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#3351 - GUARDADOS DA CASA LONGA

UM POEMA DE MAR BECKER

por Carlos Pereira \foleirices, em 03.03.24

MAR BECKER

 

as meninas da casa se inclinam sobre as janelas, nos parapeitos

e dormem

 

quem vê da rua, pensa que são as próprias janelas que estão

sonhando

 

e que sonhar é algo como o transbordamento

dos cabelos

 

POEMA DE MAR BECKER, DO LIVRO «CANÇÃO DERRUÍDA», EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JANEIRO DE 2023

 

 

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publicado às 18:45


#3338 - ESCREVO AGORA COMO QUEM ME DÁ A MÃO

UM POEMA DE LEONARDO MARONA

por Carlos Pereira \foleirices, em 21.01.24

ESCREVO AGORA COMO QUEM ME DÁ A MÃO

 

aqui te embalo para  sempre em meus sonhos, 

a ti, o próprio, fruto de todo prazer indubitável,

a quem ferimps com nomes e histórias de famílias,

mas que está aqui e agora, ainda circulando em peixe

dentro das veias e da pulsação que nos levará à morte

e estar diante desta inafiançável situção é também

uma chance de  contrapor a essa pobre velha cansada,

a morte, e que respeito tenho por ti, ò morte, agora,

quando me faltam as veias e as batidas do coração,

como à velha mãe faltaram na hora  do  enterro cego,

é você que guia os passos que não damos, a dor

que sentimos enquanto dizemos sou eu que sinto,

mas é mais que outra coisa, é mais que tudo isso,

e seria tão só você pudesse esta mesma coisa louca:

estar ao menos bem vestida quando me cuspisse da

seus tenebrosos  decassílabos, além do que odeio

o cheiro do seu caviar russo, e antecipo suas cáries.

 

POEMA DE LEONARDO MARONA, RETIRADO DO LIVRO "NAQUELA LÍNGUA - CEM POEMAS E ALGUNS MAIS" (Antologia da Novíssima Poesia Brasileira)

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publicado às 12:23


#3277 - À BEIRA

POEMA DE MAR BECKER

por Carlos Pereira \foleirices, em 29.03.23

MAR BECKER

 

poderia dizer que amo teu nome à boca

poderia falar das vezes em que chega a manhã

e eu o procuro

e faço dele a primeira palavra tocada

mas não, o que digo é que no amor tudo nasce frágil

que há manhãs em que me vejo à beira do teu nome

e não sou capaz de feri-lo

com a voz

 

Poema de Mar Becker

_________________________________________________________________________________

Mar Becker (Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo (Rio Grande do Sul). Formou-se em Filosofia, com especialização em Metafísica e Epistemologia, pela Universidade Federal da Fronteira do Sul. Em 2020, publica A Mulher Submersa, livro vencedor do Prémio Minuano e finalista do Prémio Jabuti, na categoria poesia, ao qual se seguiu, dois anos mais tarde, o livro Sal. Em Portugal, sai agora Canção Derruída (2023): obra que reúne os poemas de Sal e uma revisitação, com «ecos e variações», de A Mulher Submersa.

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publicado às 18:04


#3094 - POEMA DIDÁCTICO ||| POEMA DE PAULO MENDES CAMPOS

por Carlos Pereira \foleirices, em 28.03.20

PAULO MENDES CAMPOS (1922-1991) |||  BRASIL

 

POEMA DIDÁCTICO

 

Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo

Como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.

Minhas rugas são prantos da véspera, caminhos esquecidos

Minha imaginação apodreceu sobre os lodos do Orco.

 

No alto, à vista de todos, onde sem equilíbrio precipitei-me,

Clown de meus próprios fantasmas, sonhei-me,

Morto do meu próprio pensamento, destruí-me,

Pausa repentina, vocação de mentira, dispersei-me,

Quem sofreria agora sobre as armações metálicas do mundo,

Como o fiz outrora, espreitando a grande cruz sombria

Que se deita sobre a cidade, olhabdo a ferrovia, a fábrica,

E do outro lado da tarde o mundo enigmático dos quintais.

Quem, como eu outrora, andaria cheio de uma vontade infeliz,

Vazio de naturalidade, entre as ruas poentas do subúrbio

E montes cujas vertentes descem infalíveis ao porto de mar?

 

Meu instante agora é uma supressão de saudades. Instante

Parado e opaco. Difícil se me vai tornando transpor este rio

Que me confundiu outrora. Já deixei de amar os desencontros.

Cansei-me de ser visão, agora sei que sou real em um mundo real.

Então, desprezando o outrora, impedi que a rosa me perturbasse.

E não olhei a ferrovia - mas o homem que sangrou na ferrovia -

E não olhei a fábrica - mas o homem que se consumiu na fábrica -

E não olhei mais a estrela - mas o rosto que reflectiu o seu fulgor.

Quem agora estará absorto? Quem agora estará morto?

O mundo, companheiro, decerto não é um desenho

De metafísicas magníficas (como imaginei outrora)

Mas um desencontro de frustrações em combate.

Nele, como causa primeira, existe o corpo do homem

- cabeça, tronco, membros, aspirações e bem-estar...

 

E só depois consolações, jogos e amarguras do espírito.

Não é um vago hálito de inefável ansiedade poética

Ou vaga adivinhação de poderes ocultos, rosa

Que se sustentasse sem haste, imaginada, como o fiz outrora.

O mundo nasceu das necessidades. O caos, ou o Senhor,

Não filtraria no escuro um homem inconsequente,

Que apenas palpitasse no sopro da imaginação. O homem

É um gesto que se faz ou não se faz. Seu absurdo -

Se podemos admiti-lo - não se redime em injustiça.

 

Doou-nos a terra um fruto. Força é reparti-lo

Entre os filhos da terra. Força - aos que o herdaram -

É fazer esse gesto, disputar esse fruto. Outrora,

Quando ainda sofria sobre armações metálicas do mundo,

Acuado como um cão metafísico, eu gania para  a eternidade,

Sem compreender que, pelo simples teorema do egoísmo,

A vida enganou a vida, o homem enganou o homem.

Por isso, agora, organizei  meu sofrimento ao sofrimento

De todos: se multipliquei a minha dor,

Também multipliquei a minha esperança.

 

POEMA DO POETA BRASILEIRO PAULO MENDES CAMPOS

 

 

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publicado às 09:53


#2829 - Poema de Hilda Hilst

por Carlos Pereira \foleirices, em 12.04.18

HILDA HILST

 

Alcoólicas (trechos)

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

 

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.

 

Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.

 

POEMA DE HILDA HILST

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publicado às 18:26


#2789 - À Deriva com Mar ao Fundo

por Carlos Pereira \foleirices, em 07.03.18

 Tatiana Pequeno

 

À DERIVA COM MAR AO FUNDO

 

há uma imagem muito preciosa de nós.

por meses ela acompanhava o abrir in

voluntário da caixa de mensagens e o

dia tão outonal da tua presença chegava

mais veloz para a reserva dos voos de

ir ao encontro da tua larga omoplata de

receber. a fotografia arquiva aquele dia

já tão passado de julho (outro inverno) e

na tua blusa xadrez há alguma coisa ne

gra de mim enquanto no meu vestido pre

to há um detalhe de ti, além daquilo que

são os teus brincos muito arredondados.

e estou ancorada no teu corpo a dizer al

go do tipo «queria que aparecesse o mar».

nas ruas da Barra e do Rio Vermelho

procuramos mais uma vez a linguagem

modesta do aluguel - esta coisa menor -

que estivesse ao nosso alcance chegas

te a ligar para um pequeno imóvel com

varanda, do qual abstraímos rapidamente

(os preços sempre nos foram valores difíceis)

temendo a oxidação dos ferros e o gasto

com eletrodomésticos novos e alumínio

ao ficarmos tão próximas dos efeitos do

salitre presente no movimento equatorial

da maresia, fomos também ao banco onde

sob tua fala aceitei que fosse a hora de

mudar agência. mas sobretudo os investi

mentos que não tinha. indago-me hoje se

era já altura de perguntar sobre os segredos

cada vez mais graves que tu mantinhas.

talvez fosse o caso falar da brisa futura

a corroer a casa ou da umidade palusível

a destruir os livros. se enfim já pensavas

na troca ligeira das operadoras a longas

distâncias de nossos telefones. de qualquer

forma, ali, os planos pareciam todos feitos.

(havíamos escolhido um nome africano para

aquela criança adotada que seria nossa filha)

era quase tarde naquele imenso dia e no en

tanto paramos novamente ali naquele porto

na orla e, para sempre, o Sublime registrou

algo que te parecia sorrir e a mim também

sem que soubéssemos, afinal, que atrás de

nós a larga água de todos os santos nos des

protegia e nada depois de alguns meses faria

você desistir de preferir o sul àquela luz em

que insisti no ajuste da câmera para na memória

fazer caber, à esquerda o amor e à direita o mar.

 

POEMA DE TATIANA PEQUENO

 

 

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publicado às 10:50


#2787 - América

por Carlos Pereira \foleirices, em 04.03.18

Carlos Drummond de Andrade

 

AMÉRICA

 

Sou apenas um homem.

