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#3353 - POEMA DE ÓSSIP MANDELSTAM

por Carlos Pereira \foleirices, em 05.03.24

O corpo me é dado - e com que fim,

Meu corpo único, tão de mim?

 

Pela alegria chã de respirar,

Silenciosa, a quem devo çlouvar?

 

Sou jardineiro e sou flor - cativo

Na prisão do mundo sozinho não vivo.

 

E já nos vidros da eternidade

Cai meu calor, meu sopro respirado.

 

Nela se grava um desenho para xsempre,

Irreconhecível de tão recente.

 

Escorra do momento a água turva - 

O desenho amado não esbate à chuva.

______________

1909

POEMA DE ÓSSIP MANDELSTAM, DO LIVRO "CREPÚSCULO DA LIBERDADE" EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JUNHO 2023

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publicado às 14:49


#3352 - LIVROS E LEITURAS

CREPÚSCULO DA LIBERDADE - ÓSSIP MANDELSTAM

por Carlos Pereira \foleirices, em 05.03.24

Óssip Mandelstam

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publicado às 14:29


#3351 - GUARDADOS DA CASA LONGA

UM POEMA DE MAR BECKER

por Carlos Pereira \foleirices, em 03.03.24

MAR BECKER

 

as meninas da casa se inclinam sobre as janelas, nos parapeitos

e dormem

 

quem vê da rua, pensa que são as próprias janelas que estão

sonhando

 

e que sonhar é algo como o transbordamento

dos cabelos

 

POEMA DE MAR BECKER, DO LIVRO «CANÇÃO DERRUÍDA», EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JANEIRO DE 2023

 

 

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publicado às 18:45


#3350 - OS NOVOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO

por Carlos Pereira \foleirices, em 20.02.24

A rua escorre até ao rio e termina aí

Tímida sem um motivo de interesse

Repugnante

Despida de árvores e de casas

Apenas com barracas  de paredes de zinco

Onde rasteja a mais miserável das mais miseráveis condições humanas

Semivivos, cuja riqueza são as inúmeras doenças que o corpo esconde.

E os esgotos a céu aberto

Onde as moscas se divertem

A picar cães e gente muito miúda.

 

A rua tem vergonha e com uma vontade irresitível

De se afogar no ventre do rio mas no último instante desiste

E assim continua até que a vontade e depois o arrependimento

Tome conta do seu espírito e da sua vontade

Talvez a esperança de melhores dias

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publicado às 15:34


#3348 - ESTÁ QUALQUER COISA A BATER À PORTA

Poema de Charles Bukowski

por Carlos Pereira \foleirices, em 16.02.24

ESTÁ QUALQUER COISA A BATER À PORTA

 

uma grande luz branca amanhece sobre o 

continente

enquanto adulamos as nossas tradições falhadas,

muitas vezes matamos para as preservar

ou às vezes matamos só por matar.

parece não ter importância: as respostas balouçam

fora do alcance,

fora de mão, fora da mente.

 

os líderes do passado eram insuficientes,

os líderes do presente não estão preparados.

enroscamo-nos nas nossas camas à noite e esperamos.

é uma espera sem esperança, uma

oração pedindo graças imerecidas.

 

tudo se parece cada vez mais com o mesmo velho

filme.

os actores são diferentes mas o enredo é o mesmo:

absurdo.

 

devíamos ter aprendido ao observar os nossos pais.

devíamos ter aprendido ao observar as nossas mães.

eles não sabiam, eles próprios não estavam preparados

para ensinar.

éramos demasiado ingénuos para ignorar os seus

conselhos

e agora adoptámos a sua

ignorância como

nossa.

somos eles, multiplicados.

somos as suas dívidas não saldadas.

estamos falidos

de dinheiro e

de espírito.

 

há algumas excepções, claro.

mas estas oscilam

sobre o precipício

e a qualquer momento

caírão para se juntar

a nós,

os delirantes, os derrotados, os cegos e os tristemente

corruptos.

 

uma grande luz branca amanhece sobre o

continente,

as flores abrem-se cegamente no vento fétido,

enquanto o nosso século XXI, 

grotesco e em última instância

inabitável,

se esforça por

nascer.

 

Poema de Charles Bukowski retirado do livro «Os cães ladram facas [Antologia Poética]» edição Alfaguara, Novembro de 2018

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publicado às 13:41


#3347 - ESCREVER

UM POEMA DE CHARLES BUKOWSKI

por Carlos Pereira \foleirices, em 12.02.24

buk

CHARLES BUKOWSKI

 

ESCREVER

 

começas a sorrir

todo agitado

por dentro

enquanto as palavras saltam

dos teus dedos

para as teclas

e é como um

sonho de circo;

tu és o palhaço, o domador de leões,

és o tigre,

és tu próprio

enquanto

as palavras saltam

através de arcos em chamas,

e fazem triplos mortais

de trapézio em

trapézio, e

abraçam o 

Homem-Elefante

enquanto

os poemas continuam a surgir,

um a um

escorregando para

o chão,

e tudo vai na esgalha e bem;

as horas passam

e logo 

acabaste,

vai até ao quarto,

atira-te para cima da cama

e dorme o sono dos justos

aqui na terra,

por fim, a vida perfeita.

 

a poesia é o que acontece

quando nada mais pode.

 

Poema de Charles Bukowski, do livro «Os cães ladram facas - Antologia Poética», edição Alfaguara, Novembro de 2018.

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publicado às 11:46


#3342 - ATÉ BREVE

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.01.24

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FRANCISCA RIBEIRO (Pormenor)

 

ATÉ BREVE

O espanto fixou-se nas pálpebras

E a tua alma brilhou e ficou transparente revelando quem nela habita:

Espíritos; Espantos; Sorrisos; Encontros; Fins de tarde outonais; Madrugadas de Coral,

E o teu rosto de olhos verdes e boca de diamantes gravado em pedra rara,

lembrando o Taj Mahal que conheceste e amaste. e onde gostarias de ter voltado.

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publicado às 16:33


#3339 - INQUIETAÇÕES

por Carlos Pereira \foleirices, em 22.01.24

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INQUIETAÇÕES

 

Vozes inquietas incendeiam bocas de fogo e

resgatam perguntas antigas tantas vezas feitas

que nunca foram respondidas

ou foram omitidas, olvidadas, assassinadas.

As palavras podem ser uma arma,

podem ser poderosas, mas também podem ser frágeis

quando se tornam incómodas e 

o seu destino pode ser a fogueira.

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publicado às 17:12


#3338 - ESCREVO AGORA COMO QUEM ME DÁ A MÃO

UM POEMA DE LEONARDO MARONA

por Carlos Pereira \foleirices, em 21.01.24

ESCREVO AGORA COMO QUEM ME DÁ A MÃO

 

aqui te embalo para  sempre em meus sonhos, 

a ti, o próprio, fruto de todo prazer indubitável,

a quem ferimps com nomes e histórias de famílias,

mas que está aqui e agora, ainda circulando em peixe

dentro das veias e da pulsação que nos levará à morte

e estar diante desta inafiançável situção é também

uma chance de  contrapor a essa pobre velha cansada,

a morte, e que respeito tenho por ti, ò morte, agora,

quando me faltam as veias e as batidas do coração,

como à velha mãe faltaram na hora  do  enterro cego,

é você que guia os passos que não damos, a dor

que sentimos enquanto dizemos sou eu que sinto,

mas é mais que outra coisa, é mais que tudo isso,

e seria tão só você pudesse esta mesma coisa louca:

estar ao menos bem vestida quando me cuspisse da

seus tenebrosos  decassílabos, além do que odeio

o cheiro do seu caviar russo, e antecipo suas cáries.

 

POEMA DE LEONARDO MARONA, RETIRADO DO LIVRO "NAQUELA LÍNGUA - CEM POEMAS E ALGUNS MAIS" (Antologia da Novíssima Poesia Brasileira)

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publicado às 12:23


#3334 - LOENDRO

Um poema de José-Alberto Marques

por Carlos Pereira \foleirices, em 02.01.24

Rosa-loura

E canta-se que um dia era a tua boca uma concha, um vidro de metal cheio de melodia e esponjas encontrado no loesse, ao lado dos detritos e do vento passado, assim uma forma de raio ou cometa, latejante no caudal do núcleo onde se abrigava o sono interminável, eu disse dessa fonte o canto, o amarelo, a cor própria de deixar as mãos ao poente enquanto partia para o teu silêncio e para a tua ausência, e eis a despedir-me à beira do sol, junto das pedras, por dentro, com uma cicatriz,

com sabor, saborosamente viajando a morte e o seu espanto, abrindo portas e janelas, numa visita ao espelho e à memória, descendo ruas, o peito ao longo das avenidas, das cidades noturnas, das navalhas cintilantes, do

revérbero das lâminas, com o pullover e a língua, Dusseldorf, Marselha, a fonte verde,

correndo,

senta-se na Índia uma e outra e outra alvéola sobre a árvore de folha perene, aos bandos, como em baixo lofíneos desenham circunferências molhadas e é pela tarde que a neblina insinua e o corpo estremece, ah os  frutos maduros de

quem rasga a pele do animal ferido, recoberto de feltro, cravado de ferros junto a

loucura navegando

as águas de mágoas em

as súbitas

as margens de

o loendro

 

Poema de José-Alberto Marques in "Loendro", Editora Átrio, 1991

_____________________________________________________________________________________________

Natural de Torres Novas, frequentou a Licenciatura em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Obrigado a abandonar os estudos por razões económicas, exerceu diversas  profissões ao mesmo tempo que fazia o Curso de História. Radicado em Abrantes desde a década de 1960, foi professor efetivo de Português na Escola D. Miguel de Almeida. Das diversas atividades de intervenção cultural e artística, destaque-se participação no segundo número da revista Poesia Experimental (1966), Operação 1 (1967) e na Conferência-Objecto (Galeria Quadrante, 1967). Recebeu o 1º Prémio Nacional de Literatura Infantojuvenil nas comemorações dos 20 anos do 25 de Abril, com o livro A Magia dos Sinais (1996). Em 1996 recebeu a medalha da cidade de Abrantes. Ligada ao movimento da poesia experimental portuguesa desde as suas primeiras manifestações no final de década de 50, a obra de José-Alberto Marques alia a experimentação fonossemântica e grafossemântica com um lirismo autobiográfico e uma aguda consciência social e política. O quotidiano pessoal surge reenviado ao espaço social coletivo, e a insistente presença de um e de outro são reflexivamente interrogadas pela materialidade da língua e da escrita. Estas são, por vezes, objeto de operações de fragmentação e constelação gráfica, mas também de experimentação narrativa.

 

Fonte: WOOK

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publicado às 14:57


#3333 - UM POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 01.01.24

 

Os amantes imponderáveis são archotes da matéria na sua frondosa verdura

e através da distância perfumada cintilam como as constelações

Como é magnífica a ébria lucidez do esplendor

e como é alta elástica e incandescente essa torre vermelha

que os dois corpos formam numa coluna do universo!

Uma lua desdobra-se num grande leque branco

enquanto o fogo dança sob os arcos nas grutas efervescentes

As pálpebras fecham-se para ver melhor as linhas do cristal

da nudez revelada com os seus veios e anéis de mercúrio e ouro

Despenham-se um no outro como violentas dunas

e na vermelha colmeia da amante o tenso peixe explode

em constelações de pólen ou em arabescos de fogo

A doçura queima a seda porejante dos músculos repousados

e os corpos dilatam-se na tranquilidade de uma grande dália de água

 

Poema de António Ramos Rosa, do livro "GÉNESE", editado por Roma Editora, em Abril de 2007, com posfácio de Pascal Fleury

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publicado às 15:38


#3331 - LIVROS E LEITURAS

Paul Celan Os Poemas

por Carlos Pereira \foleirices, em 26.12.23

 

 

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publicado às 18:48


#3326 - sem título

por Carlos Pereira \foleirices, em 20.12.23

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A casa está vazia

Apenas um toco de vela sobre o tampo rugoso de uma mesa com várias camadas de pó e tempo que

são as testemunhas de uma casa que teve vida lá dentro:

Silêncios, amuos, repreensões, discussões

apaziguamentos, cumplicidades, troca de sorrisos,

os dedos que procuram outros dedos

as mãos que se abraçam

e os corpos que respiram...

