira. Um ponto
extremo, interno. Um pequeníssimo ponto
invulnerável
de estabilidade total
- nascido como? - fruto do espaço limpo,
de aberta aderência nua ao ar,
de contância livre, desocupada,
do descanso de ser até ao fundo simples,
de completa entrega?
Um ponto nu inabitado branco
de intocável serenidade,
fixo como um nervo e imponderável,
de fim inicial,
ponto de respiração,
clareira de estar,
abertura central viva
praia de ser e nada
- mas apenas um ponto, um puro ponto
contra a noite inteira,
contra o frio,
contra a destruição.
Ponto de união
de paz coextensa à noite,
opaco e diáfono nó
do desenlace perfeito.
Nó de água
da água mais nua.
Ninho interno do espaço.
Pequena lua essencial
num horizonte de segua paz.
Ponto, em ti descanso,
certeza do mundo e de mim
em ti, dentro da noite,
atinjo o equilíbrio actual e puro.
Ponto, antes do início,
de ti a ti, em mim,
pulsação lisa e leve,
suave motor da terra,
a pacífica respiração do oásis.
Ponto
de universo fixado
onde atingi a consistência dócil
de permanecer entrgue,
plenitude abrigada
na navegação nocturna.
Um ponto vazio,
plenamente vazio.
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA IN "ANTOLOGIA POÉTICA", EDIÇÃO PUBLICAÇÕES D. QUIXOTE, 2001, COM PREFÁCIO, BIBLIOGRAFIA E SELECÇÃO DE ANA PAULA COUTINHO MENDES
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David Mourão-Ferreira ||| 24 fevereiro 1927 - 16 junho 1996
ROMANCE DE UM FUTURO NATAL
Vai a caminho de Marte
um foguetão de turistas
Turismo pobre É um charter
de tarifa reduzida
Ou serão refugiados
Parece que vão fugidos
Quem sabe de que se escapam
Quem sabe a que vão fugindo
Consta da lista uma grávida
com ar de Madona antiga
das que inda se desenhavam
nos fins do século vinte
Chegou à pista de embarque
mesmo à hora da partida
E traz escrito na face
o lance que decidira
Não quer que o seu filho nasça
na Terra que vai perdida
Dão-lhe razão Todos sabem
que funda razão lhe assiste
Todos conhecem o estado
que a pobre Terra atingiu
sobretudo após a grave
crise do século trinta
Vão a caminho de Marte
como quem foge à desdita.
Sentem-se dentro da nave
bastante mais protegidos
É como voltar ao espaço
de antes de haverem nascido
Todos a grávida tratam
com cuidados infinitos
E sonham Talvez em Marte
nem tudo esteja perdido
Mas não sabem que na cápsula
um grupo de terroristas
vai sabotando a viagem
mudando o rumo previsto
Fica tudo executado
em pouco mais de três dias
E torna de novo a nave
quase ao ponto de partida
Quem mais se aflige é a grávida
com ar de Madona antiga
ao ver que à Terra terá de
ir entregar o seu filho
Já lhe rebentam as águas
quando se apeia na pista
Já pra dentro de uma cave
os outros a encaminham
Já por entre as dor's do parto
um facho de luz luzia
Quem sabe se necessário
não fora enfim tudo isso
para que à Terra baixasse
mais um resgate possível
Pálida pálida pálida
lívida lívida lívida
de costas a mulher grávida
já vagamente sorria
Poema de David Mourão-Ferreira, in Obra Poética (1948-1995), edição Assírio & Alvim, Novembro de 2019
EPÍSTOLA PARA UM CISNE
Cisne, que não conheces na água o teu reflexo verde
quando sob o teu corpo é dia e o sol afaga quedo
ou quando do teu porte há a sombra negra igual
e tudo o que está negro, e é noite, e abandono e medo.
Nem concebes o amor, nem Leda, nem sequer eu mesma
que te amo no poema e temo o canto imaginado
que não cantaste agora ou não ouvi, de madrugada
quando a minha mãe morta era somente insone.
Nunca viste a beleza, nem a vida e os lábios
que sopram as primeiras e últimas palavras, ou
o hálito que sai sem voz da dor mais desolada.
Nem a doença, a morte e os olhos sem imagens
do ar e das cores várias viste em que tu vogas branco.
É falso que celebres sozinho a tua morte e o fim,
se não sabes que só o teu outro cisne se perde.
Mas quando vi insone e logo morta a minha mãe
estou certa de que a cega, a muda, falsa ave cantou.
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO IN "OBRA BREVE - POESIA REUNIDA", EDIÇÃO 0976, MAIO 2006, ASSÍRIO & ALVIM
A HIPÓTESE DO CINZENTO
Num país a preto e branco
recomendaram-me o cinzento. Um recurso
extraordinário. Com a hipótese do cinzento poderia
ensaiar
soluções inusitadas -
experimentar o morno (que não é frio nem
quente)
explorar o lusco-fusco (que
não é noite nem dia) praticar a omissão
(que não é mentira
nem verdade). Preto e branco misturados permitiam
finalmente
viver em conformidade
desocupar os extremos (tão alheios à virtude)
liquefazer-me na turba
no centro na
média
dourada. Com a paleta de cinzentos poderia
aprimorara arte da sobrevivência que
(como os mansos bem sabem) é
não estar vivo
nem morto.