Um homem pequenino à beira de um rio.

Vejo as águas que passam e não as compreendo.

Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.

Vi que amanheceu porque os galos cantaram.

Como poderia compreender-te, América?

É muito difícil.

 

Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.

O rosto denuncia certa experiência.

A mão escreveu tanto, e não sabe contar!

A boca também não sabe.

Os olhos sabem - e calam-se.

Ai, América, só  suspirando.

Suspiro brando, que pelos ares vai se exalando.

 

Lembro alguns homens que me acompanhavam e hoje não acompanham.

Inútil chamá-los: o vento, as doenças, o simples trempo

dispersaram esses velhos amigos em pequenos cemitérios  do interior,

por trás de cordilheiras ou dentro do mar.

Eles me ajudariam, América, neste momento

de tímida conversa de amor.

 

Ah, por que tocar em cordilheiras e oceanos!

Sou tão pequeno (sou apenas um homem)

e verdadeiramente só conheço  minha terra natal,

dois ou três bois, o caminho da roça,

alguns versos que li há tempos, alguns rostos que contemplei.

Nada conto do ar e da água, do mineral e da folha,

ignoro profundamente a natureza humana

e acho que não devia falar nessas coisas.

 

Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração.

Nessa rua passsam meus pais, meus tios, a preta que me criou.

Passa também uma escola - o mapa -, o mundo de todas as cores.

Sei que há países roxos, ilhas brancas, promomtórios azuis.

A terra é mais colorida do que redonda, os nomes gravam-se

em amarelo, em vermelho, em  preto, no fundo cinza da infância.

América, muitas vezes viajei nas tuas tintas.

Sempre me perdia, não era fácil voltar.

O navio estava na sala.

Como rodava!

 

As cores foram murchando, ficou apenas  o tom escuro, no mundo escuro.

Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra.

Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios.

Seus passos urgentes ressoam na pedra,

ressoam em mim.

Pisado por todos, como sorriir, pedir que sejam felizes?

Sou apenas uma rua

na cidadezinha de Minas,

humilde caminho da América.

 

Ainda bem que a noite baixou: é mais simples conversar à noite.

Muitas palavras já nem precisam ser ditas.

Há o indistinto mover de lábios no galpão, há sobretudo silêncio,

certo cheiro de erva, menos dureza nas coisas,

violas sobem até à lua, e elas cantam melhor do que eu.

 

            Canta uma canção

            de viola ou banjo,

            dentes cerrados,

            alma entreaberta,

            descanta a memória

            do tempo mais fundo

            quando não havia

            nem casa nem rês

            e tudo era rio,

            era cobra e onça, 

            não havia lanterna

            e nem diamante,

            não havia nada.

            Só o primeiro cão,

            em frente do homem,

            cheirando o futuro.

            Os dois se reparam,

            se julgam, se pesam,

            e o carinho mudo

            corta a solidão.

            Canta uma canção

            no ermo continente,

            baixo, não te exaltes.

            Olha ao pé do fogo

            homens  agachados

           esperando comida.

           Como a barba cresce,

           como as mãos são duras,

           negras de cansaço.

           Canta a estela maia,

           reza ao deus do milho,

           mergulha no sonho

           anterior às artes,

           quando a forma hesita

           em consubstanciar-se.

           Canta so elementos

           em busca de forma.

           Entretanto a vida

           elege semblante.

           Olha: uma cidade.

           Quem a viu nascer?

           O sono dos homens

           após tanto esforço

           tem frio de morte.

           Não vás acordá-los,

           se é que estão dormindo.

 

Tantas cidades no mapa... Nenhuma, porém, tem mil anos.

E as mais novas, que pena: nem sempre são as mais lindas.

Como fazer uma cidade? Com que elementos tecê-la? Quantos fogos terá?

Nunca se sabe, as cidades crescem,

mergulham no campo, tornam a aparecer.

O ouro as formas e dissolve; restam navetas de ouro.

Ver tudo isso do alto: a ponte onde passam soldados

(que vão esmagar a última revolução);

o pouso onde trocar de animal; a cruz marcando o encontro dos valentes;

a pequena fábrica de chapéus; a professora que tinha sardas...

Estes pedaços de ti, América, partiram-se na minha mão.

A criança espantada

não sabe juntá-los.

 

Contaram-me que também há desertos.

E plantas tristes, animais confusos, ainda não completamente determinados.

Certos homens vão de país em país procurando um metal raro ou distribuindo palavras.

Certas mulheres são tão desesperadamente formosas que é impossível não comer-lhe os retratos e não proclamá-las

                                                                                                                                                                            [demônios.

 

Há vozes no rádio e no interior das árvores,

cabogramas, vitrolas e tiros.

Que barulho na noite,

que solidão!

 

Esta solidão da América... Ermo e cidade grande se espreitando.

Vozes do tempo colonial irrompem nas modernas canções,

e o barranqueiro do Rio São Francisco

- esse homem silencioso, na última luz da tarde,

junto à cabeça majestosa do cavalo de proa imobilizado

comtempla num pedaço de jornal a iara vulcânica da Broadway.

 

O sentimento da mata e da ilha

perdura em meus filhos que ainda não amanheceram de todo

e têm medo da noite, do espaço e da morte.

Solidão de milhões de corpos nas casas, nas minas, no ar.

Mas de cada peito nasce um vacilante, pálido amor,

procura desajeitada de mão, desejo de ajudar,

carta posta no correio, sono que custa a chegar

porque na cadeira elétrica um  homem (que não conhecemos) morreu.

 

Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento.

Portanto, solidão é palavra de amor.

Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.

Ela fixa no tempo a memória

ou o pressentimento ou a ânsia

de outros homens que a pé, a cavalo, de avião ou barco, percorrem teus caminhos, América.

 

Estes homens estão silenciosos mas sorriem de tanto sofrimento dominado.

Sou apenas o sorriso

na face de um homem calado.

 

POEMA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE IN A ROSA DO POVO, EDIÇÃO COMPANHIA DAS LETRAS, FEVEREIRO DE 2017

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publicado às 13:33


#2781 - A Flor e a Náusea

por Carlos Pereira \foleirices, em 17.02.18

carlos drummond de andrade

 

A FLOR E A NÁUSEA

 

Preso à minha classe e a algumas roupas,

vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Devo seguir até o enjoo?

Posso, sem armas, revoltar-me?

 

Olhos sujos no relógio da torre:

Não, o tempo não chegou de completa justiça.

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre

fundem-se no mesmo impasse.

 

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.

Sob a pele das palavras há cifras e códigos.

O sol consola os doentes e não os renova.

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

 

Vomitar esse tédio sobre a cidade.

Quarenta anos e nenhum problema

resolvido, sequer colocado.

Nenhuma carta escrita nem recebida.

Todos os homens voltam para casa.

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

 

Crimes da terra, como perdoá-los?

Tomei parte em muitos, outros escondi.

Alguns achei belos, foram publicados.

Crimes suaves, que ajudam a viver.

Ração diária de erro, distribuída em casa.

Os ferozes padeiros do mal.

Os ferozes leiteiros do mal.

 

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Com ele me salvo

e dou a poucos uma esperança mínima.

 

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

 

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros.

É feia. Mas é realmente uma flor.

 

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde

e lentamente passo a mão nessa forma insegura.

Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.

Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

 

Poema de Carlos Drummond de Andrade in A Rosa do Povo, páginas 19, 20 e 21, edição Companhia das Letras Portugal, Fevereiro de 2017

 

 

 

 

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publicado às 17:40


#2683 - Aprendizagem

por Carlos Pereira \foleirices, em 24.11.17

 

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.

 

Poema de Ferreira Gullar

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publicado às 18:14


#2672 - Agosto 1964

por Carlos Pereira \foleirices, em 17.11.17

 

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.

Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do horror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira

 

Poema de Ferreira Gullar

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publicado às 19:40


#2564 - ODE A JACKSON DE FIGUEIREDO

por Carlos Pereira \foleirices, em 29.08.17

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

 

ODE A JACKSON DE FIGUEIREDO

 

JACKSON,

nem amigo nem inimigo,

nem mesmo (o que seria cómodo) espectador displicente na sua poltrona

espiando teus gestos, tuas palavras e obras,

mas distante, extraordinariamente distante daquilo que foi a tua vida,

mais distante ainda dos mundos que exploraste, viajante inquieto, sem tempo para esgotá-los,

e só te conhecendo bem depois que abriste os braços para morrer,

aqui estou, testemunha, depondo.

 

Jackson,

os que te conheceram e te amaram,

os que te conheceram e não te amaram,

os que não tiveram tempo de te amar,

os que não cruzaram no teu destino, os que ignoram o teu nome, os que jamais saberão que exististe,

estão todos um pouco mais pobres do que eram antes.

Uns perderam o amigo.

Outros, o inimigo, o grande e belo inimigo que orgulha.

 

Outros nada perderam, e é tão triste, tão doloroso não perder nada.

Como estes, eu me sinto pobre da pobreza de não ter sido dos teus, Jackson,

e eu o sinto verdadeiramente por todos aqueles que jamais suspeitarão disso.