 

A casa está em ruínas

Já lhe pesam os verões e os invernos

As primaveras e os outonos.

Mas já não  importa

Já teve muita vida

muitas gargalhadas 

algumas lágrimas.

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publicado às 19:29


#3323 - A PALAVRA E O RIO

por Carlos Pereira \foleirices, em 18.12.23

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A PALAVRA E O RIO

 

A palavra e o rio

As sombras espreitam as margens e gritam impropérios

O desassossego assume a forma de peixes

E as pérolas veleiros.

 

Há vida em todo o lado; aqui, lá, acolá

E as pedras invocam palavras antigas para estarem ali;

juntas da vida, do sol, das perplexidades, do espanto.

 

O rio tem pressa de chegar ao mar

Precisa de descansar

A viagem foi longa e difícil...

As palavras estão exaustas de tanto escárnio e cinismo, mas não têm pressa

Vão resistindo

Mesmo assassinadas resistem e ressuscitam

As palavras sempre foram resistentes.

 

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publicado às 17:41


#3322 - OS DIAS

por Carlos Pereira \foleirices, em 11.12.23

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OS DIAS

 

As banalidades caminham de braço dado com outras banalidades.

Os dias apodrecem no fim do dia;

e as madrugadas de Ícaro suicidam-se com os primeiros filamentos de sol.

E os dias somam dias;

e a soma dos dias assume outros nomes e

as borboletas

no seu voo desajeitado

querem enganar o seu destino:

Mas os seus corpos são frágeis, não aguentam muito tempo.

As cadeiras estão vazias

Eram ocupadas por gente que já partiu.

Só resto eu no topo da mesa;

As fotografias pousadas nos pratos lembram os lugares que ocuparam.

 

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publicado às 13:54


H#3321- ESPELHO

POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE

por Carlos Pereira \foleirices, em 01.12.23

ESPELHO

Que rompam as águas:

é de um corpo que falo,

 

Nunca tive outra pátria,

nem outro espelho;

nunca tive outra casa.

 

È de um rio que falo;

desta margem onde soam ainda,

leves,

umas sandálias de oiro e de ternura.

 

Aqui moram as palavras;

as mais antigas,

as mais recentes;

mãe, árvore,

adro, amigo.

 

Aqui conheci o desejo

mais sombrio,

mais luminoso;

a boca 

onde nasce o sol,

onde nasce a lua.

 

E sempre um corpo,

sempre um rio;

corpos ou ecos de colunas,

rios ou súbitas janelas

sobre dunas;

corpos:

dóceis, doirados montes de feno;

rios:

frágeis, frias flores de cristal.

 

E tudo era água,

água,

desejo só

de um pequeno charco de luz.

 

De luz?

Que sabemos nós

dessas nuvens altas,

dessas agulhas

nuas

onde o silêncio se esconde?

Desses olhos redondos,

agudos de verão,

e tão azuis

como se fossem beijos?

 

Um corpo amei;

um corpo, um rio;

um prqueno tigre de inicência

com lágrimas

esquecidas nos ombros, 

gritos

adormecidos nas pernas,

com extensas,

arrefecidas nas mãos.

 

Quem não amou

assim? Quem não amou?

Quem?

Quem não amou

está morto.

 

Piedade,

também eu sou mortal.

Piedade

por um lenço de linho,

debruado de feroz melancolia,

por uma haste de espinheiro

atirada contra o muro,

por uma voz  que tropeça

e não alcança os ramos.

 

De um corpo falei:

que rompam as águas.

 

POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE, DO LIVRO "POESIA"  EDIÇÃO FUNDAÇÃO  EUGÉNIO DE ANDRADE, DEZEMBRO DE 2005

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publicado às 15:56


#3320 - QUOTIDIANOS

por Carlos Pereira \foleirices, em 01.12.23

 

 

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QUOTIDIANOS

 

Os dias empoleirados em outros dias;

Diversas luas assumiram  diferentes formas;

Os sonhos empoleirados  na cabeça escorrem até à boca;

Os passos seguem-se a outros passos a não ser que queiram parar;

O acordar previamente combinado com o despertador;

Caminhar com agilidade para apanhar o autocarro;

A marmita, sempre a mesma, de cor  vermerlha, já não suporta mais a comida que é sempre igual;

São horas de fazer o caminho inverso;

E só se vê cabeças empoleiradas em corpos cansados;

O silêncio é absoluto. Ninguém fala com ninguém;

Não há pressa de chegar a casa. A viagem  de regresso é apenas o intervalo, espera-os a rotina, a monotomia, o mesmo desespero de sempre.

Até amanhã

 

 

 

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publicado às 15:15


#3308 - A ÚLTIMA VIAGEM

POEMA DE CARLOS PEREIRA

por Carlos Pereira \foleirices, em 07.11.23

A ÚLTIMA VIAGEM

 

Quando a estrada acaba

É o fim do caminho

Nada mais existe 

Nem becos para calcar novos caminhos

À tua frente uma parede infinita

Intransponível

Espessa

Fria

Negra 

Com uma frase desenhada em tubos de neon:

"Aqui termina o teu caminho, a tua viagem. Não há lugar para arrependimentos, pois já não podes voltar atrás.

Põe-te comfortável."

 

Santa Maria da Feira, 3 de Novembro de 2023

O teu mundo acaba ali

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publicado às 11:20


#3303 - SEM TÍTULO

Carlos Pereira

por Carlos Pereira \foleirices, em 04.10.23

      Quando a noite entra pela madrugada adentro e estou só, os pensamentos  invadem o coração e tomam conta do corpo inquieto. 

                 A alma fecha-se como um punho cerrado que aperta não sei o quê, e esmaga a vontade, a força e a inteligência.

                  Forma-se um nó doloroso na garganta .

                  Perco-me no interior dos teus olhos verdes e nas memórias edificadas ao longo dos anos  que  escorrem até a um labirinto confuso e sofucante que muda constantemente de forma.

                 E grito. 

                 E grito. Procuro uma saida. Está escuro. O corpo bate constantemente contra as paredes do medo. E o medo que enlouquece. E o medo que tem medo do medo.

                Ausência de luz.

                Tropeço contra mim mesmo na busca aflitiva duma porta que permita espreitar os alvores de um novo dia.

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publicado às 13:54


#3298 - Sem Título

por Carlos Pereira \foleirices, em 08.07.23

Olho-me nos teus olhos

Observo a tua boca

Ausculto a tua respiração

Toco ao de leve a tua pele húmida

Entreabres a boca e

Expiras restos de mágoas e tudo fica bem

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publicado às 17:47


#3297 - Zambujeira do Mar

por Carlos Pereira \foleirices, em 08.07.23

As ruas

As pessoas

As árvores

As flores

Os cheiros

O mar

A música tocada pelas ondas do mar

De vez em quando,  no horizonte,  um veleiro com a vela inchada pelo vento

As casas

Branco, azul, amarelo

Mais branco que azul mais branco que amarelo

O sol

Mais tarde a lua numa das suas fases

A luz, a cor do céu

Velas acesas no interior das casas que iluminam as sombras

que deixam de ser sombras e acalmam os espíritos

Numa varanda um cigarro incandescente desenha no ar figuras efémeras

Mais um dia que é diferente de outros dias

 

 

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publicado às 17:26


#3292 - EM LOUVOR DO VENTO

POEMA DE RUY

por Carlos Pereira \foleirices, em 19.06.23

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EM LOUVOR DO TEMPO 

 

Às vezes talvez uma simples dor no dedo mínimo de um pé ou o brilho nos olhos de uma mulher

que passa e passa decididamente decerto para sempre e sinto ser possivelmente essa mão

inconfundível devido a uma determinada pressão no ombro desde sempre esperada

sim talvez essa dor ou esse brilho ou esse brilho e essa dor simultaneamente

distraem-me do vento que roda lá fora que roda loucamente lá fora que roda como se rodar fosse para ele uma verdadeira maneira de ser que roda envergando todas as suas vestes de inúmeras peças tufadas compridas e transparentes

e ascende das areias invariavelmente passivas da praia humilde feminina sensível às constantes embaixadas envolventes do mar até às pedras altas do velho forte altas e altivas no cimo dasua altura e da sua idade

na forma de um vulto esguio redondo e rodopiante de pinheiro ou simples ampulheta ou clepsidra

O vento a essas horas incertas perdidas da noite quando a obscuridade desde há tanto que mais parece desde sempre cobriu com o seu manto todas as coisas designadamente os compridos corpos humanos 

e abafou os miúdos inumeráveis ruídos que costumam acompanhar a luminosidade cega do dia

entoa então por vezes nas árvores e nas casas e  em coisas como os arames e as mais variadas saliências da terra

o seu canto levíssemo levitante vagamente triste cortante mais cortante mesmo

que a faca cujo gume acaba de sair das múltiplas mãos dos móveis amoladores

um canto que faz lembrar o uivo de certos animais feridos talvez na raiz  da sua sensibilidade

ou a súbita irrupção dos primeiros violinos numa sala abafada pelo

veludo das cadeiras ou as peles das senhoras da alta sociedade

um canto próprio inconfundível decerto inolvidável para quem uma noite o ouviu

dificilmente dicionarizável porque a essas horas  os académicos dormem

sonhando talvez com o discurso de ingresso de um novo membro na academia

e o vento é de uma sociabilidade altamente duvidosa e canta canta nas dobras da noite

Eu estou deitado e então sinto a ponta das pés nos lençóis recém-mudados

sinto como mais uma parte do meu corpo os próprios lençóis

e imediatamente faço calar o coro que na rádio canta o messias de haendel

e abre assim um espaço que não é o do meu quarto mas sim o da catedral

de toledo aconchegada na penumbra de certas tardes dos fins de maio

O vento vem na sua suavíssima voz e toda a gente morre de súbito para mim

os cuidados deitados talvez comigo desaparecem inspiro profundamente

e sinto-me tão bem que até me parece penoso dizer que me sinto tão bem

não vá eu deixar porventura de me sentir assim tão bem não vá o vento calar-se

Deve haver algures no meu corpo um lugar expressamente reservado para a voz do vento

uma cavidade qualquer assim como as salas dos aeroportos destinadas às pessoas muito importantes

mas esta minha só para o vento a única pessoa muito importante agora para mim

As ramadas das árvores agora sim agora devem viver

agora devem manifestar vivamente que vivem

haverá talhadas  luminosas e brancas na crista das inúmeras ondas do mar da baía

e eu oiço completamente o vento e ouvir o vento é suficiente para me sentir vivo

para  sentir as amplas asas da paz abertas no peito no leve leque das suas penas

Desvaneceram-se decididamente na vasta sede da noite

as rápidas mulheres munidas de imensos pés que sem reserva amei

jamais imprimi palavra alguam nas páginas brancas do papel tão brancas e  sucessivas como dias

não tenho passado nem coisas quaisquer a fazer acabo até agora mesmo de nascer 

Neste momento sou apenas sou pelo menos desde os pés da cama até  aqui à cabeceira a voz vasta do vento

e a minha cama range como quando pomos os pés nesses velhos sobrados  onde se deixa grelando a batata entre

cresce  o ritmo da minha respiração o pulso bate-me cada vez mais apressadamente 

volto-me vagamente vagarosamente mais ou menos lá para donde pressinto que o vento vem

é possível que morra de um momento para o outro quando menos espere

e a cabeça me fique a baloiçar ao vento de um lado para o outro primeiro

de parede para parede do quarto depois lá fora entre leste e oeste

Há um vento impetuosamente solto na noite da minha vida um vento

 mais louco do que mulheres esbeltas e lentas nos seus longos cabelos

e sinto que as pontas dos pés me chegam mais longe cada vez mais longe

e não leio na agenda nenhumas horas marcadas nem sei de locais de encontro o leve sabor amargo

não necessito tomar o metro pedir gim tónico que vá bebendo gole

a gole no bar desertió pensando talvez que ali esteve um dia hemingway esperando talvez como eu

saboreando o leve sabor amargo do gim desfazendo o limão vendo as cortinas esvoaçar ao vnto