POEMA DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES, DO LIVRO "O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS", PÁG.136, EDIÇÃO QUETZAL, 2019
COM A DATA DE HOJE
Nas esquinas destas horas trnsitórias
de vidraças partidas e relógios parados
a surpresa segreda uma ária inocente
com um fato de ganga e as mãos maltratadas
Surda sombra de grades sobre o rosto
vem insuspeita intrometer-se ali
onde a esperança entre gritos que não soam
ígnea vem pela noite às marteladas
Árdua profunda invocação de paz
fremindo à flor das águas temerosas
lá no mais fundo onde não chegam as palavras
árdua desvenda aos homens o caminho
para onde?
POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO, DO LIVRO "POESIA COMPLETA", COLEÇÃO PLURAL, EDIÇÃO IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, JUNHO 2016
NÓMADAS
Só o amor pára o tempo (só
ele detém a voragem)
rasgámos cidades a meio
(cruzámos rios e lagos)
disponíveis para lugares com nomes
impronunciáveis. É preciso percorrer os mapas
mais ao acaso
(jamais evitar fronteiras
nunca ficar para trás)
tudo nos deve assombrar como
neve
em Abril. Só o amor pára o tempo só
nele perdura o enigma
(lançar pedras sem forma e o lago
devolver círculos).
Poema de João Luís Barreto Guimarães, do livro NÓMADA 2018, incluído na antologia O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS - Edição QUETZAL 2019
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João Luís Barreto Guimarães nasceu no Porto, a 3 de junho de 1967. Poeta e tradutor, divide o seu tempo entre Leça da Palmeira e Venade. O Tempo Avança por Sílabas reúne cem poemas selecionados pelo autor, dos dez livros que publicou até ao momento. É o seu quinto livro na Quetzal, após a publicação dos primeiros sete títulos na Poesia Reunida, em 2011, Você está Aqui, em 2013, Mediterrâneo, em 2016, ao qual foi atribuído o Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, e Nómada, em 2018. A sua obra está representada em antologias poéticas e revistas literárias de numerosos países, tendo Mediterrâneo sido publicado em espanhol.
MÁRIO DIONÍSIO ||| 1916-1993
Nos despojos da cidade
atrás dos altos prédios ao avesso
veem-se telhados chaminés
negras de fumo vê-se o ferro
em movimento das gruas
Há gente que mora aqui
pessoas cães mortos vivos
em tugúrios fedorentos
Há lama e há excrementos
junto a montões gordurosos
sobre o lixo os solavancos
de amantes abjectos copulando
Rindo e saltando sobre dejetos
aqui e ali crianças brincando
que amanhã serão ladrões
Contra um muro em ruína
a fescura de uma flor
crescendo ingénua
Quem vem ela aqui fazer
entre destroços
tão bela
A meus pés a vou pisar
por raiva ou por piedade
Esmago-a furiosamente
gesto viril e demente
para não chorar
POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO, DO LIVRO POESIA COMPLETA, PÁGINA 296, EDIÇÃO IMPRENSA NACIONAL-CASADA MOEDA, JUNHO DE 2016, COLEÇÃO PLURAL
Francisco Luís Amaro (1923-2018)
RETRATO
Um silêncio, um olhar, uma palavra:
Nasceste assim na minha vida,
Inesperada flor de aroma denso,
Tão casual e breve...
Já te visionara no meu sonho,
Imagem de segredo, esparsa ao vento
Da noite rubra, delicada, intacta.
E pressentira teu hálito na sombra
Que minhas mãos desenham, inquietas.
Existias em mim. O teu olhar
Onde cintila, pura, a madrugada,
Guardara-o no meu peito, ó invisível,
Flutuante apelo das raízes
Que teimam em prender-te, minha vida!
Poema de Francisco Luís Amaro
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Poeta português, natural de Aljustrel. Foi co-fundador e co-director da revista Árvore, publicada entre 1951 e 1952, e da qual fizeram também parte Raul de Carvalho, António Ramos Rosa e António Luís Moita. Colaborou ainda nas revistas Seara Nova, Távola Redonda, Portucale, entre várias outras. Foi secretário de redacção e, posteriormente, director-adjunto e consultor editorial da revista Colóquio/Letras. A sua poesia está inserida numa tendência que tenta conciliar a tradição herdada dos poetas presencistas com alguma da poesia neo-realista, nomeadamente a de Carlos de Oliveira. Da sua obra destacam-se os livros de poemas Dádiva (1949) e Diário Íntimo. Dádiva e outros poemas (1975).
