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Ferreira Gullar durante a FLIP, em 2010 (Foto: Divulgação) 

Ferreira Gullar morreu neste domingo (4), aos 86 anos, no Rio de Janeiro

 

Aos 86 anos, o poeta, crítico de arte, ensaísta e tradutor brasileiro, Ferreira Gullar, morreu neste domingo (4), aos 86 anos, no Rio de Janeiro. O autor estava internado há cerca de vinte dias no Hospital Copa D’Or, no Rio, devido a problemas respiratórios, segundo a Folha de S.Paulo

Imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2014, Gullar começa a se dedicar à poesia a partir de 1943 e lança, então, Um pouco acima do chão, em 1949 e A luta corporal, em 1953. “A poesia nasceu para Gullar como modo de interrogação, indo buscar respostas em formas e concepções muito distintas”, escreve o professor Alcides Villaça na CULT 210 sobre a poética do autor.

“O poeta sempre se interessou em surpreender o múltiplo, o simultâneo, o diverso e o movimento sob as aparências impositivas do uniforme, do linear, do compacto e do estático”, afirmou. O poeta e jornalista Álvaro Alves de Faria escreveu em sua conta no Twitter que, com a morte de Gullar,  morre também “parte da poesia brasileira”.

Em 1959, Gullar publica no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil o Manifesto Neoconcretista, também assinado por Ligia Clark, Ligia Pape, Amílcar de Castro, Franz Weissmann, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis. O documento lançou as bases para o neoconcretismo, que defendeu a busca da experimentação de múltiplas linguagens. Com ele, Gullar deu o ponto de partida em sua trajetória teórica e crítica no campo das artes visuais.

Perseguido durante a ditadura militar, escreveu uma de suas principais obras, Poema sujo, durante o exílio em Buenos Aires, em 1976, “obra prima de Gullar”, segundo Villaça. “Lê­-lo em voz alta e por inteiro, como fez o poeta na gravação recente de um DVD, é desfiar os acentos de uma história pessoal na qual repercute a história de tantos de nós. Não terá sido por outra razão que Otto Maria Carpeaux equiparou o poema a um Hino Nacional”, escreveu.

Leia o texto de Alcides Villaça, publicado na CULT 210, na íntegra:

A poesia de Ferreira Gullar, com suas várias vozes, tem muitos pontos altos e alguns controversos, em provocadora vitalidade. A essa obra não faltam lutas pela expressão, radicalismo estético, epifanias líricas e incisivas adoções políticas: é difícil que um mesmo leitor goste de tudo, embora sempre lhe seja possível compreender a grandeza do conjunto. Vista de forma panorâmica em seus mais de sessenta anos de atividade, a melhor poesia de Gullar pode ser reconhecida, desde A luta corporal (1954), na somatória de alguns procedimentos básicos, muito marcados e mesmo obsessivos: o poeta sempre se interessou em surpreender o múltiplo, o simultâneo, o diverso e o movimento sob as aparências impositivas do uniforme, do linear, do compacto e do estático. O que move o poeta é uma desconfiança básica diante do que não o surpreenda; em outras palavras, a qualidade do espanto parece ser o termômetro poético com que Gullar avalia as matérias que converte em poesia. Vale tentar reconhecer a variação dessas matérias, bem como a dos recursos aplicados em sua expressão.

Gullar sempre buscou traduzir a experiência vertiginosa e aprofundada que, como tempo íntimo, parece correr contra o outro, o da sequência mecanizada dos acontecimentos. Nas diferentes qualidades desses tempos – nas suas diferentes velocidades – ele vai encontrando uma poderosa fonte poética. Há a ação do passado sobre o presente e vice­‑versa, há o seu ser emergente e o desafiante ser do outro, há a presença do longínquo no que está perto e a deste naquele, há o variado pulsar da vida no confronto com as sombras da morte. O desafio aceito pela arte surge para o poeta como uma contínua tradução entre esses tempos. A qualificação diversificada desse fluir, de suas várias velocidades, prende­‑se à diversidade dos acontecimentos (que têm pesos diferentes), dos estratos sociais (com funções e direitos diferentes), das pessoas singulares (com desejos e interesses diferentes). Está nesse modo múltiplo de existência de tudo a razão de surpresa do poeta, de sua obsessão em escavar a qualidade de cada experiência.