O vento vibra na sus voz de vento alarga aos quatro cantos

aos inumeráveis recantoa da noite as espirais translúcidas do seu vulto

infunde uma vida irritante saltitante e irrequieta em coisas

como latas amolgadas e enferrujadas precisamente nas partes amolgadas

como madeiras apodrecidas pelo salitre e pela chuva como portinholas desengonçadas 

o vento sopra na areia enverga as vestes cheias de folhos e dobras

da areia possivelmente para ter um mínimo de corpo e tornar-se visível

e bailar rodopiando no largo à volta do vulto do cruzeiro

e caminhar caminhar cada vez mais caminhar cada vez a passos mais largos

e proceder à sistemática ocupação dos mais recônditos recantos da terra

Vejo vislumbro através da janela levemente entreaberta

que o vento circula a muitos quilómetros por hora na estreita estrada

que o vento enche preenche o espaço arenoso indeciso e nublado entre estas poucas casas sonâmbulas

que passa a mão inquieta de muitos dedos abertos e dispersos e diluídos

primeiro aqui pela aldeia depois possivelmente por toda a terra

e não tardará talvez a elevar vales a aplanar muitos dos montes

num trabalho perseverante  e esgotante e esgotante que são joão baptista e cristo

aliás ocupados com outras coisas se devem ter visto  imporentes para levar a cabo

E eu aqui sem nenhuma memória abandonado até por estas paredes ainda há pouco à minha volta

apenas dispondo deste resto de corpo onde o vento pode à vontade

vibrar quanto quiser até quando quiser e assim vibrando

demonstrar que existe que vive e dizer eu sou o vento e nasci em tantos

do tal em tal sítio e a sua afirmação valer como um bilhete de identidade

Creio que morreria se não pressentisse não sei bem como

mas através de um latejo levemente diferente do coração

que o vento já tão irrequieto esta noite ficaria talvez triste

por ver desaparecer não um dos poucos amigos e admiradores veneradores

atentos e obrigados que talvez sinceramente tenha

não um espectador interessado do longo e variado festival que nestes momentos apresenta

mas uma coisa mais um obstáculo mais a demolir e a vencer

Tenho oito cadeiras trabalhosamente entrelaçadas no distante vime da juventude

quando pelas tardes de calma e calor  me banhava na vala junto ao moinho

e os vimes os mais ginasticados emissários da vegetação das margens

cortavam em tiras  a sombra que poisava ao de leve na água

tenho essas oito cadeiras disponho-as em fila com a seca solenidade de um cerimonial

e rígido e digno na minha estatura liberta enfim das volumosas volutas de barbitúricos

aguardo cheio de calma que o vento se sente multiplicadamente nas oito cadeiras que tenho

na casa caída e térrea que tenho na vida minuciosa e diária que tenho

Talvez o vento levante a voz aumente ainda mais de volume

convoque ventos de outros espaços e sopre na força irresistível da tempestade

e venha violentamente até mim e varra da minha casa

e varra da minha vida tudo absolutamente tudo o que não seja o vento

e sejam talvez coisas planas e chatas e domésticas e imensamente

miúdas e não disponham desta voz côncava do vento

Há nuvens negras que se deslocam apressadamente para o sul

há filas de canas que oscilam e fazem ao vento a elegante reverência da vassalagem

ou pelo menos da boa educação tudo se anima vibra soa na noite

O vento vai vencendo obstáculos dispõe cada vez de maior espaço

anexa pela violência territórios que ainda há pouconnlhe opunham certa resistência

ensaia agora agora a sua vastíssima valsa na ampla sala da noite

canta uiva produz esse inimitável som impossível de procurar nas páinas dos dicionários

afina a voz para as mais agudas notas do seu canto dilacerador e íntimo

Virá o dia muitos corpos afastarão finalmente da fronte os últmos véus do sono

muitos olhos procurarão a luz sentirei mais minhas as pontas dos pés

o canto quezilento e quebradiço dos pássaros no pátio nas árvores nos beirais

disputrá o lugar à voz do vento nos meus ouvidos

Voltarão primeiro um por um depois em bandos os cuidados

as pontas dos cabelos compridos de mulheres jovens entrar-me-ão para a boca

mas é provável é mesmo muito provável que algures nalguma parte profunda e perdida do meu corpo

continur vazia arejada e arrumada com o pó limpo uma sala

exclusivamente reservada à única pessoa verdadeiramente importante

até que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe

talvez de um secundaríssemo instrumento na complexa e simples orquestra do vento

 

POEMA DE RUY BELO QUE INTEGRA "TODA A TERRA", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, FEVEREIRO 2003, E PREFÁCIO DE LUÍS ADRIANO CARLOS

 

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        

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publicado às 15:18


#3288 - SEM TÍTULO

por Carlos Pereira \foleirices, em 13.05.23

Uma ressonância que se repete

enquanto o vento se mantiver aceso e

a folhagem vibrar com  o próprio sopro.

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publicado às 18:55


#3282 - PRECE

por Carlos Pereira \foleirices, em 15.04.23

Peço.

Rogo.

A flor nos lábios da boca.

A alma, uma aguarela de canela e alfazema, respira

Saudade.

Pergunto por ti, ninguém sabe;

Apenas que partiste para uma longa viagem, e

que voltarás um dia para resgatares o teu sorriso.

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publicado às 17:26


#3279 - POEMA DE RUY CINATTI

por Carlos Pereira \foleirices, em 31.03.23

Acontece. E eis que, subitamente,

Tudo se esvai. Tudo quanto a esperança

Nos colocou ao alcance. Tudo...

E o murmúrio último das ondas é,

Senão o soluço do barco naufragado,

Pelo menos o seu eco. Ah! coração,

A quanto podes mais, se o teu sangue

Pára e gela de súbito. Somente

As artérias do espírito pulsam,

Na sombra que à sombra deixam

O rastro de um furtivo viajante.

 

Como inesperada tempestade

Vieste. Ninguém gritou.Placidamente

O barco navegava. A história

- De mim eu falo - chegava ao porto máximo. Eis

Que a confusão dispersou os acordes secretos

Do mais íntimo ser. Não há música,

Por mais doce, que atravesse

A solidão maldita do meu espírito

Petrificado, ainda de olhos fitos

Num obscuro futuro,

Que as mãos humanas abram, ergam

Ao sol dos meus mais belos dias:

Aqueles em que a morte entreabria

As portas da sobre todas inenarrável visão.

 

Baste-me pois a desumana

Atitude. Vendo

Qual esfinge que ao homem faz sentir

A sua imagem: intrínseco saber não revelado;

Revendo - meu nome é legião -

O mundo atravessando as ondas do tempo,

Enquanto me aqueço frio, mas atento,

Não ao passado, não ao futuro, mas 

Ao presente. Nenhuma tábua,

Pois o que vive destruiu

O que era conhecido e

Tudo o que era saber. O momento

É só o que ele sabe. Nenhuma tábua

Se me agarra às mãos, nem o inimigo

Revigora aquele fervor antigo, aquele

Ódio mais feito de amor. Confundido,

Jamais porém vencido pela divina

Indiferença dos que eu mais amei.

 

Agora começa a jornada, e mais do que isso,

O fogo da mais sozinha angústia.

 

POEMA DE RUY CINATTI in "NÓS NÃO SOMOS DESTE MUNDO" QUE FAZ PARTE DA «OBRA POÉTICA» VOLUME 1, EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, OUTUBRO DE 2016, PÁGS. 130, 131.

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publicado às 02:16


#3277 - À BEIRA

POEMA DE MAR BECKER

por Carlos Pereira \foleirices, em 29.03.23

MAR BECKER

 

poderia dizer que amo teu nome à boca

poderia falar das vezes em que chega a manhã

e eu o procuro

e faço dele a primeira palavra tocada

mas não, o que digo é que no amor tudo nasce frágil

que há manhãs em que me vejo à beira do teu nome

e não sou capaz de feri-lo

com a voz

 

Poema de Mar Becker

_________________________________________________________________________________

Mar Becker (Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo (Rio Grande do Sul). Formou-se em Filosofia, com especialização em Metafísica e Epistemologia, pela Universidade Federal da Fronteira do Sul. Em 2020, publica A Mulher Submersa, livro vencedor do Prémio Minuano e finalista do Prémio Jabuti, na categoria poesia, ao qual se seguiu, dois anos mais tarde, o livro Sal. Em Portugal, sai agora Canção Derruída (2023): obra que reúne os poemas de Sal e uma revisitação, com «ecos e variações», de A Mulher Submersa.

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publicado às 18:04


#3274 - PARA ALGUNS AMIGOS

POEMA DE CHARLES BUKOWSKI

por Carlos Pereira \foleirices, em 01.02.23

PARA ALGUNS AMIGOS

 

o som da astúcia

o som do céu e do mar.

 

o aperitivo de uma noite amarga.

amigos amargos que

discutem acerca de quem fará o elogio fúnebre no enterro,

meios-homens amargos que tentam roubar-te as mulheres,

meias-mulheres amargas que se deixam roubar.

 

demorei 15 anos a humanizar a poesia

mas vai ser preciso mais do que eu

para se humanizar a humanidade.

 

as boas almas não o farão

a anarquia não o fará

os pretos

os amarelos

os índios

os mexicanos

não o farão.

 

acredito na força da mão sangrenta

acredito nos gelos eternos

exijo que morramos

de lábios azuis e sorrindo contra a impossibilidade

de nós mesmos

estendidos de viés sobre nós mesmos.

 

conhecemo-nos

numa adega escura em Barcelona. mas depois

afastámo-nos. ao fim e ao cabo,

algumas pessoas são capazes de foder um candeeiro de rua

ao luar.

 

o meu elogio fúnebre? quem o lerá? terei sequer uma

sepultura? quem estará feliz no meu

enterro? mais um cabrão genial

que se foi. os idiotas adoram enterrar 

deuses.

 

entretanto, esperam que me falhe a máquina de escrever,

que o meu amor seja menor, que a minha esperança seja menor,

que a minha dor seja maior.

ah, todos os meus amigos me desejam as melhores coisas.

 

idiotas batedores-de-portas a espingardar

venham todos

cuspir o vosso veneno especial sobre mim e sobre

as pequenas coisas que são minhas.

 

pequenas crianças-ratazanas do universo

apreciem o facto de vos ter deixado insultar-me

apreciem o facto de vos ter aberto a porta

apreciem o facto de ter envelhecido

ou desaparecido com o tempo.

 

ah, meus amigos

meus amigos

meus amigos.

 

POEMA DE CHARLES BUKOWSKI in «OS CÃES LADRAM FACAS» [ANTOLOGIA POÉTICA], EDIÇÃO ALFAGUARA DE NOVEMBRO DE 2018, PÁGS. 191,192, 193.

TRADUÇÃO DE ROSALINA MARSHALL

SELECÇÃO, ORGANIZAÇÃO E PREFÁCIO DE VALÉRIO ROMÃO

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publicado às 18:27


#3273 - LÁGRIMA, GOTA LÁGRIMA (OU: TODAS DESPEDIDAS DO MUNDO)

POEMA DE ONDJAKI

por Carlos Pereira \foleirices, em 30.01.23

LÁGRIMA, GOTA LÁGRIMA (OU: TODAS DESPEDIDAS DO MUNDO)

 

lágrima

é uma sensação que escorrega.

mundo está seco de coisas e trans-sensações

assim a lágrima presta-se

a desressequir o mundo.

porque:

mundo está duro;

mundo está  pedinchar molhadezas

que só amor tem num bolso;

mundo está ainda grande e

tão pequenino já.

lágrima, afinal,

é uma carinhosa correcção do mundo

e tem pontes com a amizade.

porque:

sinónimo sincero de amizade

é celebração.

assim mesmo, ela, húmida. bem húmida.