DE ANTEMÃO
Tocaram-me na cabeça om um dedo terrificamente
doce, Sopraram-me,
Eu era límpido pela boca dentro: límpido
engolfamento,
O sorvo do coração a cara
devorada,
O sangue nos lençóis tremia aida:
Metia medo,
Se um cometa pudesse ser chamado como um animal:
ou uma braçada de perfume
tão agudo
que entrasse pela carne: se fizesse unânime
na carne
como um clarão,
Um anel vivo num dedo que vai morrer:
tocando ainda
a cabeça o rítmico pavor
do nome,
O leite circulava dentro delas,
É assim que as mães se alumiam
e trazem para si o espaço todo
como
se dançassem,
São em si mesmas uma lenta
matéria ordenada, Ou uma
crispação: uma ressaca,
E quando me tocaram na cabeça com um dedo baptismal:
eu já tinha uma ferida
um nome,
E o meu nome mantinha as coisas do mundo
todas
levantadas
Que lhe estendas os dedos aos dedos: lhe devolvas
o sangue, Como as estrelas duplas
duplamente
se dão força,
E fique assim - astro grande estanque
cosido em sangue: e a luz
obturada,
E então no seu pneuma luminoso:
um astro cheio, Coração: astéria: carne
de olaria pulsando, O espasmo
da mão às vezes
se arranca aos recessos da cabeça um relâmpago,
Ou se retira ao braço o movimento
pela musa do sexo, Ou à vertigem se retira
o rasgão do ar
na dança,
Assim a estrela com dois membros
cravados recebendo
o tremor do mundo, E toda essa
massa peristáltica esmaga
a argila táctil: um pequeno músculo
convulso no fundo de água:
um troço de sangue nas costas, Que lhe passes
pelas roupas e nudez
as tuas armas, Ou lhe ponhas no escuro
um incêndio:
e te ilumines dele, E a tua cara se faça
miraculada
à combustão, E entres rutilante por uma porta
para outra porta, Essa porta que dê
para uma porta de ti própria,
A mão ateando a escrita que se desloca
brilha direita,
Toca-te toda: tocas no chão
através dela, A terra
treme
quando lhe tocas, Tudo
se transmite e trannsforma,
A gangrena é uma força, Tu és a raiz dele,
Estás dentro
da luz de fora, Como o choque
sísmico
da estrela
POEMA DE HERBERTO HELDER in "POESIA TODA" EDIÇÃO 406, MARÇO DE 1996, ASSÍRIO & ALVIM
UM QUARTO AS COISAS A CABEÇA
Mesmo que fosse mais do que este quarto a minha vida
à volta da cabeça pronta a rebentar
mesmo que fossem quatro apenas as paredes
quatro paredes são de mais para uma vida
e há palavras horríveis ó meu deus sintagma da gramaticalidade
pura pura negação da vida três palavras onde
se apoia há muito o homem que afinal só fala por falar
e eu me apoio agora em holocausto ao ritmo à vibração verbal
há dizia eu palavras pavorosas que não são precisamente o adjectivo
que substituo por razões de métrica mas são palavras como
por exemplo vida e há muito haver deixado a minha infância
coisa talvez que só por havê-la deixado alguma coisa significa
e ser não já profissional qualificado mas pessoa crescida
que não leva talvez gravata mas que tem vida privada
gulosamente devassada por vizinhos companheiros de trabalho
e tem outras pessoas e tem horas e tem ruas ò meu deus
ó forma essencialmente vocativa do meu grito grande merda esta vida
Talvez haja a janela haja árvores e céu
talvez se eu caminhar ao longo do comprido corredor
que talvez una uns com os outros estes dias
talvez se houve uma entrada ao fundo haja uma saída
Hei-de passar a merda desta vida à procura de papéis?
Sempre entre mim e ao que chamam coisas há-de haver palavras
e dirão que há-de haver não só algum sentido para as coisas
mas um sentido seja ele qual for para a merda da vida
onde nasce de súbito um pequeno imenso monstro descendente de um tirano
e a mãe desse tirano descendente que podia ser tamanha como simples mãe
é mãe por profissão por pose pela posição de tão tonta cabeça
multiplicadas pelas capas das estúpidas inúmeras revistas
forma mais fugitiva de fugir à fome à alegria própria ao real
cabeça digo não apenas sem ideias mas cabeça onde já nada começa
criança que se sabe quantos quilos pesa que cor tinha
a primeira e menos metafórica das merdas que cagou
e o pai da criança que horrorosamente se apresenta como pai profissional
como marido inteirramente a par das regras da mulher
meu deus que merda metafórica esta merda desta vida
E eu ter de passar a vida à procura da chave
e procurar abrir e não saber da chave
e não existir nunca porta ou chave
e chave ser palavra ambígua ter sentido
e haver muitas palavras e muitíssimos sentidos
e a vida ser só uma e ser a vida
e haver mãos para as coisas gestos para as mãos
e não haver que porra uma saída
E esta cara esta cabeça susceptível de ser vista
e tudo quanto faço interpretado e comentado
e haver nomes e eu ser isto e não aquilo
eeu sentir-me em nomes encerrado
Quero dormir não ter esta doença de pensar
estender-me sob o céu o mais possível ao comprido
e que bastante terra cubra o meu comprido corpo
e eu seja terra apenas e a terra nada seja
Que eu durma ó meu nada e tu meu nada existas só
para na noite ouvir quem como eu é isso apenas que deseja
POEMA DE RUY BELO, RETIRADO DO LIVRO «PAÍS POSSÍVEL» - EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JANEIRO DE 2016
DAVID MOURÃO-FERREIRA (1927-1996)
E POR VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.
