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ALMADA NEGREIROS (1893-1970)
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda
não viajei! Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor
de sangue, sangue! verdadeiro, encarnado!
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão
de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho
sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens,
aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas
ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio, um feitio que sirva exactamente para
a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
Poema de Almada Negreiros
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ALMADA NEGREIROS (1893-1970)
(Nesta carta o artista explica a sua atitude no comício do Chiado Terrasse e onde se refere ao incidente com Leal da Câmara)
Sr. Redactor:
Tendo aparecido no Diário de Lisboa de segunda-feira, o meu nome ao lado do do Sr. Leal da Câmara, vizinhança distinguida que me assoberba, me enobrece e me inebria, venho gostosamente desvendar a florescência daquele começo de incêndio no palco do Chiado Terrasse, ao iniciar da sinceridade do grande caudilho das Artes decorativas.
Nesse eco o Diário de Lisboa (1) dá essa breve troca de palavras entre o orador e eu, como tendo sido vantajosa para o Sr. Leal da Câmara, o que, na verdade, é vexante para mim.
Faltaria, pois, a um dos meus mais sagrados deveres se, hoje, não viesse eu próprio testemunhar a exactidão desse eco, em vez de vir dizer que não é nada disso que se trata, pedindo apenas um acrescentozinho.
Ao Sr. Dr. Raul Leal sucedeu no uso da palavra o Sr. Leal da Câmara, que, não trazendo os seus méritos bem atestados logo de entrada recorreu gratuitamente e para tomar melhor balanço, ao estado de espírito com que o orador precedente prostara o público. Assim foi que o Sr. Leal da Câmara começou a mimosear a parte mais fácil do público com inteligências apropriadas a qualquer orador desobrigado. Surpreendeu-nos o facto de o Sr. Leal da Câmara ter perdido o olfacto à entrada do palco e sem ter ninguém que o avisasse disso. Foi pontualmente nesta altura que perguntei ao Sr. Leal da Câmara se aquilo era para rir. O Sr. Leal da Câmara, sem ter ainda dado pela falta de olfacto, disse-me simplesmente que não era para rir. Francamente, gostei daquela resposta. O engano era meu. Cheguei mesmo a pensar em apertar-lhe a mão à saída.
Mas qual não foi o meu espanto quando oiço, daí a pedaço, o Sr. Leal da Câmara outra vez a alistar àquela porção mais fácil do público, com mijaretes de artifício e outras puxadelas à substância sentimental, sem dúvida na crença de aquecer o mais depressa possível méritos oratórios, ou então, era da minha vista!
Foi pontualmente nesta altura que me intrometi cavalheirescamente entre o orador e a porção mais fácil do público, para dar tempo ao orador de afinar melhor as cordas vocais. Mas o Sr. Leal da Câmara, quando deve ser discreto, e dissimulador, deu ordem terminantemente a si próprio de não recuar nem mais um passo, houvesse o que houvesse, custasse o que custasse e zumba de meter-se no peito da porção mais fácil do público, forçosamente intelectual. - Foi pontualmente nesta altura que me veio a compreensão de que era totalmente desnecessária a minha lealdade de intelectual para com o orador. O engano era meu. O que a lealdade intelectual tinha exigido de mim para com o orador era fazer-lhe ver que trazia a sua atitude de artista comprometida, ali, no comício intelectual. Fi-lo ver, discretamente. Pode-se pensar e ser discreto ao mesmo tempo. É porque, às vezes, traz-se a atitude de artista comprometida, como se traz, sem querer, a fita das cerolas caídas pelas pernas das calças abaixo e por cima das botas de alástico.
Quis eu, pois, com a minha lealdade, avisá-lo de que trazia a sua atitude de artista caída pelas pernas das calças abaixo. Mas, aqui o confesso, o engano foi meu. O artista não tinha tal deixado cair o olfacto, nem tão-pouco trazia a atitude comprometida; mas há, na verdade, momentos inacreditáveis na vida de um homem em que a emoção não pode prender-se com ninharias, muito menos com o que vai pelas pernas das calças abaixo.
Foi pontualmente na altura em que o Sr. Gualdino Gomes, que presidia ao comício intelectual, se ergueu no seu próprio lugar e, dirigindo-se â plateia, propositadamente, para o lado oposto àquele de onde eu estranhamente tentava favorecer o orador, aconselhou, em geral, a não interromper os que tinham a palavra.
Veio a matar!
Não sei o que seria de mim a estas horas, se eu tivesse insistido em querer favorecer tão estranhamente o orador desobrigado, - outrora tão genial nas suas magistrais desarrincadelas de sacristas parecidíssimos!
Pois quis a minha boa sorte de que a observação do Sr. Presidente tivesse sido pontual. Sem ela, eu teria fàcilmente prosseguido no que tão generosamente me estava empenhando com afinco, o que talvez me tivesse custado caríssimo, pois só a seguir à observação do Sr. Presidente é que reparei que as minhas palavras estavam sendo malcriadíssimas na opinião geral do público intelectual e não apenas na sua parte mais fácil.