 

Poema de Ondjaki

 

 

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publicado às 17:09


#3272 - FOZ DO TEJO, UM PAÍS

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

por Carlos Pereira \foleirices, em 26.01.23

FOZ DO TEJO, UM PAÍS

 

O rio não dialoga senão pela alma

de quem o olha e embebeu a sua alma

de olhares ribeirinhos no passado

ou à flor do pensamento no futuro.

 

É um país que fala dentro da fronte,

olhando as naus, navios, barcos pesqueiros

e o trilho das famintas aves pintoras

de riscos negros, que perseguem o odor

das redes cheias, as outrossim poéticas

familiares gaivotas. É uma costa inteira

de imagens de gaivotas dentro dos olhos.

São bocas a pensar razões da vida,

gargantas já caladas pela nascença e morte,

quando entre si se vêem ou juntas olham

o mar dos seus próprios dias. São cabeças

velhas de labutar, entre dentes cerrados,

as palavras mudas de um ofício no mar,

antigas de silêncio, como se no esófago

guardassem há muito a sabedoria de ir

enfrentar o mar, transpor o mar, estar.

 

Tal como um rio o mar só quer falar

pela dor e alegria de alma com que o chama,

há séculos na orla, um povo mudo,

com as palavras presas, guturais sem fôlego,

dentro de si, tão firmes no palato, artticuladas

na língua interior. E o mar é quieto ou bravo,

e a alma tensa de uma paixão secreta,

escondida atrás da boca, e sempre aberta,

tal como as pálpebras diante desta água.

Só a alma sabe falar com o mar,

depois de chamar a si o Rio, no imo

de cada um, recordações, de todos

os que cumprem na linha da costa o seu destino.

O de crianças, berços nascidos à beira-mar,

aleitadas por água marinha bebida por rebanhos,

alimentadas por frutos regados pela bruma.

Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar,

passam sem son na glotre, para nós mesmos dizermos

que o tempo já findou das caravelas outrora

e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.

 

Também as varinas, fenícias áfonas no poema

que  as canta, sabem as formas, pelo olhar,

de serem mulheres com peixes à cabeça.

E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra

língua do mar, os nomes com que nos chamam

para o seu modo de levar entre as casas e o mar.

Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo

as de poetas, só as pancadas das palavras

no encéfalo parecem ser voz do mar.

 

É uma nação única de memórias do mar,

que não responde senão em nós. Glória, misérias,

que guardámos por detrás do olhar lírico

e da língua, a silabar dentro da boca.

Nunca chamámos o mar nem ele nos chama

mas está-nos no palato como estigma.

 

Dezembro de 1997

 

Poema de Fiama Hasse Pais Brandão in "Obra Breve", Edição 0976, Maio 2006, Editora Assírio & Alvim, Págs. 692 e 693.

 

 

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publicado às 17:04


#3270 - SEBASTIÃO REI

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.01.23

SEBASTIÃO REI

 

Não chegou de manto

nem com lenço e pranto

 

Não entrou a barra

com pendão e amarra

 

Não veio em ginete

com a sua gente

 

Não voltou da guerra

com os mortos dela

 

Não voltou de púrpura

com  ferida ou sutura

 

Não voltou de coroa

nem ceptro a Lisboa

 

Não veio da batalha

com trajo de gala

 

Não trouxe burel

nem viseira e elmo

 

Nem trajou de estopa

nem demandou porto

 

Não veio doente

nem com mantimentos

 

Não chegou na frota

ou deu à costa

 

Nem alçou pendão

nem selo de mão

 

Nem veio às matinas

com saio de linho

 

Nem calçou pelica

com fivela e vira

 

Não voltou ao cais

nem em mês ou ano

 

Perdeu arraiais

e tendas de pano

 

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

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publicado às 12:40


#3269 - CANTO MARÍTIMO DA RIA

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.01.23

CANTO MARÍTIMO DA RIA

 

De manhã o mar estende-se ao rés do Sol, 

banhamo-nos para cegar de luz,

nadamos através do halo de calor.

Poder sentir a luz a escorrer junto à boca

dá-nos a humildade e a pacificação.

Um sopro mergulha no fluido da luz

de onde talvez brotou ao ser nascido,

e é a minha alma que flutua

feita de moléculas de água.

Tudo em esplendor cintila, e imagino

que quando a alma de Heitor o abandonou

foi numa manhã ao  rés do mar de Tróia.

Tal como o Mediterrâneo este é um mar

parado sem o movimento, que é a onda

e o som, cingido entre os anéis de terra.

Tocou-me a água nos olhos extasiados,

seria esse o baptismo que ungiu

o meu dom das visões reais e irreais.

O mar é uma acha em brasa

que lacera uma das minhas faces,

por isso ofereci ao vento

a outra nas manhãs sombrias.

E dei o meu corpo à superfície lisa

que unia os quatro elementos,

ou seja a terra, o mar, o ar, o fogo

tal como quando os Gregos os pensavam.

Vendo as garças a voarem lentas

sobre os pequenos lagos ígneos

sei que se fossem comburentes

não vboltariam ao solo brancas e quedas,

como quando ostentam o colo

entre os juncos das margens similares,

e de súbito intuo que a Natureza

trouxe as garças para os altos juncos

e me levou a mim ao raso mar

onde o meu corpo bóia incandescente

jazendo quando dorme, ou morre, ou nasce.

A minha juventude amou a manhã

sabendo que ambas as idades são iguais,

mas o corpo arde plano na água do fogo

enquanto o Sol se queima entre a terra e o ar,

e somente os filósofos metereologistas

souberam separar os elementos juntos

na Natureza visível e invisível.

Volto a banhar-me na Ria, no silêncio,

no ardor, no sonho, na volúpia

e termino o poema com o mesmo

fogo interior sorvido pela boca

do verso inicial no pleno mar.

Não só nesta praia a saudade de Heitor

me é trazida pelo fulgor do mar

como a de um jovem morto outrora

por Valéry, pelo Sol e por Fauré.

Tantos mil anos-luz da imagem

de Heitor estão depois do seu vulto

quantos do vulto do jovem morto

mais me separa a saudade da imagem.

 

6/11/93

 

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO in «CANTOS DO CONTO» QUE INTEGRA "OBRA BREVE - POESIA REUNIDA", EDIÇÃO 0976, MAIO 2006, DA EDITORA ASSÍRIO & ALVIM

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publicado às 11:46


#3268 - SOBRE O CAMINHO

POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE

por Carlos Pereira \foleirices, em 22.01.23

SOBRE O CAMINHO

 

Nada

 

Nem o branco fogo do trigo

nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros

te dirão a palavra

 

Não interrogues não perguntes

entre a razão e a turbulência da neve

não há diferença

 

Não colecciones dejectos o teu destino és tu

 

Despe-te

não há outro caminho

 

POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE in "VÉSPERA DA ÁGUA", EDIÇÃO DE MARÇO DE 1979, EDITORA LIMIAR - ACTIVIDADES GRÁFICAS, LDA

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publicado às 20:02


#3267 - POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE

(Centenário do nascimento do poeta) - [1923 - 2005]

por Carlos Pereira \foleirices, em 22.01.23

Ainda esta poeira sobre o coração

queria que chovesse sobre os ulmeiros

sair limpo desses olhos

da luz que se demora a polir os seixos

 

A corrosiva música das vogais que te devora

o silêncio do muro

às vezes quase azul

o verão afinal onde o ar é mais duro

 

POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE in "LIMIAR DOS PÁSSAROS", EDIÇÃO DE NOVEMBRO DE 1978, EDITORA LIMIAR

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publicado às 19:46


#3266 - BORRAS DE IMPÉRIO

POEMA DE JORGE DE SENA

por Carlos Pereira \foleirices, em 18.01.23

BORRAS DE IMPÉRIO

I

Os impérios sempre se fizeram

com os que são forçados a fazê-los

e com os que ficam para ser mandados

e cuspidos pelos que querem fazê-los.

 

Por isso, há nos povos imperiais 

algo de um visgo de alma: que ou é cuspo,

ou um prazer dolente como de escarra e cospe.

 

II

Há impérios que deixam no deserto ruínas de capitais pomposas.

 

E há os outros que se desculpam com tremores de terra

de terem passado sobre si mesmos como gafanhotos.

 

III

Pergunto-me a mim mesmo como foi possível:

ou os impérios o seu povo até que ele seja

uma raça agachada, mesquinha e traiçoeira,

ou é com gente dessa que os imnpérios se fazem,

já que nada glorioso se constrói humanamente

sem 10% de heróis e 90% de assassinos.

 

Que coisa fedorenta a glória, sobretudo

enquanto não passam séculos e só ruínas

fiquem - onde nem o pó dos mortos

ainda cheire mal.

 

IV

Portugal é feito dos que partem

e dos que ficam. Mas estes

numa inveja danada por aqueles terem

sido capazes de partir, imaginam-lhes a vida

a série de triunfos sonhados que eles mesmos

nas horas de descrerem da mesquinhez em que triunfam

todos os dias. E raivosamente

escondem a frustração nos clamores

da injustiça por os outros lá não estarem

(como eles estão), do mesmo passo

que se ocupam afanosamente em suprimi-los

(não vão eles ser tão tolos-

- a ponto de voltarem).

 

8 de Junho de 1971

 

(EXORCISMOS, 1972)

 

 

 

 

 

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publicado às 17:18


#3264 - CÂNTICO NEGRO

POEMA DE JOSÉ RÉGIO (Vila do Conde, 1901 - Vila do Conde, 1969)

por Carlos Pereira \foleirices, em 15.01.23

CÂNTICO NEGRO

 

«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: «vem por aqui»!

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...

 

A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre a minha Mãe.

 

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,

Porque me repetis: «vem por aqui»?

 

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar pos pés sangrentos,

A ir por aí...

 

Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.

 

Como, pois, sereis vós

Que me  dareis impulsos, ferramentas, e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil!

Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

 

Ide, tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátrias, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.

Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

 

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

 

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguérm me diga: «vem por aqui»!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...

Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou,

- Sei que não vou por aí!

 

POEMA DE JOSÉ RÉGIO

(POEMAS DE DEUS E DO DIABO, 1925)

 

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publicado às 09:50


#3265 - POEMA DE ADOLFO CASAIS MONTEIRO

por Carlos Pereira \foleirices, em 14.01.23

A música era linda,

vinha do rádio, meiga, mansa,

macia como um corpo quente de mulher...

era doce, cariciosa e lânguida...

 

Mas eu tinha ainda nos ouvidos,

como um clamor de milhões de bocas:

«No campo de concentração hoje ocupado pelas nossas tropas

os alemães queimaram milhares de vivos num forno crematório...

Nas cubatas, os mortos misturavam-se com os moribundos...

O sargento S.S. não pôde recordar quantos homens tinha morto...

Os mortos apodrecem aos montes, e os vivos arrancam-lhes as roupas

para as fogueiras em lado se aquecem...

EM MUITOS CADÁVERES ENCONTROU-SE UM CORTE LONGITUDINAL:

ERAM OS VIVOS QUE TINHAM TIRADO AOS MORTOS O FÍGADO E OS RINS PARA COMER -

A ÚNICA CARNE QUE AINDA RESTAVA NOS CADÁVERES...»

 

E lembro-me de repente dum filme muito antigo

em que o criminoso perguntava:

«De quoi est fait un homme, monsieur le comissaire?»

e nos seus olhos lia-se o pavor

de quem viu um abismo e não lhe sabe o fundo...

De quoi est fait un homme? De que são feitos os homens

que queimaram vivos outros homens? que tinham centos de crianças

a morrer de fome e pavor, escravos como os pais?

que matavam ou deixavam morrer homens aos milhões,

que os faziam descer ao mais fundo da degradação,

torturados, esfomeados, feitos chaga e esqueleto?

Eram esses mesmos homens

que faziam pouco da liberdade,

que vinham salvar o mundo da desordem,

que vinham ensinar a ORDEM ao planeta!

