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BORRAS DE IMPÉRIO
I
Os impérios sempre se fizeram
com os que são forçados a fazê-los
e com os que ficam para ser mandados
e cuspidos pelos que querem fazê-los.
Por isso, há nos povos imperiais
algo de um visgo de alma: que ou é cuspo,
ou um prazer dolente como de escarra e cospe.
II
Há impérios que deixam no deserto ruínas de capitais pomposas.
E há os outros que se desculpam com tremores de terra
de terem passado sobre si mesmos como gafanhotos.
III
Pergunto-me a mim mesmo como foi possível:
ou os impérios o seu povo até que ele seja
uma raça agachada, mesquinha e traiçoeira,
ou é com gente dessa que os imnpérios se fazem,
já que nada glorioso se constrói humanamente
sem 10% de heróis e 90% de assassinos.
Que coisa fedorenta a glória, sobretudo
enquanto não passam séculos e só ruínas
fiquem - onde nem o pó dos mortos
ainda cheire mal.
IV
Portugal é feito dos que partem
e dos que ficam. Mas estes
numa inveja danada por aqueles terem
sido capazes de partir, imaginam-lhes a vida
a série de triunfos sonhados que eles mesmos
nas horas de descrerem da mesquinhez em que triunfam
todos os dias. E raivosamente
escondem a frustração nos clamores
da injustiça por os outros lá não estarem
(como eles estão), do mesmo passo
que se ocupam afanosamente em suprimi-los
(não vão eles ser tão tolos-
- a ponto de voltarem).
8 de Junho de 1971
(EXORCISMOS, 1972)
CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
POEMA DE JORGE DE SENA
Manuel de Freitas
GRANDE HOTEL DE PARIS, QUARTO 312
Um amigo meu disse-me para nunca
meter gaivotas num poema.
O que seria fácil noutra cidade qualquer,
onde o ruído do seu voo não acompanhasse
tão de perto a minha insónia, a vaga
inquietação do teu corpo adormecido.
Alastra da Sé aos Clérigos, um alarme branco
que a janela deste quarto aceita há mais de
duzentos anos. Serão outras as gaivotas
e as cabeças que, depois de muito ou nenhum
sexo, se rendem ao limbo brasonado dos lençóis.
Mas eu vim para a casa de banho escrever
este poema simples, cheio de versos inúteis,
que me exige as horas que não tenho.
Sem ele, teria sido um dia grácil e ligeiro
como a morte, duro e inaceitável
como a vida. Pois consegui, antes destes
adjectivos todos, comprar o belo e o sublime
por menos de oito euros. E o livro que Jorge
de Sena dedica sem gaivotas, «à cidade do Porto».
Deveria ser fácil como um beijo, este poema.
Mas não. Chegamos à janela e só vemos
lixo, prédios devolutos, uma coroa
de terra a esboroar-se.
E invejamos,
das gaivotas, a pungente desrazão do voo,
essa alegria de não ter palavras
sob o céu limpo que nos mata.
Poema de Manuel de Freitas dedicado à memória de Jorge de Sena - in Terra Sem Coroa
GLOSA À CHEGADA DO OUTONO
O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura assetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...
Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.
Poema de Jorge de Sena
BORRAS DE IMPÉRIO
I
Os impérios sempre se fizeram
com os que são forçados a fazê-los
e com os que ficam para ser mandados
e cuspidos pelos que querem fazê-los
Por isso, há nos povos imperiais
algo de um visgo de alma: que ou é cuspo,
ou um prazer dolente como de escarra e cospe.
II
Há impérios que deixam no deserto ruínas de capitais pomposas.
E há os outros que se desculpam com tremores de terra
de terem passado sobre si mesmos como gafanhotos.
III
Pergunto-me a mim mesmo como foi possível:
ou os impérios gastam o seu povo até que ele seja
uma raça agachada, mesquinha e traiçoeira,
ou é com gente dessa que os impérios se fazem,
já que nada glorioso se constrói humanamente
sem 10% de heróis e 90% de assassinos.
Que coisa fedorenta a glória, sobretudo
enquanto não passam séculos e só ruínas
fiquem - onde nem o pó dos mortos
ainda cheire mal.