POEMA DE DAVID MOURÃO-FERREIRA IN «MATURA IDADE» - 1973
ALEXANDRE O'NEILL [1924-1986]
UM ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
POEMA DE ALEXANDRE O'NEILL in «NO REINO DA DINAMARCA» - 1958
FERNANDO LEMOS | 3 DE MAIO DE 1926
DIA DE DESCANSO
Hoje reservo o dia inteiro para chorar
É o domingo decadente em que muitos
esperam pela morte de pé
É o dia do sarro que vem à boca da medocridade
circular dos gestos que andam disfarçados de gestos
dos amores que deram em estribilhos
das correrias pederásticas para o futebol em calções
mais o melhor fato e a mesquinhez nacional dos 10%
de desconto em todo o vestuário
E choro choro porque a coragem
não me falta para tudo isto e assisto
na nega de me ceder ao braço dado
Precisarei de um cansaço mas
lá estavam espertas
as mil e não sei quantas lojas abertas
para mo vender!
Mas hoje é domingo
Lá está o chão reluzente de martírio
e nem já o sonho me dá de graça o ter por não ter
já nem o amor que suponho me dá o sonho de ser
E choro de coragem isto é
as lágrimas hão-de cair sêcas nas minhas mãos
Falo cristalinamente sózinho
procurando entre as paredes e as varandas que vão cair
algum acaso isto é
o eco, de qualquer drama vazio
Espero como quem espera
o momento de posse entre dois ponteiros
de torneira em torneira nas súplicas febris
em que me trago aquecendo as mãos nas orelhas
para as não cortar em gritos
Espero e entretanto o mundo não se cansa
de me dar drogas para dormir e criar
novelos de lã à volta do coração
Não me lastimo grito
Quero que estas correntes da boca se tornem úteis
e não ficar pr'aqui moldado estátua
em verdete de ser chorado
A tropeçar onde não há perigo
com calçado duro a pisar as nuvens
neste tão estreitado mundo
Choro hoje o dia todo e lembro-me o que disso
podem pensar os homens das ideias revolucionárias
e choro
choro de coragem e para os microfones da revolução
As lágrimas e a revolução são como a morte de cada um
Cá do meu alto não se desce por escadas mas por desalento
por amor ao chão da terra que me pisam
e choro neste dia burguês fazendo cá a minha revolução
alheia às tais guerras de papel químico
Espero sem esperança mas certo
do que espero como de saber que um homem
não chora e choro
Choro hoje porque reservei o dia inteiro para chorar
porque é domingo e o que espero não é a morte de pé
talvez a coragem de que o mundo não esteja certo
Uma vez era ainda pequeno
chorei ao ver um prédio desabitado
Moro nele mesmo aos domingos e rio-me
das revoluções que ameaçam de pôr ou tirar-me as janelas
Sei que nada adianta
Vi o prédio desabitado era eu muito pequeno
Nê-le me reservo hoje o dia todo à liberdade de me dar
ao choro da coragem de esperar
E espero porque mesmo que o mundo fique desabitado
um grito afinal terá assim o seu eco
Enquanto durar este domingo vou chorar gradualmente
até que a noite me venha
cobrir o corpo de abafo quente
Então sairei à procura da prostituta cega
para lhe contar junto ao peito
como as pessoas se comportam aos domingos
POEMA DE FERNANDO LEMOS in «Teclado Universal» - 1963
O silêncio não existe porque é o constante rumor de uma inexistência. O que se ouve, para além do movimento da cidade, é o monótono murmúrio do nada. Apenas sombra de nada, quem nele procura um apelo ou uma resposta não os encontra ou encontra um sinal negativo. Nada diz esse murmúrio nulo, que é o eco inalterável do vazio do mundo, mas quem o ouve sente a radicalidade da sua negação como se a cada momento nos dissesse: Não há.
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA IN «RELÂMPAGO DE NADA», 2004
O construtor, antes de levantar a primeira pedra do dia, contempla e considera as suas feridas que enfraquecem a vontade de construir, com a sua própria substância de cinzas e sangue petrificado, a habitação em que a fénix poderá renascer com todo o esplendor original de um astro. Nada mais lhe resta do que lançar-se a um trabalho para o qual a disposição ainda não surgiu, mas que poderá despertar os impulsos da construção solar e abrir o horizonte luminoso e tranquilo de um rio em torno da morada. A construção está envolta numa espessa bruma e não há nela sinais de figuras ou formas, porque essa névoa é o próprio nada da confusão inicial e o fim de toda a construção como possibilidade de vida e de renovo. É do obscuro fundo da retina que surge um ténue raio cintilante que penetra na massa nebulosa da construção e a faz palpitar e estremecer. O construtor poderá então discernir algumas linhas de força, algumas estruturas e bases numa crescente e sincopada clarificação. Haverá um momento em que ele sentirá que o edifício dança porque tudo se duplica e se reflecte e se anima. De algum modo, é já a fénix que resplandece no fulgor da edificação e na plenitude do ser e do olhar na sua mútua criação
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA in "O Aprendiz Secreto", 2001
AH, PODER SE TU, SENDO EU!