Sim, que traziam a paz com as grades das prisões,

a ordem com as câmaras de tortura...

 

E depois a música vem, cariciosa e lenta,

a julgar que apaga a ignomínia que lançaram sobre a terra!

A julgar que esqueceremos a abjecção dos que sonharam

apagar da terra a insubmissão do homem livre!

Não - nem cárceres, nem deportações, nem represálias, nem torturas

acabarão jamais com a insubmissão do homem livre,

do homem livre nas cadeias, cantando nas torturas,

porque vê diante de si os irmãos que estão lutando,

que hão-de cair, para outros sempre se erguerem,

clamando em vozes sempre novas

QUE O HOMEM NÃO SE HÁ-DE SUBMETER À VIOLÊNCIA!

Homens sem partido e de todos os partidos,

que nasceram com a revolta porque não lhes vale de nada viver para serem escravos,

homens sem partido e de todos os partidos - menos todos quantos

só sabem dizer ORDEM! e reclamar VIOLÊNCIA!

os que pedem sangue porque são sanguinários, sim,

mas também todos os que nunca souberam querer nada,

os que dizem «Não é possível que se torturem os presos políticos»,

os que não podem acreditar

porque não querem ser incomodados pela pestilência dos crimes cometidos para eles

- para eles continuarem a acreditar que a ORDEM não é apenas a mordaça

sobre as bocas livres que hão-de gritar até ao fim do mundo

QUE SÓ O HOMEM LIVRE É DIGNO DE SER HOMEM!

 

1944 - 45

 

POEMA DE ADOLFO CASAIS MONTEIRO (Porto, 1908 - São Paulo, Brasil, 1972)

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publicado às 22:38


#3259 - INFINITAMENTE INFINITO

por Carlos Pereira \foleirices, em 11.01.23

Do outro lado do muro

O avesso,  a noite, a respiração ofegante de quem foge de alguma coisa e

Bruscamente um silêncio plúmbeo

Tudo fica parado, suspenso:

Gente, o vento, as árvores, os animais, as águas do rio, do mar, os contadores de histórias e

Até as pedras, todas as pedras.

E as estrelas que, apesar de estarem muito longe, 

Deixaram de brilhar.

Os olhos de todos os seres vivos cegaram

Os ouvidos ficaram surdos, as bocas mudas

Os dias já não têm dias e noites, nem horas, nem acordar, nem dormir,

O silêncio é absoluto

Plúmbeo

È o fim. 

Infinitamente infinito.

 

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publicado às 13:00


#3255 - DOMINGO

POEMA DE CARLOS PEREIRA

por Carlos Pereira \foleirices, em 30.12.22

DOMINGO

 

O ponto de encontro é no sítio do costume

Naquele sítio onde as flores transpiram odores de canela

E os pássaros testemunham os nossos gestos

equilibrando-se sobre os trémulos ramos sacudidos

pela brisa fresca de início de verão.

É domingo.

Estou sentado no banco de ripas vermelhas

Espero e observo:

Não se vê pessoas agitadas, nem apressadas

Apenas o vagaroso deslizar dos corpos distraídos

e aparentemente ausentes, 

os namorados trocam furtivos beijos

e tocam-se, contidos.

É domingo

Continuo à espera

Uma banda toca no coreto

e inflama os sentidos

e os corpos involuntariamente

se mexem ao ritmo dos sons

saídos das gargantas dos instrumentos.

É domingo

Continuo à espera.

À tua espera.

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#3254 - A ESPERANÇA DO LIVRO

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 29.12.22

A ESPERANÇA DO LIVRO

 

Como um painel, soerguendo-se da névoa marinha, um busto vermelho, carcomido, a boca hiante, de um mistério vazio. A meus pés, um exército de formigas-negras procura, num árido frenesim, o caminho para a pedra. A orla branca de espuma, as vagas que rolam violentas, impedem o acesso do negro exército de insectos.

 

Quem poderá escutar da boca daquela divindade algo para além da sua nudez de morte? O seu frio eco trespassa-me de horror, a distância perdida torna-se fúnebre. As máscaras encobrem em vão o inexorável.

 

«Onde está a esperança?», alguém grita ou seria apenas o amplo espaço que flamejara? Era um esplendor cruel e o grito, se alguém o gritara, logo fora varrido pela força do vento. Alguém no entanto gritara: «Não feches o livro.» Respondi: «Virei todas as páginas sem encontrar a esperança.» A voz pronunciara ainda algumas palavras de um além da bruma: «A esperança é talvez o livro.»

 

Cansara-me de fitar a carcaça de pedra vermelha, olhos e boca abertos por onde entravam o sol e a água. A tenacidade da ruína muda aterrorizava-me. Mas além da bruma eu ouvia a voz de uma possível esperança. Era preciso atravessar a inexorável claridade e procurar na tarde a merenda que me desse o alento para prolongar o livro. As folhas escritas pesavam sobre o dorso direito; as folhas brancas curvavam o ombro esquerdo. Desejava libertar-me das primediras, como de um fardo, mas as outras, na vertigem do possível, tornam a marcha ébria, de um vagabundo prenhe do murmúrio de todas as palavras que um dia seriam o Livro, que já o eram no passo ligeiro em que caminhava através da bruma.

 

Poema de António Ramos Rosa in "Antologia poética", edição D. Quixote, 2001.

Prefácio, Bibliografia e Selecção de Ana Paula Coutinho Mendes

 

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publicado às 18:34


#3253 - ESCREVO-TE COM O FOGO E A ÁGUA

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 29.12.22

ESCREVO-TE COM O FOGO E A ÁGUA

 

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te

no sossego feliz das folhas e das sombras.

Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.

Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.

Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

 

O que procuro é um coração pequeno, um animal

perfeito e suave. Um fruto repousado,

uma forma que não nasceu, um torso ensaguentado,

uma pergunta que não ouvi no inanimado,

um arabesco talvez de mágica leveza.

 

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?

Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.

As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.

O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,

o grande sopro imóvel da primavera efémera.

 

Poema de António Ramos Rosa in "Antologia Poética" com prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, edição Publicações D. Quixote, 2001

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publicado às 15:15


#3252 - ELEGIA MÚLTIPLA (VII)

POEMA DE HERBERTO HELDER

por Carlos Pereira \foleirices, em 28.12.22

Os ombros estremecem-me com a inesperada onda dos meus

vinte e nove anos. Devo despedir-me de ti,

amanhã morrerei.

Talvez eu comece a morrer na tua mão direita,

alterosa e quente na minha mão 

sufocada. Agora mesmo na europa

começa a vagarosa iluminação das giestas. É a minha vida

percorrida por um álcool penetrante, é a imediata

atenção ao misterioso trabalho da idade.

 

Vinte e nove anos agora, na europa, sobre os canais

sombrios da carne, sobre um vasto segredo.

Será apenas isto, um ponto móvel

da eternidade, isto - a sufocação veloz e profunda

da vida inteira na minha garganta? E depois

o acender das luzes, bruxelas como uma câmara

de archotes e ao alto as ameias

enovoadas dos astros? Devo olhar com uma grande

memória aquilo que acaba na violência triste

do poema.

 

Estamos nos quartos, há flores nas mesas. De babilónia

partem rios. Por detrás das cortinas,

despeço-me. Amanhã vou morrer. Tenho

vinte e nove bocas urdindo

a falsa doçura da confusão. Os países constroem

a torre sombria do amor. Dá-me a tua mão

pensativa e antiga, deixa que se queime ainda um instante

a loucura masculina

da minha vida. Pensa um pouco na beleza

ignota das coisas: peixes, flores, o sono terrível

das pessoas ou o seu respirar

que arde e brilha e se apaga à superfície

das lágrimas ocultas. Pensa um pouco no sorriso

rapidíssimo

que jamais desasparece do silêncio, na candeia

que cobre com agulhas de ouro os escombros

dos lírios. E por cima de tudo estende

a tua pequena mão eterna. Cai

tu própria na treva quente da minha

cega mão masculina de vinte

e nove

anos. Tenho vinte e nove anos ou uma onda

inesperada que me estremece a carne ou a minha garganta

cheia de sangue actual - amanhã morrerei.

 

Vi um dia alguém tomar nas mãos, entre faúlhas

velozes, pedras que pareciam

imortais. Eram casas que se levantavam

sobre o meu coração. Vi que tomavam

animais feridos, flores imaturas, objectos 

breves, imagens instantâneas e perdidas. Faziam

alguma coisa eterna. Era gente

de vinte e nove anos que se despedia dolorosa

pormenorizada

violentamente de uma parte da sua carne, a parte

mais iluminada da sua

carne de vintee nove anos. Amanhã

morrerei.

 

Poema de Herberto Helder in "Poesia Toda", Ediçao 406, em Março de 1996, Assírio & Alvim

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publicado às 15:23


#3251 - SEM TÍTULO

por Carlos Pereira \foleirices, em 28.12.22

Um dia contar-te-ei uma história

se tiver o tempo de várias luas

e a paciência tomar conta de mim

e a sabedoria para reunir todas as palavras

nascidas no fundo da boca.

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publicado às 11:51


#3250 - APELO

POEMA DE NAZIM HIKMET RAN (1902-1963)

por Carlos Pereira \foleirices, em 26.12.22

APELO

 

Este país, cabeça duma égua

da Ásia ao Mediterrâneo trotando tanta légua

este país é o nosso.

Punhos em sangue banhados, dentes cerrados, planta nua

e chão feito alfombra, toda em seda crua,

este inferno, este céu é o nosso.

Fechem-se as portas de estranhos, não mais voltem a abrir!

O homem não imponha ao homem escravidão!

Este apelo é o nosso.

Viver! Qual árvore, sozinha e livre

e juntos irmanados, qual floresta:

                                                            Este anseio é o nosso.

 

Poema de Nazim Hikmet Ran, Turquia

 


 10.02.2016
Paisagens Humanos do Meu País, do poeto turco Nazim Hikmet, foi traduzido para o português

Brasileiros
Daniel Benevides
10/02/2016 - 10:24

Um dos maiores autores do século 20, Nâzim Hikmet tem sua principal obra, Paisagens Humanas do Meu País, escrita durante um longo período na prisão, finalmente traduzida no Brasil diretamente do original turco

Joan Baez cantou seus versos, inúmeros filmes foram baseados em seus livros, Picasso e Sartre defenderam sua liberdade. Nâzim Hikmet (1902 -1963) não foi apenas o maior poeta turco do século 20, mas também uma figura histórica, icônica. Introduzir o verso livre na poesia de seu país e utilizar a linguagem e os temas do dia a dia, em oposição ao lirismo derramado que se praticava na Turquia, foram alguns de seus feitos literários. No campo da vida pública, o poeta participou da Guerra da Independência, denunciou o genocídio armênio – atitude até hoje temerária  –, viveu o começo da Revolução Russa ao lado de amigos como Maiakóvski e Meyerhold e revelou os desmandos de governos autoritários turcos por meio da imprensa alternativa. Entre 1929 e 1938, com o Partido Comunista banido, teve várias passagens na prisão, muitas vezes sob acusações forjadas. Finalmente, em 1939, com a morte do primeiro presidente da República da Turquia, Atartuk, Nâzim é mandado para a penitenciária em Bursa, onde fica até 1950, quando é libertado depois de uma greve de fome e de manifestações internacionais a seu favor. É nesse período que escreve a maior parte deste Paisagens Humanas do Meu País.  Sem a mulher e o filho, proibidos de ir com ele, passa a viver na União Soviética. Morre em Moscou, de um ataque fulminante no coração.