IV
Portugal é feito dos que partem
e dos que ficam. Mas estes
numa inveja danada por aqueles terem
sido capazes de partir, imaginam-lhes a vida
a série de triunfos sonhados por eles mesmos
nas horas de descrerem da mesquinhez em que triunfam
todos os dias. E raivosamente
escondem a frustração nos clamores
da injustiça por os outros lá não estarem
(como eles estão), do mesmo passo
que se ocupam afanosamente em suprimi-los
(não vão eles ser tão tolos -
- a ponto de voltarem).
POEMA DE JORGE DE SENA ESCRITO EM 8 DE JUNHO DE 1971
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Jorge de Sena
A MISÉRIA DAS PALAVRAS
Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,
na liberdade.
Se a miséria e a pobreza
fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
viria a liberdade por acréscimo,
sem palavras, sem gestos, sem delíquios.
Assim, apenas se fala do que se não fala,
apenas se vive do que não se vive,
apenas liberdade é uma miséria
sem nome, sem futuro, sem memória.
E a miséria é isso: não imaginar
o nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a língua em algo mais
que o falar por falar.
Falem. Mas não comigo. E sobretudo
sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
no silêncio que à linguagem faz
imaginar-se mais que o próprio mundo.
Poema de Jorge de Sena in "Antologia Poética" escrito em 5 de Agosto de 1962, edição Guimarães, Novembro de 2010
O jovem Don Juan de braço ao peito
(por um dedo entrapado)
debruça as barbas para a mesa ao lado
numa insistência pública de macho
que teima em conversar a rapariga
(no dedo aliança, azul em torno aos olhos)
a escrever cartas e a enxotá-lo em fúria.
Um outro chega e senta-se de longe.
Cara rapada, pêlo curto, ombros erguidos,
é dos que o queixo pousam sobre as mãos,
e de entre o fumo lento do cigarro,
dardejam olhar fito para a presa
- é dele, é dele, os olhos dizem tesos.
Numa outra mesa, três outras fardas miram
de esguelha, enquanto falam vagamente atentos,
e os olhos ínvios de soslaio despem
a pouca roupa da que escreve à mesa.
Feito já seu papel para que conste,
oh ares de cavalão... outras à espera...
o Don Juan comenta pró criado a vítima,
saída num repente. Riem-se ambos.
Quando ela se ia embora, dois empatas
entraram e sentaram-se na mesa
do que ficara olhando o espaço aberto
pela partida dela. Conversam que ele não ouve.
Gingando a barba mais o braço ao peito,
vai-se o vencido (pagará uma puta,
para amanhã contar como dormiu com esta).
Os outros três, mais tarde, em casa, na retrete,
vão masturbar-se a pensar nela (e voltarão
amanhã ao café para contarem
de uma grande conquista que fizeram todos).
E aquele que - quem sabe - era a quem ela
acaso se daria (ou será que ele
é dos que só penetra com o olhar suspenso?)
foi quem não teve nada. Olhou demais,
e não saiu a tempo de escapar
à companhia idiota dos seus dois amigos.
Poema de Jorge de Sena escrito em 4 de Agosto de 1972, Luanda
Jorge de Sena
PURIFICAÇÃO DA UNIDADE
Não procures o que é efémero...;
não procures o que é Eterno,
tu não podes saber, tu não chegas para saber
o que é ou não é eterno.
Não procures senão o silêncio fechado,
recolhido e morno,
e começarás sentindo uma frescura que desce de cima
e te há-de começar a encher...
como a água do alto do abismo que vai cobrindo
e em cujas pedras se te entalaram os pés.
Deixa a água passar para cima da tua cabeça,
deixa-a subir bem,
não estertores,
não penses que te afogas!
... e então te desprenderás
e subirás na flutuação com ela,
há vácuo, em ti, suficiente
para flutuares com ela.
O silêncio, o silêncio fechado, recolhido e morno,
descerá do alto... ah mas não te enganes
porque ele não é Deus! Não é Deus!