 

Voltou o tempo dos prodígios.

Ainda há pescas maravilhosas, eu sei,

e os peixes que arrebataste a um mar mais crespo que o de Tiberíades

estão cantando  a glória do Senhor.

 

Milhares de escamas, milhares de dorsos, de luzes, de almas

elevam um cântico tão puro que a terra se mistura com o céu

e nem se percebe o pescador que as ondas arrebatam,

que as ondas arrebatam violentamente, para depois se apaziguar,

enquanto o corpo mergulha e os peixes cantam a glória do Senhor.

 

Agora sentimos que estás mais perto de nós,

que por obscuros caminhos nos chegamos mais a ti,

(pouco importam as ondas e esta camada de terra que nos separa de tuas espécies em decomposição).

Muitas coisas nos ensinou a tua morte, que a tua boca não soubera exprimir

e a tua pesca mais opulenta, Jackson, foi a de ti mesmo pelo oceano,

pesca terrível e prodigiosa de amor e de redenção.

 

Belo Horizonte, 1929.

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publicado às 15:15


#2395 - A MÁQUINA DO MUNDO

por Carlos Pereira \foleirices, em 24.05.17

 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)

 

A MÁQUINA DO MUNDO

 

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.

 

Poema de Carlos Drummond de Andrade

 

________________________________________________________________________



Carlos Drummond de Andrade
nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. De uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental". De novo em Belo Horizonte, começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.

Ante a insistência familiar para que obtivesse um diploma, formou-se em farmácia na cidade de Ouro Preto em 1925. Fundou com outros escritores A Revista, que, apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em Minas. Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, até 1945. Passou depois a trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e se aposentou em 1962. Desde 1954 colaborou como cronista no Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.

 

 

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publicado às 19:44


#2380 - TAEDIUM VITAE

por Carlos Pereira \foleirices, em 18.05.17

MARCELO GAMA

MARCELO GAMA

(1878- 1915)

 

TAEDIUM VITAE

 

Dias de tédio, amargurados dias,

Estes que arrasto à espera de melhores

Estes de sol, então, são os piores:

Mais me abatem as lassas energias.

 

Porque este sol que me ilumina e aquece,

Embora luz, calor e vida seja

- lascivo sol que a natureza beija

lubricamente, e os seios lhe intumesce - 

 

é o mesmo sol que me amesquinha e oprime,

o alvissareiro da maledicência,

que põe, perfeitamente, em evidência,

esta pobreza vil, que é quase um crime.

 

Por isso à lua, mal o sol se esconde,

Horas fico a cismar, contemplativo...

Abominável terra, esta onde vivo!...

Vêm-me vontades de partir... Mas onde?...

 

Mas onde achar a paz que est'alma aspira?

Se em toda a parte os homens são iguais!

Se aqui na terra são convencionais

Honra e virtude, e o mais - tudo mentira.

 

Lá onde eu fosse chegaria o tédio.

Que à vida é necessário o sofrimento,

E bem sei, para meu maior tormento,

Que esta dor só na morte tem remédio!

 

Todo este mal, toda esta desventura,

Vem do sentir e amar em demasia,

E ver que é sempre simulada ou fria

Toda afeição que eu supusera pura.

 

Conto os meus anos pelas minhas dores,

E são mais minhas dores que os meus anos;

E não bastando os próprios desenganos,

Comovem-me os alheios dissabores.

 

Que uma só vez não há, que eu não vacile,

Quando a desgraça os outros arremete!

Já chego a duvidar como Stecchetti:

- Sono un poeta o sono um imbecile?

 

Tu, que os meus versos lês e que os condenas,

Quando não és de todo indiferente,

Como és feliz! Como é feliz a gente

Que insensível assiste a alheias penas!

 

Bendita aspiração, ditosa sorte:

- extinguir-me, ou vencer estes espaços!

Por que nos teus escanifrados braços

Não me estrangulas, redentora morte?

 

Ontem levaste, aqui da vizinhança

A pobre mãe de três loiros filhinhos,

E entregaste-os à dor! Beijos, carinhos,

Mudaram-se em cruel desesperança.

 

E deixaste-me entanto, atormentado,

Escravo destes miseráveis nervos!

Meus dias, que penoso é maldizer-vos,

Sendo até pela morte desprezado!

 

Morrer!... Antes morrer! Que só existe

No renunciar à vida a paz perfeita.

Tornar-se a gente em pó, na cova estreita,

É deixar, finalmente de ser triste.

 

E se algum dia for desenterrada

Minha carcaça, hão-de me ver sorrindo...

Porque as caveiras riem, assistindo

Deste mundo à infinita mascarada.

 

Poema do poeta brasileiro Marcelo Gama

___________________________________________________________

Marcelo Gama, pseudônimo de Possidônio Cezimbra Machado foi um poeta e jornalista brasileiro. Foi um dos maiores representantes da poesia simbolista no Rio Grande do Sul, movimento forte naquele Estado.

 

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publicado às 18:47


#2261 - ADORO PAU MOLE

por Carlos Pereira \foleirices, em 04.04.17

 MARIA REZENDE

 

ADORO PAU MOLE

 

Adoro pau mole

assim mesmo

 

Não bebo mate

não gosto de água de coco

não ando de bicicleta

não vi ET

e adoro pau mole

 

Adoro pau mole

pelo que ele expõe de vulnerável

e pelo que encerra de possibilidade

 

Adoro pau mole

porque tocar um pressupõe a existência

de uma intimidade

e uma liberdade

que eu prezo

e quero

sempre

 

Porque ele é ícone do pós-sexo

que é intrínseca e automaticamente

ainda que talvez um pouco antecipadamente

sempre um pró-sexo também

 

Um pau mole é uma promessa de felicidade

sussurrada baixinho ao pé do ouvido

 

É dentro dele

em toda a sua moleza sacudinte de massa de modelar

que mora o pau duro e firme

com que meu homem me come

 

POEMA DA POETA BRASILEIRA MARIA REZENDE

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publicado às 14:39


#2258 - PRIMEIRO PRECISAVA SABER

por Carlos Pereira \foleirices, em 02.04.17

MARIANO MAROVATTO

 

PRIMEIRO PRECISAVA SABER

 

Primeiro precisava saber

de onde escrever. E assim

com modos bem portugueses

(seus livros de levíssimo papel

e gramatura alta)

fosse o meu barquinho,

leitoso nessa espumante

página de hálito nada

familiar, e já estaria lá.

Uma gota de sangue

nas pontas dos dedos

uma cara sorrindo, outra

resmungando. Precisaba saber

tomar ônibus, pensar no asfalto,

no ringue de patinação, menos

ovo, mais ártico. Ou terra, como

nos caminhos das ilhas:

ir até qualquer ponto final

e lá soltar com a mochila.

 

Poema do poeta brasileiro Mariano Marovatto

 

 

 

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publicado às 18:52


#2242 - 1976

por Carlos Pereira \foleirices, em 26.03.17

 LUIS MAFFEI

 

1976

 

A palavra formiga é muito longa para ser formiga

O boi não cabe em suas letrinhas

Armário escrito num papel colado ao puxador não

cria um outro armário sobre o armário nem

desmata o que foi mata e já se desmatou há muito

nem desmata o armário morto pelo texto que o inventa só

na morte Isso

tudo é educação pelas perdas que bem se têm

que mal se veem

que só se notam quando é noite a gente sua

e chora como quem responde ao mundo uma resposta muito

boi pouco formiga

e entende

aos poucos

que é por pouco que não fomos concluídos bem no instante de

nascermos que é

um pouco

ir para a vida ir para a morte

ir a palavras como boi como fer

mento muito curta para ser de au

mento muito longa para ser um

boi Isso era educação caso não

fosse noite mal dormida como nunca uma vigília a imitará quando

palavras forem vozes de uma vida que

sem jeito

se encontra a si em poça de suor e urina e cabelos ensebados

pelo medo pelo armário sem

amante nem vestido sem

infância com

infância demais quando não falo

e mais quando só falo e falo dessa infância onde tudo fica ainda e quando boi

era formiga e um mendicante amor de tudo era o

futuro em que

(é agora?)

mendigo ainda e sei que tu mendigas pelo avesso o mesmo

extremo encontro a mesma aberta

cárie a mesma morte que me abraça como

um urso e consegue a criação da vida inteira e o suadouro das palavras

que usam boca e ressuscitam

 

Poema do poeta brasileiro Luis Maffei

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publicado às 18:15


#2237 - UM A MENOS

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.03.17

 LEONARDO MARONA

 

UM A MENOS

 

por ora os abutres sobrevoam

a lagoa fetal e, muito em breve já munidos

com as devidas garras de enxofre,

eles darão o rasante metálico

e tudo isso será apenas uma história,

um mito, um-terá-alguma-vez-acontecido,

mas os amantes estarão esfarelados

em suas carnes antigas, abraçados numa confusão pagã

a carne nova estará no balcão vermelho dos negócios de feira,

as breves frases delicadas ter-se-ão tornado

bustos pesados de paz em vírus.