Ei-lo que avança
de costas resguardadas pela minha esperança
Não sei quem é. Leva consigo
além de sob o braço o jornal
a sedução de ser seja quem for
aquele que não sou
E vai não sei onde
visitar não sei quem
Sinto saudades de alguém
lido ou sonhado por mim
em sítios onde não estive
Há uma parte de mim que me abandona
e me edifica nesse vulto que
cheio de ser visto por mim
é o maior acontecimento
da tarde de domingo
Ei-lo que avança e desaparece
E estou de novo comigo
sobre o asfalto onde quero estar
POEMA DE RUY BELO RETIRADO DE "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES" - EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
EUGÉNIO DE ANDRADE | 1923-2005
ENCONTRO NO INVERNO COM ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Com as aves aprende-se a morrer.
Também o frio de janeiro
enredado nos ramos não ensina outra coisa
- dizias tu, olhando
as palmeiras correr para a luz.
Que chegava ao fim.
E com ela as palavras.
Procurei os teus olhos onde o azul
inocente se refugiara.
Na infância, o coração do linho
afastava os animais de sombra.
Amanhã já não serei eu a ver-te
subir aos choupos brancos.
O resplendor das mãos imperecível.
POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE IN "HOMENAGENS E OUTROS EPITÁFIOS".
ODE DO HOMEM DE PÉ
Rua ferida pelo sol mais uma vez te saúdo
pelos passos lentos como o rolar dos anos
pelos dias vulgares cheios de maçãs
pela timidez que na loja nos assalta de pedir o troco
pelas crianças mal vestidas para a vida
nos bicos dos pés te saúdo
pela paixão que transferiu campaspe
do amor de alexandre então dono do mundo
para o coração de apeles pintor pobre
que tinha como dom o simples dom de olhar
por tantas coisas belas que ficaram fora dos meus versos
pelos rostos presentes pelo grande ausente por tudo
Oh como o sofrimento purifica minha rua
Ele passa-nos as mãos por todo o corpo
desce por nós como um olhar de mãe
e a mais agasalhada vida vê-se nua
Voz justificação de toda esta arquitectura que somos
chove a meu lado atrás de mim na minha frente
Eu mero obstáculo à incondicional vitória da chuva
peço o teu concurso para cantar a rua à chuva
Rua onde as casas olham quase com desgosto
aquela que a seu lado é demolida
onde eu pecador me confesso e agradeço
este milagre de estar vivo ainda na quinta-feira
passadas já segunda terça e quarta
e poder erguer as duas mãos acima da terra
rua onde passaram meus pais
onde invejei pela primeira vez o vinco das calças dos adultos
onde compartilhei com estranhos a estrela da manhã
e chorei a queda do maior amigo que não sei quem foi
rua onde tudo ganhei tudo logo perdi
onde assisti ao convívio silencioso das mais diversas árvores
e vi van gogh o holandês entre elas esperar as estações
que vinham alegres e submissas de mãos dadas com crianças
onde pensei que a dança liberta da condição de seres poisados que todos temos na vida de todos os dias
e muitas outras coisas que depois esqueci
rua que me levaste a tanto sonho vão
que me viste passar neste meu corpo sem nunca o conhecer
bem pouco basta minha rua para faze feliz o homem:
acender por exemplo repentinamente a luz
na sala onde pairava um certo mal-estar
o que dissipa como que para sempre a sua triste condição
Ou então na morte do escritor amigo recitar
o elogio fúnebre de há muito preparado
que se haverá de matar ainda mais o morto
e ele vivo terá por força de o imortalizar
Inútil inverter-te como antes rua para renovar a vida
A inquiteção que eu sentia quando me esquecia do sinal da cruz
quando de pernas excessivamente livres
cingia não de cruz mas sim de coração os inúteis caminhos
quando se me exigia o sacrifício dos olhares
e era meu dever nunca fazer ruído algum ao passar pela vida
Deixou de ser uma aventura atravessar-te rua
ao fim de ti nem mesmo há já esse equeno almoço
aonde pelo menos qualquer coisa começava
Não disponho de alento para muitos anos
Sinto-me velho nasci em 33 estamos em 60
vou fazer vinte anos. Isento do serviço militar
incapaz de lutar mandar obedecer
como que fiquei sempre à espera da maioridade
É tempo de assistir aos funerais dos amigos
começo a estar bom para jazer
«bom é acabar» - dizia o vice-rei
Já sou de deus deixei de ter idade rua
ele passou a ser a minha própria idade
não me levouu em conta o céu antecipado
e se algum dia porventura alguma criatura me moveu
o deus que é também teu há muito o esqueceu já ó rua
Se título algum tive já me vai caindo
só deus é minha veste e minha história
Que ele me abra ó rua a porta da palavra
Agora que por fim alguém em sua voz me chama
pelos rostos presentes pelo grande ausente
que me livrou num tempo de injustiça por tudo
ao fim de ti ó rua te saúdo mais uma vez te saúdo
POEMA DE RUY BELO IN "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
RUY BELO (27 DE EVEREIRO DE 1933 | 8 DE AGOSTO DE 1978)
A MULTIPLICAÇÃO DO CEDRO
O senhor deus é espectador desse homem
Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
nos olhos o tempo suave das árvores
Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
cada uma das quatro estações
A primavera veio e ele árvore singular
á beira do tempo plantada
vestiu-se de palavras
E foi a folha verde que deus passou
pela terra desolada e ressequida
Quando as palavras o deixaram de cobrir
ficaram-lhe dois dos olhos por onde
o senhor olha finitamente a sua obra
Até que as chuvas lhe molharam os olhos
e deles saíram rios que foram desaguar
ao grande mar do princípio
POEMA DE RUY BELO EXTRAÍDO DO LIVRO "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
MORTE AO MEIO-DIA
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer
POEMA DE RUY BELO EXTRAÍDO DO LIVRO «PAÍS POSSÍVEL», EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JANEIRO DE 2016
O DEUS QUE É TRANSPARÊNCIA
Ninguém me saúda nas esquinas do papel.
Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.
Mas nos dedos sinto o rumor de um segredo vegetal.
É como se procurasse alargar a mão dos deuses.
É como arder com a água na brancura ofuscante
da ressaca. E as palavras da casa se levantam
a janela a porta a cama e a cadeira.
São presenças espessas e nítidas no perfil.
Assim se forma um círculo com energia erguida
nas sílabas preenchidas pela coerência do mundo.
Maternas são as sombras em torno de um centro verde
que foi talvez um deus antigo que se esqueceu
e o esquecimento é o seu signo: a transparência.
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA, in «Antologia Poética», selecção, prefácio e bibliografia de Ana Paula Coutinho Mendes, edição Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2001
UM GESTO
«Que cansativa que a polícia é!» suspirou, Matilde, fechando a janela. Depois, sorrindo do seu próprio comentário, deu dois passos no aposento e relanceou os olhos pelo espelho, que a penumbra como que apagara. Foi aí que se lembrou de uma mulher que vira três ou quatro dias antes, ao volante de um carro que parara junto ao seu, esperando que o sinal abrisse. Aproveitando aqueles breves momentos, a mulher mirara-se no retrovisor e, depois de levar um dedo aos lábios e o molhar com a língua, passara-o pelas sobrancelhas. Matilde puxou uma cadeira para o centro da sala e sentou-se, sem conseguir deixar de pensar naquele gesto, à luz do qual todos os móveis que a cercavam pareciam ganhar raízes no seu espírito. São gestos assim que emcorpam a vida, que lhe dão espessura, pensou ela. Tinha a certeza de que, enquanto se lembrasse daquele gesto e da mulher que o executara, o instante em que o captara continuaria a existir, tal como ela naquele preciso momento existia ali, naquela sala, deliberadamente alheada do aparato policial montado nas ruas adjacentes, devido a uma qualquer concentração perfeitamente inóqua e que só no caso de nas próximas horas nada haver no mundo digno de atenção mereceria umas escassas linhas nos jornais do dia imediato. Que peso teria aquela manifestação em comparação com o gesto da mulher que passara o dedo, molhado de cuspo, pelas sobrancelhas? Saberiam aqueles homens armados até aos dentes e distribuindo barreiras de arame farpado ao longo da avenida que o que eles supunham ser «este momento» amanhã já não teria existido? As feições da mulher haviam começado, é certo a diluir-se-lhe na memória, onde, de resto, o automóvel em que ela se encontrava e mesmo o seu cabelo já não tinham qualquer cor. Talvez esses pormenores funcionassem como catalizadores e contribuíssem para que o instante em que Matilde a entrevira através dos vidros dos dois carros se perpetuasse para além da sua contingência. Mas não. Matilde estava certa de que isso pouco importaria. Fosse a mulher loira ou morena, gorda ou magra, o que na realidade havia de marcante é que levara um dedo à boca e às sobrancelhas e que, sem disso poder ter tido consciência, colocara assim, ali, um travão no tempo, dando consistência a qualquer coisa sobre a qual os nossos gestos normalmente não produzem mais efeito que os de quem se industriasse a desenhar cruzes na água.
TEXTO DE LUÍS MIGUEL NAVA in Poesia Completa (1979-1994), Edição Publicações D. Quixote, Março de 2002
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RUY BELO
ATRAVÉS DA CHUVA E DA NÉVOA
Chovia e vi-te entrar no mar
longe de aqui há muito tempo já
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Mais tarde olhei-te e nem te conhecia
Agora aqui relembro e pergunto:
Qual é a realidade de tudo isto?
Afinal onde é que as coisas continuam
e como continuam se é que continuam?
Apenas deixarei atrás de mim tubos de comprimidos
a casa povoada o nome no registo
uma menção no livro das primeiras letras?
Chovia e vi-te entrar no mar
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Que importa que algures continues?
Tudo morreu: tu eu esse tempo esse lugar
Que posso eu fazer por tudo isso agora?
Talvez dizer apenas
chovia e vi-te entrar no mar
E aceitar a irremediável morte para tudo e todos
POEMA DE RUY BELO IN «O TEMPO DAS SUAVES RAPARIGAS E OUTROS POEMAS DE AMOR», EDIÇÃO 1402, JULHO 2010, ASSÍRIO & ALVIM
Uma nova antologia de Fernando Pessoa composta por 87 poemas escritos pelo ortónimo e por nove heterónimos, com o título "POESIA - ANTOLOGIA MÍNIMA" publicada pela Tinta-da-China, já está disponível nas livrarias.