É somente um resquício,
um sopro, um suor de eternidade,
de eternidade que não é de tempo,
de eternidade que é só altura,
e só diferença de mundos!... O banho
em que te banhas sem ouvir...
ah mas não te enganes que ele não é Deus,
a carne te complica,
a matéria te envolve,
tu não terás uma alma que te fuja, uma alma tua
e a Presença que ficará depois
esse sim ah mas não te enganes: não é Deus.
Tu não podes sentir, não podes ver,
é lon ge, é alto, é fora,
tudo o que ouvires é engano,
engano dos teus ouvidos materiais,
odiosos, desprezíveis...
O banho em que te banhas
de silêncio recolhido e morno,
deixa-te cobrir e flutuar,
os sons ali não se propagam,
a luz ali não se propaga,
a carna, lá, não vibra,
a música que ouves não toca em parte alguma...
ah mas não te enganes,
a vida rodeia-te, rodeia-te de ser,
e a água cai de longe, do alto, de fora,
um dia só depois,
um dia só depois, como e talvez,
ah mas não te enganes!,
o banho aceite recolhido e morno
e a frescura dentro ah não te enganes...
e NÃO O ENGANES: tu não chegas
e le, ele, não é ainda ele o próprio Deus!
POEMA ESCRITO POR JORGE DE SENA EM 20 DE AGOSTO DE 1940 DEDICADO AO POETA RUY CINATTI, RETIRADO DO LIVRO "ANTOLOGIA POÉTICA" EDITADO POR GUIMARÃES EM NOVEMBRO DE 2010
Sophia de Mello Breyner Andresen
Jorge de Sena
Filhos e versos, como os dás ao mundo?
Como na praia te conversam sombras de corais?
Como de angústia anoitecer profundo?
Como quem se reparte?
Como quem pode matar-te?
Ou como quem a ti não volta mais?
1950
Jorge de Sena, Peregrinatio ad loca infecta, 1969
Retirado do livro "Sophia de Mallo Breyner . Jorge de Sena - Correspondência 1959-1978", edição Guerra & Paz, Fevereiro de 2010
Numa iniciativa do Casino Figueira e da BABEL, realizar-se-á no sábado, 27 de Março, na cidade da Figueira da Foz, - cenário do romance “Sinais de Fogo” - uma homenagem a Jorge de Sena, uma das maiores figuras da literatura portuguesa do século XX , nos trinta anos da publicação (póstuma) desta obra-prima da ficção nacional.
"Ler Sinais de Fogo – Homenagem a Jorge de Sena" é como se intitula esta iniciativa que, para além da conferência inaugural de Jorge Vaz de Carvalho, autor da primeira tese de doutoramento sobre a obra “Sinais de Fogo”, reunirá, em dois Debates, seis professores universitários de Portugal e Espanha.
António Manuel Ferreira (Univ. Aveiro) Fernando Cabral Martins (Univ. Nova), Jorge Fazenda Lourenço (Univ. Católica), José Carlos Seabra Pereira (Univ. Coimbra), Margarida Braga Neves (Univ. Lisboa) e José Luís Garcia Martín (Univ. Oviedo – Espanha) participam numa reflexão sobre um romance fundamental para a compreensão da criação poética em Jorge de Sena e da cultura portuguesa no contexto dos conflitos sociais e políticos que fizeram a história dos anos 30, na Península Ibérica, tendo como pano de fundo a Guerra Civil de Espanha.
Haverá também leituras de excertos do romance pelo actor Luís Lucas e será exibido o filme “Sinais de Fogo” realizado por Luís Filipe Rocha em 1995, apresentado por Eugénia Vasques, professora e crítica de teatro, e Jorge Leitão Ramos, crítico de cinema do jornal “Expresso”. Na galeria do Casino, o fotógrafo Alfredo Cunha inaugurará a exposição “Sinais de Fogo na Figueira”.
Este evento conta com o apoio da Fundação José Saramago e do Instituto Cervantes de Lisboa. Chama a atenção dos portugueses, para uma obra essencial da cultura contemporânea recomendada, de resto, para leitura autónoma pelo Plano Nacional de Leitura e integrada como obra de referência no âmbito do Programa de Língua Portuguesa do Ensino Secundário.
No País dos Sacanas
Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glandulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.
Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?
Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já Ee pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.