Em A luta corporal (1954) a experiência fundamental está em submeter a linguagem a várias provas de expressão, para assim corresponder às várias expectativas do jovem dentro da vida e diante da arte. Num mesmo livro, o moço poeta se vale da velocidade interna das modulações de estilo, que são muito mais que exercícios de expressão: figuram perspectivas abertas (ou fechadas) para a vida, ângulos que vão da convenção literária já canonizada para a destruição da linguagem e o desventrar físico dos signos. É, de fato, uma luta, mais que uma promessa: é um grande livro de poesia. Já está clara, nele, a importância da corporeidade buscada pelo poeta. Ela vale tanto para as palavras, das quais se cobra um canto vivo e radical, como para a pessoa mesma do poeta, em cujo corpo confluem o tempo da vida e o da morte, emergência dos desejos instintivos combatendo a força implacável do apodrecimento. Estará sempre presente a sugestiva imagem do galo altivo que bate as asas e canta com esplendor, sem saber que está destinado, como tudo, à morte. A razão mesma de cantar, modulada em toda a sua trajetória poética, move muitos poemas de Gullar. Perguntado há algum tempo, num evento, sobre sua razão de poetar, respondeu algo próximo disto: “Eu preciso do poema porque tenho a necessidade de um segundo corpo”.

Necessária sempre, a poesia nasceu para Gullar como modo de interrogação indo buscar respostas em formas e concepções muito distintas. A vanguarda construtivista, que chegou por breve momento a compartilhar parcialmente com os poetas concretos, foi subitamente abandonada pelo empenho numa arte politicamente engajada, de esquerda, atraída pelas referências diretas da realidade nacional e pela análise marxista. A princípio dócil a esquemas didáticos, essa nova luta corporal soube por vezes vencer a facilidade de um diagnóstico já elaborado, surgindo como percepção vital. Num poema como “Uma fotografia aérea”, por exemplo, de Dentro da noite veloz (1975), a perspectiva da visão do alto, colhida por uma câmera num avião, não impede o indivíduo de reconhecer­‑se lá embaixo, em sua casa, em outro tempo: fotografia e poema espantam­‑se mutuamente, conjuminados agora numa mesma tecelagem dos fios que unem o observador da foto, adulto crítico imaginando­‑se menino sob aquele telhado, ao retrato social de sua antiga São Luís. Uma coisa está em outra: será este o princípio poético que irá reger a complexidade espaço­‑temporal da obra­‑prima de Gullar, que é o Poema sujo (1976).

Lembro, antes de mais nada, o impacto a um tempo estético e político que causou a edição desse poema­‑livro entre nós, em plena Ditadura Militar. Era uma explosão doída e libertária das memórias mais vivas de um sujeito exilado e ameaçado, explosão a um tempo viril e pungente, lírica e dramática, aberta aos mais variados ritmos e andamentos. Soava, para muitos, como a reconquista da linguagem que liberta o indivíduo, repondo­‑o no centro de sua própria história, como sujeito dela, compartilhada numa plataforma social. É quando a arte efetivamente traduz “uma parte na outra parte”, isto é, faz convergirem a verticalidade íntima e a horizontalidade coletiva, em que cada um reconhece no autorretrato do poeta traços de seu próprio rosto. E por que sujo? A matéria compósita da memória é trazida em bruto, vomitada, defecada, sem a feição das coisas límpidas: não pode ser asséptica uma linguagem animada pela vivacidade dos brutos espantos, da memória das palafitas, da carniça do Matadouro, das bananas podres na quitanda do pai, do apodrecimento das peras na fruteira, da sexualidade reprimida. No entanto, não se trata de vomitar palavras ao modo de certas passagens surrealistas dos anos 50: há também, no Poema sujo, princípios recorrentes de composição disciplinada, que acabam por nortear o torvelinho da memória. Lê­‑lo em voz alta e por inteiro, como fez o poeta na gravação recente de um DVD, é desfiar os acentos de uma história pessoal na qual repercute a história de tantos de nós. Não terá sido por outra razão que Otto Maria Carpeaux equiparou o poema a um Hino Nacional. Ocorre no Poema sujo um desdobramento básico do sujeito: há aquele que se cola à imanência dos fatos lembrados e há aquele que, instalado no presente da elaboração poética, interpreta e realinha esses fatos. O efeito na leitura é o de ir e vir do sensorial ao reflexivo, do afeto recolhido à avaliação das palavras. Vencendo a antiga dicotomia de luz ou sombra, fogo ou escuro, Gullar agora considera que “uma coisa está em outra”, forma dialética de encarar a composição das diferenças como uma legítima manifestação vital. Quando “uma coisa está em outra”, nenhuma se pertence completamente, nem é possível se ver a si mesma senão como parte – que presume uma outra parte, que participa, no mecanismo de um ‘traduzir­‑se” que leva uma ao encontro da outra. Veja­‑se como o poema “Traduzir­‑se”, do livro seguinte, Na vertigem do dia (1980), constitui uma feliz expressão desse anseio de fazer convergir lírica e sociedade. Visto de perto, esse anseio parece estar presente nos títulos mesmos de vários livros do poeta. Brincando, mas não muito, pode­‑se lembrar que essa poesia traça uma luta corporal dentro da noite veloz ou na vertigem do dia, compõe um poema sujo com barulhos e muitas vozes, em alguma parte alguma.