 

a galope o pequeno órgão ratifica

a vaga culpa, estamos nus sob um sol desdenhoso,

não há realmente porque falar sobre isso com ninguém.

as salas minúsuculas e os alquimistas calvos

afunilaram o ambiente com paciência e muito ânimo.

serás processado, triturado e lançado ao acaso

em tua própria tendência succínica, e não será possível

abrir mão deste silêncio como osso tranca-traqueia,

ainda nem uma cabeça, um todo

germinal que no entanto pulsa.

 

a morte da grécia está nas ruas

e já não poderei vê-la porque a partir de agora

os olhos forçam para dentro as mágoas,

as covas rasas se alinham ao ventre,

não há realmente porque falar sobre isso com ninguém.

entende-se que a morte do pai reaproxima o par,

pois que assim seja, saberemos renunciar

a qualquer passado por uma nova vida, daremos

as mãos em nosso pior inverno, riremos como clowns

e poderemos até assaltar um banco, costuraremos

as máscaras dos sorrisos heróicos e caminharemos

com um pedaço a menos, adiante.

 

Poema do poeta brasileiro Leonardo Marona

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publicado às 19:46


#2224 - ACERTO

por Carlos Pereira \foleirices, em 20.03.17

 LAURA ASSIS

 

ACERTO

 

Eu entendo
as variações
e não importa
onde você está,
espaço e tempo
são só equações.

Imagem e movimento

são sinais
ou projeções
que preparo
ou aparto
enquanto escuto
passos
em outra direção.

Eu desenho
traços,
pontos exatos,
rabiscos.

Sempre há risco
mas a vida é bem
mais difícil
que isso.

O resto é abismo
e de noite existe
essa matéria
invisível
inventando desvios
nas palavras
que você ainda
não aprendeu
a dizer.

 

Poema de Laura Assis, poeta brasileira

 

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publicado às 22:44


#2221 - DEITADO COM O DEDO NA BOCA

por Carlos Pereira \foleirices, em 19.03.17

 ALICE SANT'ANA

 

DEITADO COM O DEDO NA BOCA

 

deitado com o dedo na boca

o sorriso invertido

curvado como uma montanha

a pele da perna uma cédula

gasta e seca

todos os dias rigorosamente iguais

banheiro, visitas, ampolas de sangue

às vezes tem mordomias como

um pedaço de pão ou uma fruta

doces nem pensar

da janela passa uma nuvem de carros

um táxi amarelo convida

a ir a qualquer lugar

sem previsão de alta o táxi é mais

uma miragem um filme

na televisão aquele programa da tv5

sobres casas em paris sem saneamento

pessoas que moram hoje, você acredita?, em quartos

sem janelas, apartamentos no sexto andar

sem elevador, como será que fazem para subir

com a água? não tomam banho, naturalmente

depois se cansa da conversa

a nuvem se torna mais espessa

na hora do rush o táxi não tem serventia

se não puder tomar o caminho que leva

ao ponto mais alto

de onde se vê a curvatura da terra

 

Poema da poeta brasileira Alice Sant'Ana

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publicado às 12:52


#2216 - ANOTAR FORTUITAMENTE O BRANCO

por Carlos Pereira \foleirices, em 17.03.17

 

 ANNITA COSTA MALUFE

 

ANOTAR FORTUITAMENTE O BRANCO

 

anotar fortuitamente o branco o

contorno do vidro modulando o

branco do céu anotar como quem

anota rapidamente um recado as

letras dando a entender um nome

o vidro embaçado pela maresia

a planta fina que cresce entre as telhas

úmidas anote o que digo mas rápido

a voz tem um sotaque rápido ou

lento não sei bem o nome

de onde? um sotaque não me lembro

não faz sentido os nomes são

sempre os mesmos fortuitamente

anoto o contorno que modula veja

o tom de branco esgarçando

aqui rapidamente anote o que

digo entre as telhas na primavera

costuma ser nesta época não sei

de onde este sotaque este modo

de esticar o «r» eu acho que é

nesta época esta planta fina os ramos

costumo anotar mas rapidamente

o contorno se desfaz em seguida e

é entre as telhas na infiltração dos dias

um reflexo automático nisto

de falar da morte e em seguida

olhar o relógio

 

«Há uma espécie de reflexo automático nisso de falar da morte e, em seguida, olhar o relógio.»

M. Benedetti, A trégua

 

Poema de Annita Costa Malufe, poeta brasileira

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publicado às 23:08


#2212 - Comprou Brincos de Âmbar

por Carlos Pereira \foleirices, em 16.03.17

ALICE SANT'ANNA 

 

COMPROU BRINCOS DE ÂMBAR

 

comprou brincos de âmbar

porque alguém disse

que se juntasse a cor da pele

com a dos olhos e dos cabelos

a soma seria âmbar

no telefone ela sorri muito

mexe a cabeça para que os brincos

pendurados batam no fio

assim ela lembra que está de brincos

assim ela lembra que tanta gente passa uma vida

inteira sem saber qual é a soma

de todas as cores

e eu já encontrei a minha, ela diz

cheia de dentes (os dentes

imagino do outro lado da linha)

conta que tem dormido pouco

acorda sonolenta

não lembra nunca do que sonhou

ou fala isso porque no fundo os sonhos

são inconfessáveis

até para o analista teria vergonha

de repente uma longa pausa

e se os sonhos fossem

subitamente proibidos?

ela pergunta dramática

diz que não vai ter pressa

o mapa astral diz para não ter pressa

não vou acumular dívidas

minha vida será confortável

um amor e filhos será possível

enrosca o âmbar com o indicador

aperta a pedra até não quebrar

um amor que ainda vai acontecer

a astróloga a aconselhou a viajar

vai comprar um anel em cada canto do mundo

precisa usar os anéis todos juntos

uma mão toda de prata quase uma luva

depois perder os anéis um por um

especialmente aquele com a pedra âmbar

dizer que tomou todo cuidado possível

para não perder os anéis

mas todo cuidado não previne do frio

que afina os ossos no inverno

e faz com que os anéis deslizem e se lancem

não previne dos assaltantes

nem dos lapsos em quartos de hotel

nem das pessoas que pedem

para ficar com um lembrete uma recordação

todo cuidado não elimina sequer a vontade

de esquecer o anel de propósito

 

POEMA DE ALICE SANT'ANA, POETA BRASILEIRA

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publicado às 17:59


#2189 - Vou-me Embora pra Pasárgada

por Carlos Pereira \foleirices, em 04.03.17

MANUEL BANDEIRA

 

VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA

 

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

 

POEMA DO POETA BRASILEIRO MANUEL BANDEIRA

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publicado às 19:04


#2155 - A Genealogia das Palavras

por Carlos Pereira \foleirices, em 08.02.17

CARLOS NEJAR

 

A GENEALOGIA DA PALAVRA

 

 

Minha morte começa a amadurecer e depois

vou comê-la como uma pera, largando o caroço

fora e depois vai vir uma semente com o mesmo

nome que vai crescer e amadurecer. Mas já não

é minha morte - é surpresa da terra apenas - 

descendência de uma morte futura. Depois as

gerações perdem de vista a própria morte que

aparece como fio de água no meio das pedras,

visível a um e outro profeta. Mas nada abalará a 

espécie: a vida também foi vista como um fio de

água no meio das pedras. Só que não se podia

distinguir os fios e as águas que conversavam

entre si, sem preconceito. E até moravam juntos,

vez e outra. Depois minha morte vai amadurecer

de novo, mas não será da mesma natureza. E

aprenderei a falar com o mundo. E o mundo vai

amadurecer como uma pera e depois vai vir uma

semente com o mesmo nome. Porém, já serei 

eterno.

 

POEMA DO POETA BRASILEIRO CARLOS NEJAR, RETIRADO DO LIVRO «OS VIVENTES» - EDIÇAO DA TEXTO EDITORES LTDA - BRASIL PARA A LEYA BRASIL, 2011

  

 

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publicado às 22:55


#2138 - NUDEZ

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.01.17

 CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

 

NUDEZ

 

Não cantarei amores que não tenho,

e, quando tive, nunca celebrei.

Não cantarei o riso que não rira

e que, se risse, ofertaria a pobres.

Minha matéria é o nada.

Jamais ousei cantar algo de vida:

se o canto sai da boca ensimesmada,

é porque a brisa o  trouxe, e o leva a brisa,

nem sabe a planta o vento que a visita.

 

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,

mas tão disperso, e vago, tão estranho,

que, se regressa a mim que o apascentava,

o ouro suposto é nele cobre e estanho,

estanho e cobre,

e o que não é maleável deixa de ser nobre,

nem era amor aquilo que se amava.

 

Nem era dor aquilo que doía;

ou dói, agora, quando já se foi?

Que dor se sabe dor, e não se extingue?

(Não cantarei o mar: que ele se vingue

do meu silêncio. nesta concha.)

 

Que sentimento vive, e já prospera

cavando em nós a terra necessária

para se sepultar à moda austera

de quem vive sua morte?

Não cantarei o morto: é o próprio canto.

E já não sei do espanto,

da úmida assombração que vem do norte

e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,

ajusta em mim seu terno de lamentos.