É uma biografia de tirar o fôlego. Parecem muitas vidas numa só. Não é de espantar, portanto, que ele tenha conseguido colocar tantas vidas, tantas vozes, tantas histórias, de origens as mais diversas, nos seus livros e em particular neste Paisagens. E tudo começou quando escreveu seu primeiro poema aos 13 anos. Um incêndio próximo a sua casa foi o tema. Era, talvez, o prenúncio da sua trajetória, forjada a ferro e fogo. O elemento incendiário surgiu primeiro, na forma de tiros e bombas, quando se alistou na Guerra da Independência, em 1920, para a retomada da autonomia perdida no conflito mundial de 1914-1918. Kemal Atartük era o líder. O grande herói turco dizia-se discípulo do avô materno de Nâzim, o militar, filólogo e historiador Enver Paxá. Mesmo assim, depois de destacado para dar aulas aos soldados, o futuro poeta teve de se exilar uma primeira vez na Rússia, por conta de suas convicções políticas. Foi lá que formou-se em Sociologia e, às leituras juvenis de Omar Khayyam e Baudelaire, adquiriu uma forte influência de Maiakóvski e da vanguarda russa.


“Paisagens Humanas do Meu País”-
Nâzim Hikmet. Tradução de Marco Syrayama de Pinto.
Editora 34, 576 páginas

O elemento “ferro” teve um peso mais dramático e está intimamente ligado a Paisagens Humanas do Meu País, tida como a obra-prima de Nâzim. Pois foi atrás das grades que ele escreveu o livro, um trabalho único, composto por cerca de 20 mil versos, escritos nos mais diferentes registros: diário, história, teatro, roteiro cinematográfico, conto, reportagem, folclore, canção, emissão radiofônica e, claro, poesia. Sua intenção era enciclopédica. Queria retratar o homem comum da Turquia, o trabalhador, o camponês, o artesão, o comerciante. E também os criminosos com os quais conviveu por 13 anos, nos dois presídios por que passou. Mas também foi feliz ao retratar as classes mais abastadas, nas quais ele mesmo tinha sido criado.

Trepidantes como sua vida, os versos seguem um ritmo ferroviário: as paisagens mudam rapidamente, mas o eixo é sempre o mesmo. O efeito é proposital, já que Nâzim escolheu o trem como elemento a ligar todos os seus múltiplos personagens, de assassinos a ricos comerciantes. É dentro de seus vagões, na terceira, segunda ou primeira classes, que se passam os diálogos, que conhecemos as trajetórias mais improváveis e ficamos conhecendo a história sangrenta da Turquia, das batalhas pela independência à sua participação na Segunda Guerra. Mas também há, e como, os conflitos de ordem pessoal, traições, ciúmes doentios, roubos de terra, deserções, tudo contado como se estivéssemos sacolejando no trem, em frente ao narrador, ou sentados na estação, esperando a próxima partida em meio à balbúrdia generalizada. É, sem dúvida, um verdadeiro épico moderno, que, como muitos disseram, só encontra paralelo em obras como a Odisseia, de Homero, e Guerra e Paz, de Tolstói (não por acaso, traduzido por Nâzim para o turco).

Admirado por personalidades como Picasso e Sartre, que se uniram a outros artistas e intelectuais para exigir sua soltura, Nâzim começou a redigir Paisagens em 1939, no início de sua pena em Istambul, e só terminou – se é que terminou – em 1961, dois anos antes de sua morte. Na avaliação do ótimo tradutor Marco Syrayama de Pinto, finalista do prêmio Jabuti, a experiência na cadeia foi essencial para forjar o estilo tardio de Nâzim, que a essa altura buscava uma forma e dicção “apoéticas”. Ele escreve, no texto de apresentação, que “a prisão conferiu a sua poesia uma textura social e histórica que o autor nunca teria alcançado se estivesse envolvido com o cenário dos escritores profissionais e suas polêmicas literárias.”

Fonte: http://brasileiros.com.br/

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publicado às 18:59


#3249 - EPOPEIA DE GUILGAMESH (EXCERTO)

SUMÉRIA

por Carlos Pereira \foleirices, em 26.12.22

EPOPEIA DE GUILGAMESH

(EXCERTO)

 

Nos dias de antanho nos distantes dias de antanho

Nas noites de antanho nas distantes noites de antanho

Nos dias de antanho nos distantes dias de antanho

Depois de criadas todas as coisas

Destinadas todas as coisas

Depois de provado o pão nos santuários da terra

Depois de separado o céu da terra

Depois de separada a terra do céu

Depois de Anu ter arrebatado o céu

Depois de Enlil ter arrebatado a terra

Depois de Ereskigal ter recebido o Mundo Inferior como prémio,

 

Aquele que viu tudo e ouviu tudo

O que viu o Secreto e atravessou o Oculto

Aquele cujo arco não será excedido

Cuja força não será destruída

O Senhor de Uruk a das altas muralhas

Dois terços deus um terço homem

Foi Guilgamesh gerado

De Nin-Sun, a deusa, a vaca, a sábia

E de Lugalbanda, o terceiro depois do Dilúvio,

Um Lil-Lá

Guilgamesh, o Senhor construtor

Das altas muralhas de Uruk

Ergueu o Templo Doirado, o Céu de Anu e de Isthar,

E fez gravar nuna estela o conto dos seus dias.

 

Poema do séc. XXV a.C. - Suméria - traduzido por Mário Cesariny

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publicado às 15:29


#3248 - O DILÚVIO

POEMA ORIGINÁRIO DO HAVAI TRADUZIDO POR MARIA JOÃO VILAR DE FIGUEIREDO

por Carlos Pereira \foleirices, em 26.12.22

O DILÚVIO

 

Ó Deus, eis a tua comida,

Ó Kahuli, primeiro dos homens,

Ó Kahela,

Ó tu, mulher que dormes com a face voltada para o céu...

... Ó vós, raça de Laka,

Ó Manuu, malfazejo,

Ó grande sustento, acordai o mundo.

Ó acordai,

Ó acordai, que a chuva chegou.

Chegou a madrugada,

Já as brumas correm em debandada para a terra,

Já as brumas correm em debandada para o mar,

O mar que enche e se ergue.

O mar encapelado de Iku.

O mar fecha-se sobre nós,

Ó espumoso mar,

Ó vagas que se elevam e voltam a cair,

Ó vagas indomáveis

Em Kahiki.

A salvação vem-nos de ti,

Tu arrancas-nos à morte, ó Lono.

Um altar para ti, ó Lono.

Ó Lono da noite,

Ó Lono do trovão

Ó Lono do raio,

Ó Lono da chuva forte,

Ó Lono de rosto terrível e divino,

Ó Lono, ó Lono de olhos sem descanso,

Ah, voa para o mar do sul,

Para o mar oriental,

Para a costa sombria, para a costa branca,

Para  a sombria lua, para a lua brilhante,

Ó Pipipi, ó Unauna,

Ó Aleala, ó conchas, deslizai para longe,

Ó vós, peixes Naka e Kualajai,

Ó vós, peixes Kama e Opihi que vos colais à rocha.

Ide esconder-vos na areia,

Porque o vento arranca a cabeleira das árvores.

Ó Veleiro real,

Tabernáculo da palavra de Pii,

Ó Kama-a-Poepoe, portadora da taça de água pura!

 

Poema do Havai traduzido por Maria Jorge Vilar de Figueiredo

 

 

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publicado às 14:57


#3245 - UM ROSTO NO NATAL

POEMA DE RUY BELO

por Carlos Pereira \foleirices, em 22.12.22

UM ROSTO NO NATAL

 

Caiu sobre o país uma cortina de silêncio

a voz distingue o homem mas há homens que

não querem que os demais se elevem sobre os animais

e o que aos outros falta têm eles a mais

No dia de natal eu caminhava

e vi que em certo rosto havia a paz que não havia

era na multidão o rosto da justiça

um rosto que chegava até junto de mim da nicarágua

um rosto que me vinha de qualquer das indochinas

num mundo onde o homem é um lobo para o homem

e o brilho dos olhos o embacia a água

Caminhava no dia de natal

e entre muitos ombros eu pensava

em quanto homem morreu por um deus que nasceu 

A minha oração fora a leitura do jornal

e por ele soubera que o deus que cria

consentia em seu dia o terramoto de manágua

e que sobre os escombros inda havia

as ornamentações da quadra do natal

Olhava aquele rosto e nesse rosto via

a gente do dinheiro que fugia em aviões fretados

e os pés gretados de homens humilhados

de pé sobre os seus pés se ainda tinham pés

ao longo de desertos descampados

Morrera nesse rosto toda uma cidade

talvez pra que às mulheres de ministros e banqueiros

se permita exercitar melhor a caridade

A aparente paz que nesse rosto havia

como que prometia a paz na indochina a paz na alma

Eu caminhava e como que dizia 

àquele homem de guerra oculta pela calma:

se cais pela justiça alguém pela justiça

há-de erguer-se no sítio exacto onde caíste

e há-de levar mais longe o incontido lume

visível nesse teu olhar molhado e triste

Não temas nem sequer o não poder falar

porque fala por ti o teu olhar

Olhei nais uma vez aquele rosto era natal

é certo que o silêncio entristecia

mas não fazia mal pensei pois me bastara olhar

tal rosto para ver que alguém nascia

 

Poema de Ruy Belo, in "País Possível"

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publicado às 15:48


#3244 - DA DOCE GUARDA

POEMA DE LÍDIA JORGE

por Carlos Pereira \foleirices, em 21.12.22

DA DOCE GUARDA

 

Vamos para essa casa iluminada

sem candeia. Às vezes, muitas vezes

cantaremos.

 

Será uma terra coberta de ossos

mas nunca serão nossos.

Nesse lugar alguém semeará

ervas daninhas, mas nunca

serão minhas.

 

Em último caso, sempre surgirá

um anjo que nos concederá uma

doce guarda - de um lado o coração

do outro, a espada. Na hora certa

ele nos entregará um cavalo e o segredo

de montá-lo.

 

Vamos para essa casa iluminada, sem candeia

espadeirando o escuro. Que noite prodigiosa

é o futuro.

 

Poema de Lídia Jorge, in "Livro das Tréguas", edição Publicações D. Quixote, 2019

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publicado às 13:24


#3243 - A SOLIDÃO DOS HOMENS CANSADOS

POEMA DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

por Carlos Pereira \foleirices, em 20.12.22

A SOLIDÃO DOS HOMENS CANSADOS

 

A

cada dia que passa me sinto mais fatigado. Um

homem procura ternura

no seu regresso a casa (um

homem não vê o instante em que despe

o ultraje) quando

sai de pés descalços pelo soalho da tarde em

busca de um

copo de olvido. Um homem conhece a casa

pelo gato à janela -

duas pupilas acesas sentam-se

à sua mesa

sentam-se à mesa da alma. E a casa recebe o homem

com uma noite sempre nova

(um homem entrega tudo a quem o 

salve do exílio)

quem lhe aplaque a solidão que existe nos

homens cansados.

 

Poema de João Luís Barreto Guimarães, in "O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS", Edição Quetzal, Fevereiro de 2019.

 

 

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publicado às 16:45


#3242 - MORTE ANÓNIMA

POEMA DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES [PRÉMIO PESSOA 2022]

por Carlos Pereira \foleirices, em 18.12.22

Ver a imagem de origem

O Tempo Avança por Sílabas

 

MORTE ANÓNIMA 

(EM MEMÓRIA DE ROBERTO LEÃO)

 

De quando em quando a Morte teima em

nos surpreender. Sem grande alarido

é certo (sequer sem se anunciar) antes

súbita e precisa

lacónica

indiferente. Mas sempre ela

a Morte

(crua e definitiva) como que

querendo mostrar inexorabilidade -

nem sempre a morte imortal que coube a Pátroclo

(entregando-se em glória à

espada do divino Heitor) ou

a que colheu Heitor arrastado por Aquiles

(sequer a que teve Aquiles na

ponta da seta de Páris). Falo de

uma morte simples mais

humana

(sem história) estranho que

nos morra mais quem morre de

morte anónima.