Eu, que espalho aos quatro ventos a conveniência de imitar a elegância até mesmo quando em favor dela deva ser sacrificada a boa educação!
Como episódio mais próximo desta minha leviandade citar-lhes-ei a meretíssima avançada de um sincero e robusto mancebo dos seus dezanove anos, (aproximadamente), um novo, portanto! o qual não pôde deixar de vir até dois metros de distância para me chamar «vaidoso e invejoso» com todas as ganas!
Ora, é absolutamente indispensável que eu desfaça um mal-entendido que há-de forçosamente servir-lhe de emenda.
Custa-me que tenham duvidado da minha boa fé, mas garanto-lhes que outras intenções não tive senão a de querer, a todo o transe, prevenir o meu colega Sr. Leal da Câmara de que ele, desgraçadamente para a Arte com A grande, tinha deixado aberto... aquilo que costuma estar fechado...
Ora aí está o busílis!
Não tendo infelizmente testemunhas desta desgraça entre o ilustrado público do comício intelectual por se ter dado a circustância imprevista de toda a gente ter preferido as ideias dos oradores às imprevidências da toilette.
Dos mal-entendidos é que nascem os grandes conflitos.
A mim já me chamaram pau de dois bicos, quando, na verdade, eu tenho tantos bicos quantos os necessários para deixar de ser pau e ser eu1
Mal-entendidos!
*
Antes de fechar a carta devo dizer que tanto o Sr. Leal da Câmara como quase todos os oradores fizeram calorosa e facciosamente a apologia do século XIX, exactamente o século mais estéril, na opinião de Frederico Nietzche, o mais evidente precursor da hora presente!!!...
Outra vez:
Dos mal-entendidos é que surgem os grandes conflitos.
Boas-noites!
*
Quando entrei em casa, a seguir ao comício intelectual, abri o Zarathrusta, Frederico Nietzche tinha, entretanto, escrito com o próprio punho:
«Tu deves ser o martelo, eu pus o martelo na tua mão!»
Para quê, Zarathrusta? Para quê, o martelo?!
«Pour cesser d'être des hommes qui nient devenir des hommes qui benissent.»
In Diário de Lisboa, de 21 de Dezembro de 1921
Do livro de José de Almada Negreiros "Textos de Intervenção, Obras Completas" edição Editorial Estampa, de 24 de Julho de 1972
"Em Portugal existe uma única opinião sobre Arte e abrange uma tão colossal maioria que receio que ela impere por esmagamento. Essa opinião é a do Ex.mo Sr. Dr. José de Figueiredo (gago do governo).
Não é porque este senhor tenha opinião nem que este senhor seja da igualha do resto de Portugal mas o resto de Portugal e este senhor em matéria de opinião são da mesma igualha. Um dia um senhor grisalho disse-me em meia hora os seus conhecimentos sobre Arte. Quando acabou a meia hora descobri que os conhecimentos do senhor grisalho sobre Arte eram os mesmos que o Ex.mo Sr. Dr. José de Figueiredo usava para me pedir um tostão (1). Pensa o leitor que faço a anedota? Antes fosse: Mas a verdade é que estou muito triste com esta fúria de incompetência com que Portugal participa na Guerra Europeia. E que horror, caros compatriotas, deduzir experimentalmente que de todas as nossas Conquistas e Descobertas apenas tenha sobrevivido a Imbecilidade. E daqui a indiferença espartilhada da família portuguesa a convalescer à beira-mar.
Algumas das raras energias mal comportadas que ainda assomam à tona d'água pertencem alucinadamente a séculos que já não existem e quando Um Português, genialmente do século XX, desce da Europa, condoído da pátria entrevada, para lhe dar o Parto da sua Inteligência, a indiferença espartilhada da família portuguesa ainda não deslaça as mãos de cima da barriga. Pois, senhores, a Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso na Liga Naval de Lisboa é o documento conciso da Raça Portuguesa no século XX.
A Raça Portuguesa não precisa de reabilitar-se, como pretendem pensar os tradicionalistas desprevenidos; precisa é de nascer prò século em que vive a Terra. A Descoberta do Caminho Marítimo prà Índia já não nos pertence porque não participamos deste feito fìsicamente e mais do que a Portugal este feito pertence ao século XV.
Nós, os futuristas, não sabemos história só conhecemos da Vida que passa por Nós. Eles têm a Cultura. Nós temos a experiência - e não trocamos!
Mais do que isto ainda Amadeo de Souza-Cardoso pertence à Guarda Avançada na maior das lutas que é o Pensamento Universal.
Amadeo de Souza-Cardoso é a primeira descoberta de Portugal na Europa no século XX. O limite da descoberta é infinito porque o sentido da Descoberta muda de substância e cresce em interesse - por isso que a Descoberta do Caminho Marítimo prà Índia é menos importante que a Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso na Liga Naval de Lisboa.