Não canto, pois não sei e toda  sílaba

acaso reunida

a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

 

Amador de serpentes, minha vida

passarei, sobre a relva debruçado,

a ver a linha curva que se estende.

ou se contrai e atrai, além da pobre 

área de luz de nossa geometria.

Estanho, estanho e cobre,

tais meus pecados, quanto  mais fugi

do que enfim capturei, não mais visando

aos alvos imortais.

 

Ó descobrimento retardado

pela força de ver.

Ó encontro de mim, no meu silêncio,

configurado, repleto, numa casta

expressão de temor que se despede.

O golfo mais dourado me circunda

com apenas cerrar-se uma janela.

E já não brinco a luz. E dou notícia

escrita do que dorme,

sob placa de estanho, sonho informe,

 

um lembrar de raízes, ainda menos,

um calar de serenos

desidratados, sublimes ossuários

sem ossos;

a morte sem os mortos; a perfeita

anulação do tempo em tempos vários,

essa nudez, enfim, além dos corpos,

a modelar campinas no vazio

da alma, que é apenas alma, e se dissolve.

 

POEMA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE IN "ANTOLOGIA POÉTICA", EDIÇÃO RELÓGIO D'ÁGUA EDITORES, DEZEMBRO DE 2007

 

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publicado às 22:02


#2022 - Frases

por Carlos Pereira \foleirices, em 26.05.16

«Sem erotismo, a vida não tem a menor graça.»

 

Chico César, músico e poeta, autor de Versos Pornográficos. O Globo.

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publicado às 18:44


#1995 - René Descartes e o método constelado da matéria

por Carlos Pereira \foleirices, em 19.05.16

Carlos Nejar

 

Não quero que me encontrem

ou molestem. Isolo-me no quarto

de um país, onde  posso

entretecer o génio.

Não usei como tantos,

bota rude na perna

cortando o lodaçal,

nem apanhei batatas

no dorso do quintal.

Não quero que me encontrem.

Talvez por desperdício

no sonho, ou por vício

de esquecer-me nos livros.

E a filosofia me convence

de exatidão. Com a erva

úmida a física fermenta

e incha a metafísica

aos ombros, nos torrões.

Não quero que me encontrem.

Evito o endereço nos postais.

E por pensar com o vento,

vou conciso. E um método

é preciso dos objetos

simples aos complexos.

E com a mecânica converso,

e da mente e a celeste.

Se a fantasia engana,

o mundo é a mesma corda

segurada no balde,

ou a gota pelo escuro

da paineira ou das moitas.

Renovar é volver

ao ponto de partida.

Olhar por dentro quando

é num relance a vista.

E o que aprendi a nada

me serviu. E quanto

me custou para adiante

servir-me. As novas ciências

eram noivas que possuí

sem casar com nenhuma.

Matemática, ordem

do universo, espuma

com voo em remos certos.

Mas uma filha tive.

Não, não era a ciência,

se aplaquei o desejo.

E de pensá-la ou percebê-la

existo. Quando nascer

é ato de vertigem.

Pulsando o coração,

como se um grito.

Ou barulho de riacho.

E eu, René Descartes, nada faço

sem antes refutar o preconceito,

a partir dos outros e de mim,

quando a razão que esposo

não demarca seu fim.

Nas coisas: beatitude

sem vestes, canavial

das horas. Nada se urde

no terror. Tais os anais

que longas ondas seguem

e um batel singra. Normas,

regras, tatos na constelar

matéria. E a verdade, martelo

na tensa natureza. Com a água,

movimento do impossível.

E os sentidos sem reparo

nos traem e há que abstrair

até a infância. Como este véu

que a vasta noite arranca.

Não quero que me encontrem,

mais que civilizado, francês,

viajor inveterado, por mim

avança a ideia infinita. Deus.

E a ciência que não

me deixou viver.

 

Poema de Carlos Nejar in "Os Viventes", edição Texto Editores, Ltda,2010, Brasil

´

 

 

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publicado às 16:37


#1492 - ANEL DO VENTO

por Carlos Pereira \foleirices, em 12.11.11

1.

 

Aqui tudo é julgamento.

Todos os atos vividos

tamborilam neste eito

e sou de mim saltimbanco.

E do que vem. Os viventes

se apresemtem. São tão reais

quanto sois. Não me desmentem.

 

2.

 

Sabei que esta forma humana

nem se compra nem vende.

Tampouco a força que jaz

sob a alma, renitente.

 

Ou a renitência

de ver, se desvendo

nas águas do poema

ou no seu olhar latente.

 

É vosso o que nele vedes.

 

3.

 

Viventes, o que sabeis

- que mundo o poema!-?

Em sua terra

nada se queima.

 

Viventes, o que sabeis

da morte e o resto

se nem sabemos de nós

no anel do vento?

 

Se nem sabemos de nós

ou donde o ingresso

na condição de estar só

com a alma ao menos

 

na alma de quem vos ama

dentro do poema.

Viventes, o que sabeis

da morte? O excesso

 

vinga com sua lei.

Tempo vivente

com estes que somos nós

e os que descendem.

 

Viventes, o que sabeis

deste poema?

Aqui está vivo quem

vivendo teima.

 

E cria a sua própria vez.

 

4.

 

Vos ponho nomes

- nomes não tendes -,

sois meus parentes

intransponíveis.

 

Ou apenas tendes

aqueles nomes

que vos pressentem:

sinete ou risca.

 

Aqueles nomes

de manjedoura

ou julgamento.

Nomes avulsos

 

e indossolúveis

a quem procura

desnomeá-los.

São criaturas

 

os nomes, naves.

E se designam

ao navegarem.

 

5.

 

Nós, os viventes

e conviventes

de um mundo antigo.

 

A rima é cântaro

perto da fonte.

 

Cântaro à noite

cântaro, cântaro

o ritmo um jorro

que se levanta.

 

6.

 

Vos ponho nomes

ou nome pondes

em quem vos põe.

 

Como se o lanço

dalguma escada

fosse alcançado

antes dos pés

ou a digital

de um ser viesse

antes do mal.

 

Ou nome tendes

antes de mim.

 

7.

 

Povo submisso

junto ao meu peito,

contigo fico.

O mais esqueço.

Contigo fico

quando for pátria

o nosso corpo,

esta fuligem.

Povo submisso

junto ao meu peito,

contigo fico.

O mais esqueço.

Contigo fico

quando for pátria

o nosso corpo,

esta fuligem

de sofrimento.

 

O mais nos foge.

 

8.

 

Vientes, jazemos

dsavindos.

 

Em força obstinada

mundo sempre domingo.

 

O galo não cantou.

Acordou um juízo.

 

A aurora sabe dosar

as coisas.

 

Que outros frequentam

a criação?

 

Tempos de um só,

sopesados e vivos.

 

Pode a moléstia mortal

ser entretida?

 

Apodrece a aurora.

 

Não nos conformamos

com o que não é luz.

 

Nossa pobre glória

sujeita ao vento,

à intempérie

da solidão.

 

9.

 

Não há pátria

a quem ama.

 

Porque não posso

separar o amor

do amante

que se faz a pátria dele.

 

E ser da solidão

é se perder.

 

10.

 

Ainda voltarei  a estes campos,

a este chão, ao zumbido

das abelhas pelo tempo

querendo voejar e nelas preso.

 

Ainda voltarei aos meus viventes

para vê-los andar comigo

às faldas da montanha.

 

Ainda voltarei: os mortos sabem

soluções piedosas

e as mormuram de ouvido.

 

Poema de Carlos Nejar, do livro Os Viventes, edição Leya Brasil 2011

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publicado às 19:56


#1464 - Decreto-Lei

por Carlos Pereira \foleirices, em 06.11.11

DECRETO-LEI

 

Desterrem o poeta.

Seu lugar não é aqui.

Nem onde, viventes,

pensais que seja.

Nem a imortalidade

dá-lhe pão ou água,

ou ar onde respira

a usura de existir.

Nômade, rebelde,

intruso, destemido,

talvez nemhum lugar

traga-lhe pouso.

E nem espera tanto,

estando velho, enfermo,

o desterro que concedeis

há muito se apura em viver

convosco a solidão

indestrutível. Desterrem

o insurrecto e que a vós,

viventes, poupem.

E o que firma o Decreto

tem o vosso semblante

e ao vos poupar, há

de poupar-se antes.

A república é um gato

que não entende o outro,

salvo o dono. E o poeta

é afrontoso, visionário,

obstinado em conjurar

as sombras que se agarram

ao dia. Subverte a razão

do Estado, por não ter

razão alguma. Contamina

a benevolência dos civis.

É animal desocupado,

o poeta. A alguns, inofensivo

como uma barata que olha

outra barata e acaba vendo

a glória, mais excelsa.

Ou néscia. Sua palavra

explode e mata, quando

a lágrima faz chover orvalho

sobre as ruas da infância.

E não há mais infância

nemhuma a defender.

E só ela pode convencê-lo

a calar e não se cala,

não renuncia à pólvora

da língua. Não renuncia

a nada, nem à luz da agonia.

Desterrem o poeta. Já se ouve

o bramido da tábua do mar,

já se ouvem os bárbaros cercando

a democracia de ganidos.