 

Poema de João Luís Barreto Guimarães, in "O Tempo Avança por Sílabas" edição Quetzal,  Fevereiro de 2019

 

_______________________________________________________________________

Além de poeta e tradutor, João Luís Barreto Guimarães, que nasceu no Porto em junho de 1967, é médico, professor de poesia no ICBAS/Universidade do Porto, e publicou o primeiro livro de poemas, Há Violinos na Tribo, em 1989. Depois desse, seguiram-se Rua Trinta e Um de Fevereiro (1991), Este Lado para Cima (1994), Lugares Comuns (2000), 3 (poesia 1987-1994), em 2001, Rés-do-Chão (2003), Luz Última (2006) e A Parte pelo Todo (2009). Em 2022 recebe o Prémio Pessoa.

Seguiram-se na Quetzal Editores, Poesia Reunida de 2011; Você está Aqui (2013), traduzido em Itália; Mediterrâneo (2016) distinguido com o Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa e publicado em Espanha, Itália, França, Polónia e Egipto; Nómada (2018) distinguido com o Prémio Livro de Poesia do Ano Bertrand e com o Prémio Literário Armando da Silva Carvalho, publicado também em Itália; a antologia O Tempo Avança por Sílabas (2019), editada também na Croácia, Macedónia e Brasil; e Movimento (2020). Finalista do Premio Internazionale Camaiori, em Itália, com Mediterraneo, em 2019, e Nomade, em 2020, recebeu o Willow Run Poetry Book Award 2020, nos EUA, com Mediterranean.

Está representado em antologias e revistas literárias de Portugal, Espanha (castelhano e catalão), França, Bélgica, Holanda, Reino Unido, Alemanha, Áustria, Itália, Hungria, Bulgária, Roménia, Eslovénia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Macedónia, México, Uruguai, Chile, República Dominicana, Estados Unidos, Canadá e Brasil. Leu a sua poesia no México, Estados Unidos, Espanha, Alemanha e Croácia. Recebeu o Prémio Criatividade Nações Unidas em 1992. Além da Medicina, divide o seu tempo entre o Porto (frente ao rio) e Venade (no coração da serra, perto de Caminha, Alto Minho).
 
Fonte: QUETZAL EDITORES

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publicado às 18:11


#3241 - MÚSICA

POEMA DE ANTÓNIO GANCHO

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.11.22

MÚSICA

 

A música vinha duma mansidão de consciência

era como que uma cadeira sentada sem

um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo

nada fazia prever que o vento fosse de azul para cima

e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante

era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa

nós não movimentamos o espaço mas a vida erege a cifra

constrói por dentro um vocábulo sem se saber

como o que será

era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante

silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.

 

Poema de António Gancho in "Ar  da  Manhã", edição Assírio & Alvim, 2022.

 

_________________________________________________________________________________________________________________

Poeta e ficionista. Nascido no início da década de 40, a poesia de António Gancho permaneceu inédita até 1985, data em que Herberto Helder reuniu, na sua antologia Edoi Lelia Doura, onze poemas do autor até então completamente desconhecido. As poucas informações biográficas disponíveis sobre António Gancho encontram-se aí expostas, dando a perceber a razão da escassez de publicação da obra deste poeta: «Com pouco mais de 20 anos foi internado numa clínica psiquiátrica, tendo vivido desde então em estabelecimentos deste género.» Sabe-se hoje que António Gancho viveu no estabelecimento psiquiátrico de Telhal (arredores de Lisboa) desde 1967 até à sua morte a 2 de Janeiro de 2006. Retirado da convivência editorial devido ao seu internamento, foi através do contacto com alguns amigos (de entre os quais se destacam Álvaro Lapa, António Palolo e Mário Cesariny, com os quais António Gancho tinha primeiramente contactado aquando da sua frequência do Café Gelo, ligado ao grupo dos surrealistas) que a sua produção chegou às mãos do editor. Assim, só em 1995 foi possível reunir, no volume intitulado O Ar da Manhã, toda a sua produção poética, datada de entre 1960 e 1985. Dividido em três conjuntos autónomos de poemas («Gaio do Espírito», 1985/86, «Poesia Prometida», 1985, e «Poemas Digitais», 1989), o livro em que se reúne a poesia de António Grango evidencia alguma heterogeneidade de temas e de formas poéticas, não sendo fácil a sua síntese. Assim, a par de poemas em que se explora ludicamente a materialidade sonora da linguagem como, por exemplo, nos versos «Route / Rota / Caminho puro e são / Chanção / Coração / Sahara / Uazara / Oasara / Oasimara»), com evidentes ressonâncias surrealistas, existem também alguns poemas, escritos na língua original dos autores homenageados, que se constituem como tributos a, entre outros, François Villon e Oscar Wilde, por via dos quais se estabelece uma interessante intertextualidade com os autores citados. Alguns dos mais interessantes poemas de António Gancho são aqueles em que está presente uma certa auto-reflexividade sobre os princípios de criação poética e que dão a ler os alicerçes da sua prática poética: «Nasce o sol e nasce o poema / e com esta simultaneidade / o que o poeta significa é que a sua arte é luz». Concebida como um processo de simultânea integração e totalização do homem na natureza, a poesia de António Gancho poderia ser sintetizada nestes versos seus, onde se afirma que «A poesia nasce e faz-se aqui neste fazer-se poesia. / […] A poesia assim maravilhosamente constituída / […] faz do homem o ser absoluto por natureza», sobretudo porque esta se funda num princípio de transmutação de todas as coisas: «A poesia assim é uma maravilhosa alquimia da vida».

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publicado às 20:58


#3240 - 98

POEMA DE ANTÓNIO CABRITA

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.11.22

98

 

Como querer viver sem estar ferido,

meu amor? O falcão e a rola

desprendem-se da mesma nuvem,

de um mesmo sono sem cuidados.

 

Como estar vivo e não me engastar

No medo relativo? Heitor

é o estado que acrescentei ao nome,

a telha que faltava ao céu azul,

 

as tuas três sílabas de argila

com que a água escora o vento

e o hálito aclara a alusão:

presença de si mesmo desvendada

 

Poema de António Cabrita in "Tristia," Porto Eitora, 2021.

 

_________________________________________________________________________________________________________

BIOGRAFIA

António Cabrita (1959) tem vinte e tal livros publicados, em Portugal, Brasil (três livros de ficção) e Moçambique (livros de fábulas, poesia e ensaio). Foi jornalista durante 23 anos e editor (Fim de Século e Íman Edições). Em 2005 emigrou para Moçambique onde, neste momento, é professor de Dramaturgia e cronista no semanário Savana. Tem também uma coluna no jornal Hoje Macau. Escreveu inúmeros filmes. De entre os seus livros destacam-se: Inferno, 2001, três guiões sobre Camilo Castelo Branco, escritos em parceria com Maria Velho da Costa, Bagagem não ReclamadaAnatomia Comparada dos Animais Selvagens (Prémio PEN Clube 2018), e a Kodak faliu. também Dick, o cão da minha infância, 2020, poesia; e A Maldição de Ondina, 2013 (finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa - C. M. Póvoa de Varzim 2013), Éter, 2015 (finalista do Prémio PEN Clube 2016), A Paixão segundo João de Deus, 2019, e Fotografar contra a luz, 2020, romances. Como tradutor, realça-se a sua antologia de poesia hispânica, As Causas Perdidas, 2020.
 
FONTE: 

PORTO EDITORA

 

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publicado às 20:35


#3239 - ROMANCE DE POMPEIA

POEMA DE DAVID MOURÃO-FERREIRA

por Carlos Pereira \foleirices, em 23.11.22

ROMANCE DE POMPEIA

 

Ninguém nos vem em socorro

Ninguém nos liberta os braços

Há dois milénios que somos

os amantes soterrados

Nem o mais ínfimo agouro

na manhã daquela tarde

Mas era o último encontro

sem que ninguém o sonhasse

E soubemos ir tão longe

tão enlaçados ficámos

que em tudo vibrava o sboço

de uma já eternidade

Mergulhados neste sono

há dois milénios ou quase

é ainda o dia de hoje

esse ontem tão recuado

Ou foi sonho o dia de ontem

e desde então acordados

nem cremos que à nossa roda

existisse uma cidade

que lá fora houvesse um Foro

lojas   casas   balneários

Apenas o teu pescoço

Apenas as tuas pálpebras

Apenas o antegosto

de sabê-las deflagradas

Sentimos súbito um sopro

mais escaldante      Julgámos

que o ar se tornara louco

do calor dos nossos lábios

que ia arder o mundo todo

com o fogo que lhe dávamos

Só depois vimos que o fogo

de encontro a nós avançava

líquido    espesso    de rojo

como um imenso lagarto

putrefacto e cujo dorso

cada vez mais coruscava

E tanto crescia em torno

da casa onde stávamos

e tanto subia ao topo

de paredes e telhado

e tanto o ardente bojo

se ia tornando compacto

que de súbito esse forno

de todo nos apertava

Leio terror no teu rosto

pânico em tuas spáduas

pavor em todo o teu corpo

que era hápouco o de uma galga

o de uma galga no ponto

mais elevado do orgasmo

E nesse ponto de há pouco

eternizados ficámos

Somos assim um do outro

há dois milénios ou quase

saboreando o tesouro

da eternidade do auge

Ao profundíssimo poço

até hoje inviolado

que no chão se abriu e onde

vivos ainda tombámos

chegam-nos vagos rumores

do que por cima se passa

todo o sonho     todo o logro

que por cima tem passado

Cascos agudos de donos

e pés desnudos de escravos

cupidez de demagogos

estupidez  de soldados

os que bramam contra o lodo

para mais lodo criarem

os que rastejam no tojo

até se julgarem águias

os que ao céu o fogo roubam

mas em fumo se desfazem

utopias de alguns tontos

visões de alguns visionários

que se quebraram de encontro

ao gelo dos homens práticos

de cujos hábeis engodos

nos poderiam ter salvo

E também a luz     a força

de corpos jovens e ágeis

corças     panteras     e potras

mais belas quanto selvagens

há lei do que há-de ser podre

todavia condenadas

Antes o fim que nos coube

Se é  que fim pode chamar-se

a este abraço em que somos

um só astro     uma só státua

uma só chama     um só tronco

por toda a eternidade

mais livres porque um do outro

um ao outro acorrentados

Ninguém nos venha em socorro

Ninguém nos deslace os braços

 

POEMA DE DAVID MOURÃO-FERREIRA, in "OBRA POÉTICA" [1948-1995], EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, NOVEMBRO 2019

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publicado às 17:58


#3230 - O ESPELHO ||| Poema de Vasco Graça Moura

por Carlos Pereira \foleirices, em 22.08.22

VASCO GRAÇA MOURA [1942-2014]

 

O ESPELHO

 

escrevo, escreverei para espalhar a realidade,

suas sombras rasteiras, suas nuvens altas,

a luz mais líquida de algum olhar, as difíceis ausências

e as plantas lascivas trepando entre os silêncios,

 

entre lisas colunas, níveas tetas, roxos lírios

e citações assim, da minha juventude,

e os ritmos do vento e a erosão dos seixos,

e os fios de algumas ariadnes, solícitas e lúbricas

 

na sua timidez, nos estranhos percursos

em que há devorações e o poema se torna

uma triste película a envolver a alma

para lhe conservar as impurezas do desejo.

 

talvez por isso a escrita não passe de um concheiro

de camadas calcárias que o tempo estratifica,

mas então o real que ela espelhou não mente

embora mais terrível se torne desvendá-lo,

 

digo eu do meu amor, do que trarei comigo

até me calcinar ou da violência dos corpos

por noites esquecidas feitas de fogo e orgasmo

e entrecortadas palavras e roucos monossílabos,

 

digo eu da superfície de um lago de sossego

em que a lua mergulha e uma brisa mais tensa

ressoa nos pinheiros, percorre a habitação

e traz em seus harpejos o eco de um soluço.

 

tornou-se este lugar a pedra da violência

onde se calam a voz, a luz, so sons da terra,

e tudo se entrechoca e tudo se fragmenta

e as quadrigas do tempo não poderão deter-se

 

e então é que eu escrevo desde esta realidade

esperando da escrita que pelo menos sirva

para espelhá-la em suas nuvens altas

e nas sombras que crescem até ao teu olhar.