10/10/1973 - Poema de Jorge de Sena
Correspondência trocada entre Jorge de Sena e José Blanc de Portugal
De José para Jorge
Benf. Maio 942
Caro e bom amigo
Eu é que fiquei feliz pela sua grande carta! Calcule que de há muito é o único contacto social que tenho com o mundo excepto os colegas de trabalho ou a gente das ruas e comboios de todos os dias!
Quanto às minhas coisas eu um dia farei tudo o que aconselha (embora muito sèriamente ache certíssimo o que V. diz "Uma coisa é preocupação pessoal, outra preocupação de lugar". Etc Etc... E quanto ao "escreva sempre" aqui estou de novo.
Não me espanta o que diz do Ruy. Depois da vez que nos viu juntos não o tornei a ver. Revi as provas (de artigos dos outros) da Revista e fui nessa mesma tarde levá-las a casa dele. Até hoje não mais novas nem mandados de qualquer ordem! É uma pessoa que parecendo cheia de delicadeza de sentimentos tem às vezes bem duras atitudes para os outros. Mas tudo se passará em bem...
Eu nada sei de Manuela Porto e do recital. Não tratarei disso é a única coisa que lhe posso dizer, mas também lhe digo que gostava imenso que se realizasse e gostaria imenso de lá ouvir qualquer coisa minha. Já vê que não sou falsamente modesto e que tenho ostensivamente anor-próprio mas não sou eu que tenho a intimidade ou à-vontade do Ruy ou do Kim para tratarem com ela.
Gostei tanto do seu trocadilho acerca do Atlântico e "costas de Portugal" (ou versalhada?!) que pensando em senas e azes do jogo da Vida (claro de V - "V for Victory"!) lhe improviso êste acróstico:
ACRÓSTICO
J ogue a glória a quem quiser as sortes
O limpo Apolo dê aos seus eleitos
R enasçam fénix de infindas mortes
G orjeiem cantos os coros celestes:
E ste esmagará seus pares terrestres!
C anções, poemas mil às musas dando
A ele não podeis deusas ensinar!);
N asce dele a poesia toda inteira
D esse qual Júpiter nova Ateneia!
I rrompe em fogos contra a asneira
D omando-a fero em forte peia,
O único que falar pode de cadeira!
D esta terrena e breve vida passageira
E téreo ele só, não seguindo de ninguém a esteira,
S e não perde do mundo na voragem
E neste globo, infrene tavolagem,
N ativo herói das elíseas pazes
A sena bate em cheio os azes!!!
(Do "Novo Parnaso Lusitano-Brasílico Dedicado aos Amadores das Musas dos Dois Países Irmãos por Uma Sociedade de Homens de Letras").
Não é talvez o meu melhor poema mas tenha paciência... Já que não lê o Sempre Fixe...
Lembra-me o [José] Osório [de Oliveira], o Osório que eu persisto em crer meu amigo.
Com todos os seus defeitos à vista não é perigoso para ninguém e quanto aos "tantos que o detestam" alguns há que se serviram dele para o que ele (lhes) podia servir...
Mas afinal a má língua sou eu e os defeitos pegaram-se-me. Não é isso?
Eu anseio pelos seus trabalhos. Temas que me interessam, pessoa que me interessa, mas para mais elogios vá... ao Acróstico!
Um abraço do afastado amigo que não lhe dá novidades mas as pede
José de Portugal
Última hora
De acordo com a participação recebida agora sei que em 6-4-1942 casaram e me oferecem a Sua Ilustre Casa a Senhora Dona Maria Adelina de Amaral Simões Neves Monteiro Grillo e o Senhor Joaqyuim Fernandes Thomaz Monteiro Grillo [Tomaz Kim].
Felicidades aos noivos! Viva a poesia realizada!
********************************************
De Jorge para José
Porto, 24/10/42
Meu caro amigo
A sua carta veio ter comigo ao Porto e eu já sabia (e até contava escrever-lhe), pelo João António Lamas, que V. tinha qualqer coisa para me dizer, independentemente do muito que temos para dizer e fazer neste momento ridìculamente crítico... - rìdiculamente porque só tem o direito de ser crítico aquilo que o é pela força directa das circunstâncias e não o tem o que é pela força das circunstâncias que as foram tirar dessas outras. Isto tudo é confuso mas, até por issso, digno do momento.