Os bárbaros, os bárbaros

não poupam nem os mortos.

Só os viventes resistem;

a república não sabe expiar

as suas culpas, cenários

que prende no viveiro.

E até os cães perseguem

o poeta com seus dentes

de léguas. E a palavra

ao cão persegue e o cão

a outro. E não carece

o poeta de vossa caridade

desatenta. Carece da praça

de uma palavra apenas:

a praça de um soluço.

Desterrem o poeta.

E ficará vossa consciência

em paz, junto aos vindouros.

Desterrem o poeta.

Desterrem o futuro.

 

Poema de Carlos Nejar in "Os viventes"

 

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publicado às 20:44


#1461 - Ulisses

por Carlos Pereira \foleirices, em 06.11.11

 

ULISSES

 

 

Vaguei dez anos

desde Troia.

 

Não sou herói,

mas homem

marcado pela pátria.

 

Fui povo.

E por amar o tempo

combatendo,

eu vim do Inferno.

 

Andante

de praias e mulheres,

nenhuma aurora

comigo velejava,

embora velejasse

mais tarde

com meus ossos.

Circe era um corpo

apenas e na alma

o limite saturava.

 

Nem Calipso, a ninfa,

conteve o meu exílio.

 

Amarrado ao mastro,

tapados os ouvidos,

apaziguei a morte

e seu coro celeste.

 

Ninguém eu sou.

No inferno vi Tirésias.

Consultei na sombra dele

a sombra da minha mãe

e a sombra deste barco

que me leva.

 

Ninguém eu sou

sem pátria

e a ela escrevo

a eternidade

em mim.

 

Na espuma escrevi

Penélope e meu filho.

Povo escrevi. Destino.

 

Regressei. Pedinte fui,

revi Argos - meu cão -

e aos pretendentes

com mão certeira

revelei a morte.

 

E uma cicatriz

me desvendou.

 

Ninguém

é Ulisses por acaso.

 

 

Poema retirado do livro "Os viventes" de Carlos Nejar.

 

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publicado às 19:07


#1458 - Livros e Leituras - Os Viventes

por Carlos Pereira \foleirices, em 04.11.11

 

 

Os viventes é obra única, orginalmente lançada em 1979 e definida pelo crítico literário português Eugénio Lisboa como um livro que reune "algo de austeramente bíblico" e uma "poesia fraternal, que julga, mas conforta, e nos dá fórmulas simples de vida e entre-ajuda".

 

Nestes poemas, Carlos Nejar não expressa apenas sua profunda afeição pelos seres reais e imaginários, mas procura resgatar de cada um a sua anima, aquela essência tantas vezes esquecida ou menosprezada. Para o poeta, todas as criaturas - do torturado Jó ao exploradoe Roald Amundsen, de um inseto ao filósofo Friedrich Nietzsche - estão de alguma forma unidas, pois "não há pátria / a quem ama".

 

A esta edição foram acrescentados 300 novos poemas.

 

Edição brasileira editada pela Leya em 2011.

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publicado às 19:04


#1422 - A Adolescência de Holderlin

por Carlos Pereira \foleirices, em 21.06.11

Alberto da Costa e Silva

 

 

A Adolescência de Holderlin

 

 

Os deuses correm sobre a relva e atam

o sol ao seu redor.

Lançam o efémero

amanhecer no areal.

 

E, sendo a venda

que levam sobre os olhos pouco espessa,

aprendem nossos rostos,

para a morte.

Nosso fel escondido

só veriam

e o escuro das vísceras,

se, amantes,

não suasse a beleza em nossa pele.

(Por isso, contra os deuses,

há o eterno.)

 

(Ao lado de Vera)

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publicado às 21:40


#1421 - Celestial

por Carlos Pereira \foleirices, em 21.06.11

Álvaro Alves de Faria

 

Celestial

 

 

Quando tentei ser santo,

queria apenas ser um santo

sem compromisso

de fazer milagres.

 

Seria uma espécie de santo avulso,

desses que permanecem

desconhecidos no céu

e que só vêem Deus

de muito longe,

sem direito a carro oficial.

 

 

(Terminal)

 

poema de Álvaro Alves de Faria

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publicado às 19:41


#1415 - Marechiave

por Carlos Pereira \foleirices, em 17.06.11

António Fernando de Francheschi

 

Marechiave

 

te darei o braço se me pedes

para lançares a rede na rebentação

se me pedes te darei os olhos

para abarcares o arco da baía

também tuas serão as mãos se me pedes

safas para recolher velames

se me pedes te darei o ventre de escamas

e os pés para o mergulho se me pedes

os cabelos te darei para a última coreografia

e as coxas para a orgia

se me pedes a boca será tua

para as palavras finais

e mais te darei se me pedes

tudo

menos a chave do mar

 

 

(Tarde Revelada)

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publicado às 23:28


#1414 - No Embarcadeiro da Volta

por Carlos Pereira \foleirices, em 17.06.11

Bruno Tolentino

 

No Embarcadeiro da Volta

 

 

Em Portugal, onde anda um sol  que se demora

a diluir uma erosão crepuscular;

no embarcadeiro dos fantasmas a esticar

constantemente o coração que se evapora,

 

que busca a luz que vem de dentro para fora

e nunca a luz das coisas como são; no pomar

da árvore de ouro, nem a árvore agora

nem a outra, a ancestral cansada de durar;

 

em Portugal, lugar do velho escoadouro

de todo um continente, deste Ocidente inteiro,

terminal das paixões peregrinas primeiro

 

e enfim partida aos precipícios do vindouro,

é ali que toca ao coração do brasileiro

despedir-se de Europa e entender-se com o touro

 

(Os Deuses de Hoje)

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publicado às 23:17


#1413 - Luis Vaz de Camões

por Carlos Pereira \foleirices, em 17.06.11

Carlos Nejar

 

 

Luis Vaz de Camões

 

 

Não sou um tempo

ou uma cidade extinta.

Civilizei a língua

e foi resposta em cada verso.

E à fome, condenaram-me

os perversos e alguns

dos poderosos. Amei

a pátria injustamente cega,

como eu, num dos olhos. E não pôde

ver-me enquanto vivo.

Regressarei a ela

com os ossos de meu sonho

precavido? E o idioma

não passa de um poema

salvo da espuma

e igual a mim, bebido

pelo sol de um país

que me desterra. E agora

me ergue no Convento

dos Jerónimos o túmulo,

quando não morri.

Não morrerei, não

quero mais morrer.

 

Nem sou cativo ou mendigo

de uma pátria. Mas da língua

que me conhece e espera.

E a razão que não me dais,

eu crio. Jamais pensei

ser pai de tantos filhos.

 

(Os viventes)

 

 

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publicado às 22:57


#1407 - Reunião familiar

por Carlos Pereira \foleirices, em 15.06.11

Mário Chamie

 

Reunião Familiar

 

 

O homem trouxe

o pão

o suor

a paixão

para a mesa da família.

 

A mulher trouxe

o pano

a paciência

o perdão

para a hera da partilha.

 

Entre o prato

e a comida,

este filho

e esta filha

dividiram a solidão

de outra fome

já perdida.

 

 

(Natureza da coisa)

 

Poema de Mário Chamie

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publicado às 15:46


#1404 - Remorso histórico

por Carlos Pereira \foleirices, em 12.06.11

Affonso Romano de Santa'Anna

 

 

 

Jovem, tentei escamotear. Impossível.

Culpado eu era. O quanto não sabia.

 

Fui eu quem armou a mão de Brutus

na traição a César no Senado.

Fui eu quem traiu Atahualpa, o inca,

e dizimou os astecas.

Fui eu quem matou o czar e sua família

e ateou fogo à aldeia vietnamita

e toda noite comete execráveis crimes

na tevê.

 

Se não fui eu

quem morreu em Waterloo e traiu em erdun,

se não fui eu

quem torturou o guerrelheiro argelino-argentino

se não fui eu

quem matou Lorca. Chatterton e Maiakovski,

então,

por que essa insônia,

             esse impulso de entrar na primeira delegacia

             e declarar: me Prendam!

 

Se não fui eu,

             então por que volto sempre tenso ao local do crime

             deixando ali vestígios e poemas?

 

                                      

                                               (O Lado Esquerdo do meu Peito)

 

 

poema de Affonso Romano de Santa'Anna

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publicado às 22:20


#1301 - As mentiras do poeta

por Carlos Pereira \foleirices, em 07.06.10

Assista a trechos do documentário "Só dez por cento é mentira" sobre o poeta fingidor Manoel de Barros

 

"O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente." Os versos, do português Fernando Pessoa, se adequam perfeitamente a Manoel de Barros, advogado de formação, "fazendeiro por necessidade e poeta por ócio".

Nascido em 19 de dezembro de 1916, em Cuiabá, no Mato Grosso, o autor é filho do capataz João Venceslau Barros e de Alice Pompeu de Barros, de quem afirma ter herdado a sensibilidade - que, para ele, "é transmitida pelo sangue". Mergulhado na arte de "não fazer nada", como chama o ato de escrever, criou a série de livros "Memórias Inventadas - A Infância, A  Segunda Infância e A Terceira Infância".