A MAIS SINTÉTICA ANTOLOGIA DO MAIS VASTO DOS POETAS
Este livro é um convite a «desaprender Pessoa», segundo a expressão do mestre Alberto Caeiro, e a lê-lo como se tivéssemos acabado de o descobrir. Ao arrepio de uma tendência recente que colocou o poeta num novo cenário, menos literário e cultural, e mais urbano e utilitário, o que esta Antologia Mínima propõe é a descoberta ou redescoberta de Fernando Pessoa através de alguns dos mais espantosos versos do século XX: da «Ode marítima» à «Tabacaria», passando por «Chuva oblíqua», «O mostrengo», «O guardador de rebanhos», «Opiário», «Autopsicografia» e muitos poemas menos conhecidos, sempre reveladores de um génio que continua a inspirar espanto, enlevo e admiração.
O essencial da poesia de Fernando Pessoa e seus principais heterónimos, numa edição de Jerónimo Pizarro.
Fiama Hasse Pais Brandão
CANTO DOS INSECTOS
Podia cantar as aves, mas os insectos
são um misto de aves, de astros e de átomos
que giram em órbita como as imagens de atlas
do Universo ou esquissos de átomos.
As aves são as almas regressadas
ou que vêm da matéria para nós.
Este besouro zumbe junto ao tímpano
a voz com a qual o Amado me bafeja,
afasta-se e aproxima-se entre as tílias
que plantei em nome de Wolfgang Goethe
e hão-de dar a flor fonte do sono.
Por baixo delas o gato semovente
mostra a harmonia da garra que lambeu
para lavar o filho, e reconhece-o
como se fossem gatos num só ser.
Rente ao solo pisam a matéria viva
que é a erva, a terra e os mil milhares
dos ovos que movem a Terra astro.
São esses os insectos que são pó,
que nos roçam os pés e nos transportam
entre o nascimento e a primeira morte.
Quando o besouro passa ou poisa aqui,
o seu contexto move-se, e não pode
deixar mudar sozinho aquele insecto
sem o real concreto que o envolve.
A flosa canta a sua identidade
sem saber que é única neste espaço
em que as aves, os animais e o poeta
enquadram os insectos, em fase larvar.
Canto os que vão procriar na terra
fermentada e os já pairam aqui
desde que me senti tão similar.
O tempo é demarcado pela medida
do olhar que segue o sulco do insecto.
Tudo aquilo que está a ser olhado
aruma-se no verso com a ordem
que coloca os seres em relação recíproca
provável mas de evidência falsa
Ao poente o silêncio é o leito e o fundo
onde vibram os sons dde várias graças,
entre as agora espúrias aves canoras
o zum-zum estelar das moscas da tarde
anuncia a noite em que zumbe o Mundo.
A luz do Amado aconchega a noite,
acolhe o solitário na barca iluminada
e eis que o Rio tão próximo dá a imagem
da barca redentora que nos chama.
Ao cair da noite as tílias ficam
com as suas folhas secas de Outubro
à espera da manhã que as vai reter
presas um pouco mais na luz espalhada.
Sentada no jardim vejo o crepúsculo
juntar o insecto, o gato e a tília,
e o que a Natureza une ante os meus olhos
nada o pode desunir naminha vida.
Canto o bater das asas mínimo no ar
como um sopro de aragem num rebento
ou o escaravelho que dobra o fio da erva
e nele dança na oscilação.
Estou aqui a amar e a contemplar
o esforço e a força de cada ser.
O escaravelho cai na mão do Amado
e à sua direita tem o seu lugar
quando for esmagado pelo algoz
que não esteja possuído de fascínio.
Não desisto de cantar os animais
e as plantas que no berço me embalaram
e me ditaram a voz própria dos poemas.
O coração palpita-me como o abdómen
da borboleta que vem beber o néctar
da tília, que eu esperarei ainda.
Estou a vê-la, ela sacia-se e afasta-se
na fuga que eu atribuo ao seu voar.
Também o ventre do gafanhoto lateja
e o do grilo, suspensos pelos ângulos
das patas que lhes prendo. Tudo
está aqui disperso e ordenado
entre a manhã aberta que inicia
e a outra noite que hora depois de hora
emudece os sons até á morte.
E o pânico e a paz nocturnos
juntam-se como todos os contrários.
Dia e noite os insectos percorrem
em redor de nós a sua elipse.
O moscardo negro veio cintilar
na futura manhã que se repete.
Cada voo entre o poente e o futuro
está imóvel como nós no Tempo.
Subitamente a borboleta defronta
o pequeno gato ágil não onírico.
Move sádico devagar o dorso,
rasteja e salta, ora prendendo-o
ora soltando o breve corpo alado
que facilmente a imagem assemelha
a um ciclâmen que se solta e adeja.
Verei se o fôlego do insecto não sufoca
no duro jogo da cria de felino
a quem o instinto tão cedo movimenta.
Ficarão longo tempo nesta luta
fortuita e repentina em pleno cosmos
como entre si combatem os iões.
A borboleta oscila entontecida
indignamente prostrada sob garras,
ela que é o símbolo visível
da metamorfose galáctica.