Ora, primeiro, vamos ao nosso assunto. Vou escrever para a Portugália (não tenho comigo senão exemplares, poucos, já dedicados e não entregues ainda) para que ponham à sua disposição um exemplar. E, por favor, não o compre. Eu quando voltar a Lisboa, quero escrever nele uma dedicatória - sou eu que lho ofereço e com tanto mais alegria quanto V. ofereceo o seu para que alguém o lesse. Quando estiver disposto (eu soube muito tarde do seu desgosto, não falemos nissso como entende e bem) diga-me qualquer coisa acerca do livro ou, se o preferir, guardemos isso para a minha volta a Lisboa. Até agora, pode dizer-se que ninguém me falou dele, uma vez que só cumpriram a promessa os que se apressaram em não compreender. Claro que não falo das pessoas que, por próximas, tinham a sua opinião já tàcitamente formada; como nem a minha vida nem a sua permitem que V. esteja, para mim, na mesma proximidade, é essa a razão por que lhe peço o que pedi.
V. já deu ao Cinatti poemas para a Aventura 3? Sabe, por ele, do editorial que eu vou escrever para êsse número? Trata-se de desmascarar as confissões voluntárias em que se debate a nossa pretyensa intelectualidade que, por saber demasiado o que deseja, acaba por não fazer dignamente o trabalho que lhe é imposto pela dignidade que devia ter. Queria que V. visse o editorial. Creio que nós, eu e V., devemos defender a Aventura pelo que ela representa e pelo que, por nós e o Cinatti, pode vir a representar: posição definida contra o que não fôr uno, nítido e futuro.
É nesse sentido que tenciono orientar a conferência que, de combinação com a Manuela Porto, tenciono fazer, em Dezembro, sobre as "Possibilidades da poesia portuguesa". Evidentemente que a poesia portuguesa pode bem vir a ser exactamente o contrário da pureza e da intensidade abstracta que eu pretendo, mas nem por isso tudo o que se fizer deixará de actuar na composição e decomposição das forças, uma vez que só o inantingìvelmente puro está livre das nossas contingências de acção. Não será isto? E agora voltei ao princípio da carta e fechei o verdadeiro círculo. Poesia científica e poesia social (com base nas revivescências ancestrais) tudo isso é terrível, se não souber onde as coisas principiam e acabam. A poesia é profundamente psicológica e epistemológica (no domínio em que coincidem estes dois aspectos), quer queiram quer não, e por isso humana, nacional e individual. Nem notas psicológicas, nem apetências sociais, nem esforços registados do conhecimento - mas consciencialização do homem total num sentido que não tem sido dado a esta expressão, um sentido mais lato, não só individual, não colectivo no instante: num sentido individual e colectivo aplicado à extensão do tempo, extensão mensurável (como me lembro agora que Proust aponta maravilhosamente para cada criatura) nas variações e na invariância do homem. Creio que um sinal da verdade disto é pensarmos agora (e creio que V. pensa isto pelo pouco que posso recordar e assimilar a isto) alguns o mesmo e inteiro, quando, de tal modo, toda a gente pensa partes. A nossa época é de integração no espaço e no tempo de todos os valores positivos e negativos: trata-se de definir um domínio e não definir nem o homem, nem a terra, nem a humanidade (como várias modas fazem), que são, digamos, conjuntos falsos feitos à custa de elementos que pertencem ao domínio verdadeiro que às modas não convém ver, porque são modas e passam deixando apenas dedadas, contingências, difíceis de lavar e de cuja responsabilidade lavam as mãos. Terá V. paciência de pensar, por escrito, alguma coisa, numa carta, a este respeito?
Receba um grande abraço do amigo e camarada
Jorge de Sena
Rua de Cedofeita, 478
Retirado da Revista Colóquio | Letras n.º 132/133 Abril-Setembro de 1994.
Edição e propriedade da Fundação Calouste Gulbenkian.
Director David Mourão-Ferreira
Glosa à chegada do Outono
O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura assetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...
Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.