Aos 93 anos, Manoel diz a verdade quando se define como um mentiroso. Afinal, com um punhado de histórias fictícias, construiu para si toda uma biografia.

 

In Revista

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publicado às 01:00


#1295 - Prémio Camões distingue Ferreira Gullar

por Carlos Pereira \foleirices, em 01.06.10

 

O poeta e dramaturgo brasileiro Ferreira Gullar é, desde ontem, o mais recente Prémio Camões. O anúncio foi feito pela ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, na presença dos membros do júri, e volta a galardoar a poesia como já acontecera em 1989 com Miguel Torga, o primeiro distinguido.

 

Um instante

Aqui me tenho
como não me conheço
nem me quis

sem começo
nem fim

aqui me tenho
sem mim

nada lembro
nem sei

à luz presente
sou apenas um bicho
transparente

 

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publicado às 17:27


#1227 - 4 Poemas de Mário Faustino

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.02.10

 

VIDA TODA LINGUAGEM

 

Vida toda linguagem,

frase perfeita sempre, talvez verso,

geralmente sem qualquer adjetivo,

coluna sem ornamento, geralmente partida.

Vida toda linguagem,

há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome

aqui, ali, assegurando a perfeição

eterna do período, talvez verso,

talvez interjetivo, verso, verso.

Vida toda linguagem,

feto sugando em língua compassiva

o sangue que criança espalhará - oh metáfora ativa!

leite jorrado em fonte adolescente,

sêmen de homens maduros, verbo, verbo.

Vida toda linguagem,

bem o conhecem velhos que repetem,

contra negras janelas, cintilantes imagens

que lhes estrelam turvas trajetórias.

Vida toda linguagem --

como todos sabemos

conjugar esses verbos, nomear

esses nomes:

amar, fazer, destruir,

homem, mulher e besta, diabo e anjo

E deus talvez, e nada

Vida toda linguagem,

vida sempre perfeita,

imperfeitos somente os vocábulos mortos

com que um homem jovem, nos terraços do inverno, con-

[tra a chuva,

tenta fazê-la enterna - com se lhe faltasse

outra, imortal sintaxe

à vida que é perfeita

língua

eterna.


 

 

 

SINTO QUE O MÊS PRESENTE ME ASSASSINA

 

Sinto que o mês presente me assassina,

As aves atuais nasceram mudas

E o tempo na verdade tem domínio

Sobre homens nus ao sul de luas curvas.

Sinto que o mês presente me assassina,

Corro despido atrás de um cristo preso,

Cavalheiro gentil que me abomina

E atrai-me ao despudor da luz esquerda

Ao beco de agonia onde me espreita

A morte espacial que me ilumina.

Sinto que o mês presente me assassina

E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas

De apóstolos marujos que me arrastam

Ao longo da corrente onde blasfemas

Gaivotas provam peixes de milagre.

Sinto que o mês presente me assassina,

Há luto nas rosáceas desta aurora,

Há sinos de ironia em cada hora

(Na libra escorpiões pesam-me a sina)

Há panos de imprimir a dura face

À força de suor, de sangue e chaga.

Sinto que o mês presente me assassina,

Os derradeiros astros nascem tortos

E o tempo na verdade tem domínio

Sobre o morto que enterra os próprios mortos

O tempo na verdade tem domínio,

Amém, amém vos digo, tem domínio

E ri do que desfere verbos, dardos

De falso eterno que retornam para

Assassinar-nos num mês assassino.


 

EGO DE MONA KATEUDO

 

Dor, dor de minha alma, é madrugada

E aportam-me lembranças de quem amo.

E dobram sonhos na mal-estrelada

Memória arfante donde alguém que chamo

Para outros braços cardiais me nega

Restos de rosa entre lençóis de olvido.

Ao longe ladra um coração na cega

Noite ambulante. E escuto-te o mugido,

Oh vento que meu cérebro aleitaste,

Tempo que meu destino ruminaste.

Amor, amor, enquanto luzes, puro,

Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,

Ouvindo as asas roucas de outro dia

Cantar sem despertar minha alegria.


 

BALADA

(Em memória de uma poeta suicida)

 

Não conseguiu firmar o nobre pacto

Entre o cosmos sangrento e a alma pura.

Porém, não se dobrou perante o fato

Da vitória do caos sobre a vontade

Augusta de ordenar a criatura

Ao menos: luz ao sul da tempestade.

Gladiador defunto mais intacto

(Tanta violência, mas tanta ternura),

 

Jogou-se contra um mar de sofrimentos

Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim

Para afirma-se além de seus tormentos

De monstros cegos contra só um delfim,

Frágil porém vidente, morto ao som

De vagas de verdade e de loucura.

Bateu-se delicado e fino, com

Tanta violência, mas tanta ternura!

 

Cruel foi teu triunfo, torpe mar.

Celebrara-te tanto, te adorava

De fundo atroz à superfície, altar

De seus deuses solares - tanto amava

Teu dorso cavalgado de tortura!

Com que fervor enfim te penetrou

No mergulho fatal com que mostrou

Tanta violência, mas tanta ternura!

 

Envoi

 

Poemas de Mário Faustino retirados do livro "O Homem e sua hora"

 

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publicado às 19:13


#1198 - Carlos Drummond de Andrade

por Carlos Pereira \foleirices, em 14.02.10



ODE A JACKSON DE FIGUEIREDO


JACKSON,

nem amigo nem inimigo,

nem mesmo (o que seria cómodo) espectador displicente na sua poltrona

espiando teus gestos, tuas palavras e obras,

mas distante, extraordinariamente distante daquilo que foi a tua vida,

mais distante ainda dos mundos que exploraste, viajante inquieto, sem

tempo para esgotá-los,

e só te conhecendo bem depois que abriste os braços para morrer,

aqui estou, testemunha, depondo.


Jackson,

os que te conheceram e te amaram,

os que te conheceram e não te amaram,

os que não tiveram tempo de te amar,

os que não cruzaram no teu destino, os que ignoram o teu nome, os que jamais saberão que exististe,

estão todos um pouco mais pobres do que eram antes.

Uns perderam o amigo.

Outros, o inimigo, o grande e belo inimigo que orgulha.


Outros nada perderam, e é tão triste, tão doloroso não perder nada.

Como estes, eu me sinto pobre da pobreza de não ter sido dos teus, Jackson,

e eu sinto verdadeiramente por todos aqueles que jamais suspeitarão disso.


Voltou o tempo dos prodígios.

Ainda há pescas maravilhosas, eu sei,

e os peixes que arrebataste a um mar mais crespo que o de Tiberíades

estão cantando a glória do Senhor.


Milhares de escamas, milhares de dorsos, de luzes, de almas

elevam um cântico tão puro que a terra se mistura com o céu

e nem se percebe o pescador que as ondas arrebatam,

que as ondas arrebatam violentamente, para depois se apaziguar,

enquanto o corpo mergulha e os peixes cantam a glória do Senhor.


Agora sentimos que estás msi perto de nós,

que por obscuros caminhos nos chegamos mais a ti,

(pouco importam as ondas e esta camada de terra que nos separa de tuas espécies em decomposição).

Muitas coisas nos ensinou a tua morte, que a tua boca nõao soubera exprimir

e a tua pesca mais opulenta, Jackson, foi a de ti mesmo pelo oceano,

pesca terrível e prodigiosa de amor e de redenção.


Belo Horizonte, 1929

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publicado às 23:56


#1191 - 5 Poemas de Antonio Cicero

por Carlos Pereira \foleirices, em 11.02.10

cinco poemas – antonio cicero


Aparências

Não sou mais tolo não tenho mais queixas:
enganasse-me mais desenganasse-me mais
mais rápida mais tempo mais voraz e arrebatadora
mais volúvel mais volátil
mais aparecesse para mim e desaparecesse
mais velasse mais desvelasse mais revelasse mais re-
velasse mais
eu viveria tantas mortes
morreria tantas vidas
jamais me queixaria
jamais.




Capricciosa

É claro que estou exposto
eu como todos os outros
animais às intempéries
que cedo ou tarde nos ferem;
mas aqui a noite, seda,
suavemente me enleia:
espelhos olhares vinhos
uvas cachos rosas risos
e ali, do lado de lá
das lâminas de cristal
tão tranqüila e cintilante
quanto o céu, sonha a cidade.
Desperta-me um celular:
a morte também tem arte.




Balanço

A infância não foi uma manhã de sol:
demorou vários séculos; e era pífia,
em geral, a companhia. Foi melhor,
em parte, a adolescência, pela delícia
do pressentimento da felicidade
na malícia, na molícia, na poesia,
no orgasmo; e pelos livros e amizades.
Um dia, apaixonado, encarei a minha
morte: e eis que ela não sustentou o olhar
e se esvaiu. Desde então é a morte alheia
que me abate. Tarde aprendi a gozar
a juventude, e já me ronda a suspeita
de que jamais serei plenamente adulto:
antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos
os deuses façam felizes e maduros
Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.