Também o gato é belo, mas fatal
no destino circular da borboleta,
inato caçador de sons alados
néscio e voraz ele desconhece
o ciclo em que se gera a sua vítima.
E mesmo sem metamorfoses, o real
muda, repete e imagina sempre,
e cada estádio não é um só estádio.
O Amado volta cada noite inteiro
assinalando o espírito e a carne.
Na manhã que decorre, o seu sinal
é a perene borboleta que resiste
e só há-de morrer na morte absoluta
em que a matéria se perderá.
Está viva sobre a relva, embora as asas
pareçam pétalas pisadas. Não voa,
e estremece a recordar o voo.
E a Mão direita que nos abençoa
marca no seu corpo a sombra do Sol.
29 de Outubro de 1993
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - In "Cantos do Canto", retirado do Livro "Obra Breve", edição 0976, de Maio de 2006, editado pela editora Assírio & Alvim
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BIOGRAFIA DA RESPONSABILIDADE DA EDITORA "ASSÍRIO & ALVIM"
Manuel de Freitas
GRANDE HOTEL DE PARIS, QUARTO 312
Um amigo meu disse-me para nunca
meter gaivotas num poema.
O que seria fácil noutra cidade qualquer,
onde o ruído do seu voo não acompanhasse
tão de perto a minha insónia, a vaga
inquietação do teu corpo adormecido.
Alastra da Sé aos Clérigos, um alarme branco
que a janela deste quarto aceita há mais de
duzentos anos. Serão outras as gaivotas
e as cabeças que, depois de muito ou nenhum
sexo, se rendem ao limbo brasonado dos lençóis.
Mas eu vim para a casa de banho escrever
este poema simples, cheio de versos inúteis,
que me exige as horas que não tenho.
Sem ele, teria sido um dia grácil e ligeiro
como a morte, duro e inaceitável
como a vida. Pois consegui, antes destes
adjectivos todos, comprar o belo e o sublime
por menos de oito euros. E o livro que Jorge
de Sena dedica sem gaivotas, «à cidade do Porto».
Deveria ser fácil como um beijo, este poema.
Mas não. Chegamos à janela e só vemos
lixo, prédios devolutos, uma coroa
de terra a esboroar-se.
E invejamos,
das gaivotas, a pungente desrazão do voo,
essa alegria de não ter palavras
sob o céu limpo que nos mata.
Poema de Manuel de Freitas dedicado à memória de Jorge de Sena - in Terra Sem Coroa
Vasco Graça Moura
INSTRUMENTO DE SOMBRAS
coração, instrumento de sombras
e silêncios vibrantes, coração que te destróis
na turvação da alma,
de que matéria é feita a lucidez com quue palpitas
e sabes o que vai acontecer?
rente às águas fluviais, a neblina é mais espessa
entre os choupos de inverno.
também o amor é uma arte do tempo, uma
melodia delgada e frágil instalada em novembro,
tocada num instrumento de sombras
e pressentimentos, na indecisa fronteira
entre a vida e a morte. um dia
a chuva há-de diluir tudo
na sua música, nas cadências da sua
lenta anestesia.
POESIA DE VASCO GRAÇA MOURA - POESIA REUNIDA, QUETZAL, 2012
podia bordar a minha cara
sobre tantas caras
do mundo
(abro parêntese
nele entra o voo desta paisagem
tão inútil
como mudar uma vírgula a alguém)
rostos que só vimos um momento
rostos que encontramos pelo caminho
os últimos momentos de um rosto
as ideias que se têm sobre um rosto
os seus longos trajectos ínvios
desde o latim liceal
o dorso dos rostos coberto de mato
olhos débeis palpitam dentro dos olhos
mal nos deixam ver os rostos nublados
por excesso de vegetação
palpitam
sobrepõem-se páginas de rostos
vemos rostos nos rostos
há rostos que choram tanto
que acabam por se partir
um molho de folhas arrefece
entre os meus olhos líricos de cortiça
por vezes olhamos para o espelho
não há nada lá dentro
por vezes morremos na rua
reflectidos nos vidros partidos
da varanda materna
no clarão intempestivo do fósforo
ilusão fulgurante
morremos um pouco
na mudança de linha
em cada parágrafo
mal assinalado
alguém
espera o primeiro choro da criança
para entrar nela
ainda suja da lama genética
venceste a insidiosa
a cadela que exige sangue
(julgas tu...)
Poema de Rosa Oliveira in tardio
YONVILLE
viu que o tempo atravessava tudo
entrava nas cabeças
desfazia pequenas ligações interiores
enlouquecia
sobre os cabelos caía
uma poeira de mãos rápidas
a rede quase invisível
à volta dos lábios
escondia os livros mais importantes
desfazia os dias em tarefas inúteis
atraiçoava os amigoa com amantes desdichados
secretamente sabia
o tempo vai transformar-nos
em glosas esventradas de nós mesmos
vai pôr a rezar os poetas mais obscuros
leva-nos pela mão
arrasa
olhou o horizonte e suspirou
era vasto demais
o prado e o céu juntavam-se
insuportável
como toda a paz campestre
Poema de Rosa Oliveira in tardio, edição Tinta-da-China, Março de 2017