Nos dois últimos livros, Muitas vozes (1999) e Em alguma parte alguma (2010), Gullar tem feito predominar a instância lírica, ao que tudo indica libertando­‑se de vez do peso ostensivo da poesia política/partidária que marcou significativamente sua obra. Mas, de qualquer modo, a luta continua: trata­‑se agora de arrostar o tempo da velhice, tempo já profundamente gravado no corpo e no espírito com o peso que lhe dá a nova gravidade. Tudo se faz, aliás, em consonância com o movimento orgânico desde sempre encetado pela poesia de Gullar. Nunca teriam sido antes tão fortes como em Muitas vozes as homenagens de Gullar à vida, no que ela tem de multiplicativo, porque complexa, e de belo, porque intensa. Não me refiro apenas à qualidade estética, presente desde a juventude; refiro­‑me à força vivencial que escapa da melancolia e da nostalgia, frequentes nesse estágio da vida, para render comovido tributo tanto ao acúmulo das experiências já vividas como ao sempre intenso desejo de outras novas: “Tive um sonho conclusivo:/ sonhei que a vida era um sonho/ e quando a vida acabava/ o sonhador acordava/ vivo” (“A Augusto Willemsen”). Tanto mais brilha a vida quanto mais se espelha contra o morrer. Assim também pode ocorrer com as palavras: aprendem a depurar­‑se mais e mais quanto mais entendem do silêncio a que se estão furtando. A luz voraz que consome “nossos mortos/ acima da cidade” está também “zunindo feito dínamo/ naquelas manhãs velozes” (“Manhã”). Não à toa, diante da fotografia de Mallarmé, Gullar busca na pose cristalizada do poeta já meio que um busto o olhar vivo, o desejo oculto de imortalidade.

Já o título de Em alguma parte alguma reelabora a referida tradução gullariana, em que uma parte supõe a outra. O jogo se radicaliza: a parte está e não está ao mesmo tempo em si e na outra, o tempo determinado é também tempo nenhum. E Gullar, octogenário, continua a investigar o mundo com reflexão e algum espanto. As imagens da vida se fazem cada vez mais luminosas, a cidade vibra em todos os seus apelos, e se a investigação sobre a morte ameaça alçar­‑se a um plano rarefeito, o poeta faz com que a poesia possa gravitar, por exemplo, numa “Reflexão sobre o osso da minha perna”, quando constata que a parte (sempre a parte) do osso é a que mais dura, ao passo que “a parte mais efêmera/ de mim/ é esta consciência de que existo”. Assim também, diante do mofo “do fundo das gavetas/ de dentro das pastas” Gullar faz ver que “É apenas/ uma mínima parte/ do incalculável arquivo morto/ esta que reacende agora/ à leitura do olhar/ e em mim/ ganha voz/ por um momento”. A luz e o fogo, mais do que antigos, querem eternizar­‑se na voz do poeta. Suas percepções seguem muito vivas, e parecem ter encontrado num definitivo e assumido estatuto lírico a vocação primitiva do jovem poeta que já brigava consigo, com o mundo e com as palavras desde os anos 50. Atar as pontas da vida é um compromisso que costumam estabelecer os que postulam a maturação conclusiva.

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publicado às 15:21


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