 

POEMA DE VASCO GRAÇA MOURA RETIRADO DO LIVRO "O CADERNO DA CASA DAS NUVENS", EDIÇÃO N.º 1266  EDIÇÕES AFRONTAMENTO MARÇO DE 2010                                                                

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publicado às 18:43


#3223 - O MEU FILHO É INTERROGADO

PROSA DE TIMOTHY HAGELSTEIN

por Carlos Pereira \foleirices, em 01.03.22

Ouço um disco da Dulce Pontes, aqueles fados imortais, Canção do Mar, Povo que lavas no rio, Se voasses para perto de mim... todas canções maravilhosas.

 

Isso ajuda-me a suportar a distância, o tempo faz o sentimento, transforma-o e idealiza-o, imagino o brilho suave nas terras escarlates do Alentejo, naquela estrada que leva ao Sul e atravessa aldeias adormecidas. E hoje dou comigo a pensar no que a actual namorada do meu filho, o seu primeiro amor, lhe perguntará daqui a alguns anos quando se voltarem a encontrar, com uma outra vida desenhada e outras respirações partilhadas, para ambos, imagino as suas questões, se eu ainda estiver vivo, ela poderá perguntar-lhe:

 

E o teu pai? Ainda encerrado na sua gruta, o seu escritório e ateliê de  criação? A  procurar palavras e a juntá-las, transmitindo uma ideia, um momento que conseguiu captar, uma pata com os seus patinhos? uma imagem para desenhar ou colorir? uma música que não lhe sai da cabeça e não o deixa em paz até a ter gravado? Ainda tão solitário e afastado de tudo e de todos, sozinho com as suas memórias indefiníveis excepto através dos seus poemas? Continua um misantropo? revoltado contra a ignomínia dos políticos e apoiantes de movimentos políticos ou sindicais hipócritas? Ainda fala das suas noites bravas e das cores do céu cujos perfumes dizia respirar, quando dizia que alguém era um poema que vivia dentro de si e através do qual chegava ao seu coração e aos seus tormentos? Invejoso, mas com admiração, não cobiça, sentimemnto que diz nunca ter tido e que deixou aos medíocres que desperdiçam a sua energia preocupando-se com os outros.

 

Continua tão solitário, tão afastado de tudo, após ter conhecido certas glórias e certas luzes? Revoltado contra as sentinelas da moralidade nas suas cidadelas, intransigentes, contra aqueles que cultivam com talento a denúncia, ele que se alimenta da imprevisibilidade do som das palavras e que vê em cada velho músico uma beleza digna de uma pintura de Miguel Ângelo. Esses Mick Jaggers, esses Keith Richards, septuagenários enrugados e marcados mas tão belos pelas suas vivências.

 

Ainda tem aqueles ímpetos para misturar violentamente cores numa tela infernal que ninguém entende, mas na qual ele vê o deserto florescer ou um pequeno fosso amargo de riquezas íntimas? Ainda diz que as palavras são sons, a música,  cores, e a çpintura, frases coloridas e que, portanto, as expressões das três artes são idênticas e se fundem?

 

Não sei o que o meu filho poderá responder, sei, pelo menos espero, que ele lhe dirá que passou comigo os melhores anos da sua vida familiar e que o amor que lhe dei foi o principal, a arte é apenas uma mensagem que deixarei àqueles que apreciei e amei na vida e que me terá ajudado a viver, sobreviver e morrer e,  na verdade, isso é o principal.

 

TEXTO DE TIMOTHY HAGELSTEIN, DO LIVRO "APNEIAS EMOCIONAIS - POESIAS, PROSAS E NOTAS BIOGRÁFICAS", EDIÇÃO GUERRA E PAZ, EDITORES, NOVEMBRO DE 2021, TRADUÇÃO DE ANA PAULA FILIPE.

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publicado às 19:59


#3222 - POEMA DE HERBERTO HELDER

DO LIVRO "SERVIDÕES"

por Carlos Pereira \foleirices, em 01.03.22

já não tenho tempo para ganhar o amor, a glória ou a Abissínia,

talvez me reste um tiro na cabeça,

e é tão cinematográfico e tão sem número o número dos efeitos especiais,

mas não quero complicar coisas tão simples da terra,

bom seria entrar no sono como num saco maior que o meu tamanho,

e que uns dedos inexplicáveis lhe dessem um nó rude,

e eu de dentro o não pudesse desfazer :

um saco sem qualquer explicação,

que ficasse para ali num sítio ele mesmo sítio bem amarrado

- não um destino à Rimbaud,

apenas longe, sem barras de ouro, sem amputação de pernas,

esquecido de mim mesmo num saco atado cegamente,

num recanto pela idade fora,

e lá dentro os dias eram à noite bem no fundo,

um saco sem qualquer salvação nos armazéns obscuros

 

POEMA DE HERBERTO HELDER in "SERVIDÕES", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, MAIO DE 2013

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publicado às 19:20


#3220 - O POETA DAS IMAGENS

por Carlos Pereira \foleirices, em 11.02.22

São corpos pendurados em paredes de sombras, registados em papel com a ajuda de um relâmpago emitido por uma velha máquina fotográfica. Poses  artísticas forçadas de pais, avós, filhos dos filhos, tias solteiras, putos ranhosos que também aparecem mas que não foram convidados por falta de espaço e não ser domingo - era o argumento...

Ser fotógrafo era também ser encenador e mestre na arte de dispor as almas nas suas diversas posições e atitudes para, no final, parecerem actores ou figurantes numa cena de teatro burlesco, de marionetes . Era considerado no seu meio e entre os seus pares um verdadeiro mestre na arte de fixar para a posteridade os momentos em memórias que alguém guardaria numa caixa qualquer ou num caixilho que ficaria em equilíbrio numa parede qualquer de um compartimento da casa.

As expressões do rosto e as formas diversas que o corpo assumia reflectiam estados psicológicos, de humor, de hierarquias bem vincadas pela posição de cada um no espaço geográfico da lente da máquina que dava para perceber a  importância que cada um tinha e o seu papel na estrutura social e familiar.

Era um verdadeiro alquimista, um mágico que no quarto escuro apenas iluminado por uma luz vermelha conseguia dar vida a películas  mergulhadas num caldo químico, como se fosse o útero onde se formava, célula a célula, um corpo que era expulso depois de estar completamente pronto.

Era um poeta que escrevia e fixava um momento da vida para a posteridade.

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publicado às 14:56


#3216 - LIVROS E LEITURAS

APNEIAS EMOCIONAIS - TIMOTHY HAGELSTEIN

por Carlos Pereira \foleirices, em 05.02.22

AFAGAR A MEMÓRIA

 

Desenho a tua ausência,

perdoo-te por existires;

alquimia que mistura

a chuva do passageiro.

Gestos de amor esquecidos

e esperanças nocturnas

da minha infância destruída

levaram afinal à minha fortuna.

Podes a minha memória afagar

para eu sempre em ti acreditar?

 

POEMA DE TIMOTHY HAGELSTEIN "in Apneias Emocionais" edição Guerra & Paz, Novembro de 2021, tradução de Ana Paula Filipe

 

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publicado às 20:17


#3215 - AS PALAVRAS NA BOCA DOS TAGARELAS

por Carlos Pereira \foleirices, em 20.01.22

O vazio está sentado no centro de uma estrela

com a cabeça apoiada num pensamento incolor, transparente, inodoro,

inclinando-se para o lado que o vento soprar

provocando o tédio

bocejando até a boca não poder abrir-se mais

criando um sopro de ar

que circula entre a garganta e o exterior do corpo

situado no limite da vertigem,  da tolerância, do vómito

e que devora a vontade de se opôr ao ruído opaco das palavras

sentado ao lado do vazio que deixa de ser, por isso,

o centro da estrela.

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publicado às 21:24


#3213 - A STANISLAW WYSPIANSKY

POEMA DE KATHERINE MANSFIELD [1888-1923]

por Carlos Pereira \foleirices, em 13.01.22

Credit: Getty Images/Keystone

 

A STANISLAW  WYSPIANSKY

 

Do outro lado do mundo,

De uma pequena ilha embalada no grande regaço do mar,

De uma pequena ilha sem história,

(Fazendo a sua própria história, lenta e desajeitadamente,

Juntando isto e aquilo, encontrando o padrão, resolvendo o problema,

Como uma criança com uma caixa de tabuinhas),

Eu, uma mulher, com a marca do pioneiro no meu sangue,

Cheio de uma força juvenil que consigo guerreia e ignora leis,

Canto em teu louvor, guerreiro magnífico; Eu proclamo a tua batalha triunfante.

O meu povo não teve nada contra o que lutar;

Trabalharam à luz clara do dia e manipularam o barro com dedos rudes;

A Vida - uma coisa de sangue e músculo; a Morte - um enterro de desperdícios.

 

Que poderiam saber de fantasmas e presenças invisíveis,

De sombras que obscurecem a realidade, da escuridão que nega a manhã?

Límpida e suave é a água que escorre das suas montanhas;

Como poderiam conhecer ervas venenosas, gavinhas podres que estorvam?

A tapeçaria tecida com os sonhos da tua infância trágica

Eles rasgariam com as suas mãos inábeis,

A luz triste e pálida da tuua alma apagariam com o seu riso infantil.

Mas os mortos - os velhos - Oh Mestre, aí te pertencemos;

Oh Mestre, somos crianças e aterrados pela força de um gigante;

Como saltaste vivo para o túmulo e lutaste com a Morte

E encontrste nas veias da Morte o sangue vermelho florindo

E ergueste a Morte nos teus braços e a mostraste a todo  o povo.

A tua foi uma tarefa mais pessoal que os milagres do Nazareno,

O teu um encontro mais estrénuo que as ordens mais amáveis do Nazareno.

Stanislaw Wyspiansky - oh homem com o nome de um combatente,

Através destes milhares de quilómetros estilhaçados de mar, em alta voz te proclamam;

Dizemos «Ele jaz na Polónia, e a Polónia pensa que ele morreu;

Mas ele disse não à Morte - ele jaz ali, acordado;

O sangue do seu grande coração pulsa vermelho nas suas veias».

 

Poema de Katherine Mansfield, escritora neozelandesa, (1888-1923) traduzido por José Alberto Oliveira

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publicado às 06:46


#3205 - O MAIS FORTE ENTRE OS ESTRANHOS

POEMA DE CHARLES BUKOWSKI

por Carlos Pereira \foleirices, em 10.12.21

não os encontrarás com regularidade

pois não se encontram

onde se encontra 

a multidão

 

estes seres ímpares,

não há muitos

mas deles

vêm

os poucos

bons quadros

as poucas

boas sinfonias

os poucos

bons livros

e outras

obras.

 

e dos

melhores

entre os estranhos

talvez

nada.

 

eles são

os seus próprios

quadros

os seus próprios

livros

as suas próprias

obras.

 

às vezes penso

que

os vejo - por exemplo

um determinado

velho

sentado num

determinado banco de jardim

de uma determinada 

forma

 

ou 

uma cara fugaz

num carro

que passa

em direcção

contrária

 

ou

há um certo

gesto de mãos

do rapaz ou

da rapariga

a embalar compras

em sacos

de supermercado.

 

às vezes

até é alguém

com quem se vive

há algum

tempo -

dás conta de

um fugidio

olhar luminoso

que nunca lhes viras

antes.

 

às vezes

apenas notas

a sua existência

subitamente

e de forma vívida

alguns meses

alguns anos

depois de

partirem.

 

lembro-me

de um caso

assim -

ele tinha

cerca de 20 anos

bêbedo

às 10 da manhã

a fitar

um espelho partido

em Nova Orleães

 

cara sonhadora

contra

as paredes

do mundo

 

para

onde

fui eu?

 

POEMA DE CHARLES BUKOWSKI, DO LIVRO "OS CÃES LADRAM FACAS (ANTOLOGIA POÉTICA", EDIÇÃO ALFAGUARA, NOVEMBRO DE 2018

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publicado às 06:49


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