Ícaro

Buscando as profundezas do céu
conheceu Ícaro as do mar

Adeus poeira olímpica
grãos da Líbia
barcos de Chipre

Adeus riquezas de Átalo
vinhos do Mássico
coroas de louro
flautas e liras

Adeus cabeça nas estrelas,
Adeus amigos
mulheres
efebos
Adeus sol:
Ouro algum permanece.




A morte de Arquimedes de Siracusa

Os equilíbrios dos planos, as quadraturas
das parábolas, os cálculos da areia,
das esferas, dos cilindros e das estrelas:
nada do que realizei se encontra à altura
do que há por fazer. A matemática é longa,
a vida breve; e logo agora Siracusa,
sitiada, quer alavancas, catapultas,
dispositivos catóptricos, cuja obra
suga meu sangue, que é meu tempo. Por milagre,
hoje deixaram-me em paz. Na garganta trago
intuições por formular: áspero e amargo
pássaro engasgado. Nas paredes não cabe
mais diagrama algum. Traço-os no chão do períbolo,
na terra. Quem vem lá? Não pises nos meus círculos!

O poeta e ensaísta Antonio Cicero é autor, entre outras coisas, dos livros de poemas Guardar (1996) e A cidade e os livros (2002), e dos livros de ensaios filosóficos O mundo desde o fim (1995) e Finalidades sem fim (2005). Organizou, em parceria com o poeta Waly Salomão, O relativismo enquanto visão do mundo (1995) e, em parceria com o poeta Eucanaã Ferraz, a nova antologia poética de Vinícius de Moraes (2003). É também compositor de inúmeras letras de música popular, tendo parceiros como Marina Lima, Adriana Calcanhotto e João Bosco, entre outros. Atualmente escreve uma coluna para o jornal Folha de São Paulo

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publicado às 07:18


#1156 - Retrato

por Carlos Pereira \foleirices, em 27.01.10

 

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?

 

Poema de Cecíla Meireles

 

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publicado às 16:57


#1014 - Ferreira Gullar

por Carlos Pereira \foleirices, em 07.11.09



ARTE POÉTICA


Não quero morrer não quero

Apodrecer no poema

Que o cadáver de minhas tardes

Não venha feder em tua manhã feliz

               E o lume

Que a tua boca acenda acaso das palavras

- ainda que nascido da morte -

                    some-se

                    aos outros fogos do dia

aos barulhos da casa e da avenida

                      no presente veloz


Nada que se pareça

a pássaro empalhado múmia

de flor

dentro do livro

                             e o que da noite volte

volte em chamas

               ou em chaga


                  vertiginosamente como o jasmim

que num lampejo só

ilumina a cidade inteira


Poema de Ferreira Gullar

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publicado às 22:54


O último poema

por Carlos Pereira \foleirices, em 12.05.09


 

Manuel Bandeira

 



Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

 


Poema extraído do livro " Manuel Bandeira — 50 poemas escolhidos pelo autor", Ed. Cosac Naify – São Paulo, 2006, pág. 35.

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publicado às 16:36


Ferreira Gullar

por Carlos Pereira \foleirices, em 31.03.09

Ferreira Gullar. Um intelectual que é, acima de tudo, poeta
Ferreira Gullar. Um intelectual que é, acima de tudo, poeta

 

Revista BRAVO! | Março/2009

O Maior Poeta do Brasil

Reedição da obra e novos lançamentos preparam as comemorações dos 80 anos de Ferreira Gullar, um autor que atravessou todos os momentos da poesia brasileira e assegurou seu lugar entre os grandes do século 20

Por Almir de Freitas

Leia também entrevista com o autor feita por Armando Antenore

Sobre Ferreira Gullar, ninguém menos que Vinicius de Moraes escreveu, em 1976, que se tratava do "último grande poeta brasileiro". Na época, o maranhense estava exilado em Buenos Aires, depois de cumprir um longo périplo — Moscou, Santiago, Lima — fugindo da mão pesada da ditadura militar. Ali, um ano antes, espremido entre os golpes no Chile e na Argentina, temendo "desaparecer" em meio à proliferação de ditaduras latino-americanas, Gullar tinha escrito a sua obra-prima, Poema Sujo (1975). Poema-limite, vertiginoso na evocação da São Luís da infância do poeta, das histórias, personagens e sensações prestes a mergulhar no esquecimento da morte, Poema Sujo levaria o nome de Ferreira Gullar, de fato, ao panteão mítico dos grandes nomes da poesia brasileira, ao lado de Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e — à parte a modéstia do próprio — Vinicius de Moraes.

Se ele não era exatamente o "último" naquela época, hoje não são poucos os que o consideram o maior poeta vivo do Brasil — e não apenas pelo impacto de Poema Sujo. Nascido José Ribamar Ferreira no dia 10 de setembro de 1930, o também dramaturgo, ficcionista e crítico se aproxima das comemorações de seus 80 anos de idade não como mero sobrevivente de uma era que passou. Ferreira Gullar é, antes, um intelectual e um escritor a quem não falta o gosto pelo estudo, pelo debate e, sobretudo, pela poesia. Só neste ano, a editora José Olympio prepara a edição de dois volumes: uma reunião dos poemas de cordel escritos pelo autor nos anos 70, ilustrados pelo artista paraibano Ciro Fernandes; e Em Alguma Parte Alguma, seu novo livro de poemas, o primeiro desde Muitas Vozes (1999). Além disso, a Nova Aguilar acaba de lançar Ferreira Gullar — Poesia Completa, Teatro e Prosa, um volume de mais de mil páginas que traz, além da obra poética completa acompanhada de farta bibliografia, a reunião de textos antes esparsos, duas peças de teatro e um ensaio inéditos.

São 60 anos de carreira, período em que ele atravessou, ativamente, todos os episódios decisivos da moderna poesia brasileira. Da mesma maneira que sua obra se localizou em algum ponto entre dois extremos — o lirismo e a sordidez, o local e o universal, a multidão de vozes e a solidão —, sua trajetória revela um poeta que oscilou entre a ousadia aberta e a prevenção contra os formalismos ocos. Parafraseando Caetano Veloso, pode-se dizer que Ferreira Gullar "entrou em todas as estruturas e saiu de todas", num movimento contínuo de experimentação de sintaxes em busca do aperfeiçoamento da própria voz — uma busca pelo novo em que ele nunca perdeu de vista suas origens.

Foi assim desde quando, ainda no Maranhão e incrivelmente atrasado em relação aos modernistas, Ferreira Gullar estreou na literatura, em 1949, com as redondilhas, decassílabos e alexandrinos de Um Pouco Acima do Chão, livro de lustroso sotaque parnasiano. "Talvez eu nasça amanhã", diz o último verso do último poema desse livro que ele, mais tarde, renegaria. Como se cumprisse uma profecia, o poeta, já vivendo no Rio de Janeiro, abandonou a régua e a rima no livro A Luta Corporal (1954). E o fez com autoridade e desassombro: na concepção de uma poesia visual, formada por estilhaços de palavras que exploravam novas possibilidades sonoras, Gullar não apenas superava certo prosaísmo que rondava a poesia do modernismo da época, como também antecipava os procedimentos do concretismo. Poeta visceral, ele, contudo, desembarcou do movimento atirando contra a racionalização "matemática" promovida pelo grupo paulista — Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos à frente. O racha provocou uma das cizânias mais persistentes e ferozes da literatura brasileira, até hoje responsável por uma resistência a Gullar em certos círculos de São Paulo.

O ciclo, poém, estava estabelecido. Inovador mas avesso ao dogma, Gullar deu prosseguimento, na prática, à profunda reflexão sobre o papel da poesia. Em 1959, lançou as bases do movimento neoconcreto, a partir do qual construiu o corpo principal de sua (polêmica) abordagem das artes plásticas. Já nos anos 60, ingressou no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes, iniciando uma fase "popular" e engajada politicamente, cujas ramificações se estenderam ao teatro. Mas, se as frias ortodoxias estéticas não serviam a Gullar, o mesmo se aplicaria às normatizações de uma arte concebida como assessório da revolução social.

Na soma dessas idas e vindas, forjou a poesia que conquistaria Vinicius de Moraes. Naquele ano de 1976, foi Vinicius quem trouxe ao Brasil a fita cassete gravada pelo próprio Ferreira Gullar com Poema Sujo, promovendo "sessões" no Rio de Janeiro para exibir a todos a poesia "orgânica, crua, fecunda, emocionante" daquele intelectual maranhense que, no exílio, procurava traduzir a totalidade de sua própria existência.

O curioso é que a crueza de

Poema Sujo

— e também de

Dentro da Noite Veloz

(1975) — teve a capacidade tanto de elevar Ferreira Gullar àquele panteão mítico de poetas quanto de aproximá-lo (por conta das circunstâncias, inclusive) da "poética deliberadamente impura da poesia marginal", na expressão do crítico José Guilherme Merquior. Nesse momento, Ferreira Gullar, que voltaria ao Brasil em 1977, ainda trafegava naquele território entre os extremos. Viveu os movimentos do seu tempo, apontou caminhos, experimentou. Mas sempre, ontem como hoje, desempenhando o papel de tradutor de sua própria história, a de um homem que — como todos — está num ponto difuso entre a infância e a morte.

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publicado às 23:32


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