Felizmente pra ti, leitor, que eu não sou crítico, razão porque te não chateio com elucidações da Arte de que estás tão longìnquamente desprevenido; mas amanhã quando souberes que o valor de Amadeo de Souza-Cardoso é o que eu te digo aqui, terás remorsos de o não teres sabido ontem. Portanto, começa já hoje, vai à Exposição na Liga Naval de Lisboa, tapa os ouvidos, deixa correr os olhos e diz lá que a Vida não é assim?
Não esperes, porém, que os quadros venham ter contigo, não! Eles têm um prego atrás a prendê-los. Tu é que irás ter com eles. Isto leva 30 dias, dois meses, um ano mas, se tem prazo, vale a pena seres persistente porque depois saberás também onde está a Felicidade.
Lisboa, 12 de Dezembro de 1916.
José de Almada Negreiros
Poeta futurista"
in
Eram sete e meia.
O mais tarde que podias entrar era até às oito
e depois das oito tornava-se reparado.
Havia ordem no mundo
e meia-hora para nós,
meia-hora que não foi como queríamos
meia-hora em que cada um de nós nos prejudicava
habituados que estávamos a não nos termos visto nunca.
Levámos meia-hora a combinar outra hora para nós
meia-hora que afinal só começou depois de terminada
ao despedirmo-nos até à vista.
E até tornar a ver-te
eu não me senti, nem a fome, nem a sede
nem outra vontade que tu,
fiz como os poetas
que apagam a realidade
para lhe pôr outra melhor por cima.
(Inédito)
Poema de Almada Negreiros in Revista Ler n.º 50, 2001
"A mentira é o único processo para convencer os outros de que somos como eles nos querem. Como se vê, os culpados são os mentidos, os que não acreditam em mentiras."
Almada Negreiros
ENCONTRO
Que vens contar-me
se não sei ouvir senão o silêncio?
Estou parado no mundo.
Só sei escutar de longe
antigamente ou lá prò futuro.
É bem certo que existo:
chegou-me a vez de escutar.
Que queres que te diga
se não sei nada e desaprendo?
A minha paz é ignorar.
Aprendo a não saber:
que a ciência aprenda comigo
já que nõao soube ensinar.
O meu alimento é o silêncio do mundo
que fica no alto das montanhas
e não desce à cidade
e sobe às nuvens que andam à procura de forma
antes de desaparecer.
Para que queres que te apareça
se me agrada não ter horas a toda a hora?
A preguiça do céu entrou comigo
e prescindo da realidade como ela prescinde de mim.
Para que me lastimas
se este é o meu auge?!
Eu tive a dita de me terem roubado tudo
menos a minha torre de marfim.
Jamais os invasores levaram consigo as nossas torres de marfim.
Levaram-me o orgulho todo
deixaram-me a memória envenenada
e intacta a torre de marfim.
Só não sei que faça da porta da torre
que dá para donde vim.
Poema de José de Almeida Negreiros (1893-1970) dedicado a Carlos Queiroz e publicado no Suplemento Literário Diário de Lisboa, em 25 de Novembro de 1937
..."Começo por Fernando Pessoa.
Não recordo ter estado alguma vez com Fernando Pessoa e mais outros. Ou lembro vagamente. Lembro-me apenas de ter estado anos com ele e mais ninguém connosco. O poeta Américo Durão lembra-se de ser eu o único do "Orpheu" tu-cá-tu-lá com Fernando Pessoa. Sou comovidamente grato a este testemunho público daquele poeta, tanto mais que devo não ter sido o mais assíduo companheiro de Fernando Pessoa, e o facto de os do "Orpheu" não se tratarem por tu, torna bem significativo o da sua aberta recordação. Há verificável impossível salvo do poeta.
Devo a Fernando Pessoa (repito: pela primeira vez na minha vida) a alegria de ver noutrem a oposição e não o costumado contrário nosso alheio. Obrigado Fernando. Não há aqui de quê agradecer. Também o sei. Desculpe. É a afectividade. Carinho.
De parte a parte, em ambos nós nada havia de contrários pois que nenhum dependia dessas classificações engendradas a título social para o sossego e a comodidade de uns tantos. Não. Éramos poetas. Perdão: apresentávamo-nos para poetas. Antes de bons ou maus poetas bebíamos já ambos o delirante veneno de não pertencermos a nada e sermos cá. Partíamos logo desde o respeito muito bem pesado por tudo quanto a outros lhes era forçoso participar no quotidiano. Não ter este forçoso era o nosso carimbo de poetas. Mas para melhor fazer entender o carimbo, direi que isenção que significa poeta tem arrumo na nomenclatura social e na mesma palavra que faz de réu em desclassificado.
Foi neste momento que dei a Fernando Pessoa um pequeno papel muito dobrado e que ainda o dobrei mais deante dele. Desdobrou-o com o mesmo cuidado com que o dobrei, e leu: Quer o queiramos quer não, nós (o artista) estamos muito longe de pertencer à comunidade". Assinado: Cézanne."...
Texto retirado do livro de Almada Negreiros "Orpheu", edição Ática