Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Para o Tó e para Lu, algures no continente americano, com muito carinho.
Olá Francisca!
Aquele monte esconde um covil de leões. Não tenhas medo; eles guardam o sacrário dos teus sonhos, defendem a tua liberdade. A seguir ao monte, muito mais além, fora do alcance das tuas pequeninas mãos, poderás ver, quando o teu tempo chegar, o imenso mar que tem a cor dos teus desejos e pensamentos.
Espero ter vida para te acompanhar...
Uma circunferência marcada a giz no centro da praça. A oliveira é a extremidade do raio e marca o centro do pequeno mundo do minúsculo povoado.
Dentro da circunferência cabe tudo: pessoas, casas, animais, hortas, os sonhos, os desacatos, o riso, a lágrima furtiva e a pequena maldade. Só a inveja ali não tem lugar, há muito tempo expulsa.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
A minha relação com a minha mãe foi sempre difícil. Começou logo com o meu nascimento
(sou o filho mais velho)
quando a pus à morte com uma eclampsia
(contava que disse ao meu pai
– Vou morrer
e que o meu pai lhe respondeu
– O que é que queres que eu faça?
CRÓNICA DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES - REVISTA VISÃO, 29 DE JUNHO DE 2017
A Palavra fica magoada quando a ingratidão é gritada por indecorosa e cínica gargalhada.
Será que é necessário que algo de muito trágico aconteça para que alguém tome as medidas julgadas necessárias para acabar de vez com os comportamentos irresponsáveis, e que podem ser criminosos caso algo de terrível aconteça, de meia dúzia de imbecis?
O pastor, de atalaia ao redil, descansa o cansado corpo apoiado no bordão e com uma ligeira vénea, ironiza
- Que encontre o que procura...
Disse numa fala antiga, assobiando refrões desconhecidos.
Percorro caminhos incógnitos tão antigos que o mapa já os esqueceu. São rotas invisíveis desenhadas sobre a alma das pedras e a pele do tronco dos carvalhos e sobreiros que limitam os carreiros milenares.
Sigo o perfume das urzes e das giestas. Sigo o vento salgado que vem do oeste; busco os rolos de filamentos de luz coados pelas folhas acobreadas das copas densas. Busco o espírito da matéria. Tenho a ambição de econtrar as coisas primitivas de que somos feitos.
Olhar, entender, imaginar sem restrições, sem preconceitos. Nem que as imagine a essas coisas. Nem que as construe, porque temos a inteligência que se tornou mais densa e poderosa com a acumulação de memórias, gestos, experiências, lembranças e, sobretudo as muitas vidas que os nossos antepassados viveram e que vivem connosco e serão transmitidas aos que vierem a seguir.
Jogos de sombras encenam um teatro de marionetes projectadas nas paredes das encostas graníticas: representam o mundo das vivências, dos sentidos, das alegorias, das metáforas. O riso e lágrima. E sobretudo a dor - por ser a nossa primeira experiência. Somos os actores e as personagens.
Calco os rastos, já gastos pela erosão, dos passos de homens e cavalos e sinto o cheiro de um mundo que já não existe.
Somos feitos de milhares de camadas de memórias; e temos a fantástica capacidade de ter estado em lugares, momentos e eras que nunca vivemos e onde nunca estivemos.
Às vezes só basta imaginar... Às vezes é preciso sonhar para que o mundo pule e avance, como diz o poeta.
CIDADE VELHA - CABO VERDE I
Manuel Maria de Moura e sua mulher Josefa Alvarenga
à mercê das sevícias que lhes excretam a campa
lado a lado progridem o húmus.
A igreja de lava amarelece
e conserva apenas dois portais,
as pombas não pousaram nos lambris
no fluxo da tarde a caminho da noite,
uma cabra sustida na janela,
entre a pedra e a pedra,
reflecte o mar numa pupila.
Sobe-se ao fortim
e a estrada como fita enrola-se à montanha.
Antigos portugueses construíram-no
guiando pela mão os seus escravos,
Cabo-verdes ariscos debaixo do chicote
nivelaram o monte
e mantiveram
ritmo desigual.
Os guardas a cavalo
certificavam exacta proporção
e o forte ressurgia das matéria porosa,
coralínea
perfusa de bolhas minerais.
É baixo
e a nascente envolvem-no arestas.
Há nele precisão
rasgado no metal à força de buril
à custa de cinzel
liberta muralha onde fenece a lógica.
A meio fica a cisterna
memória da nascente ainda nos refresca.
No chão entre conchas
apanho um fragmento,
detecto um azulejo
azul magoando aquela superfície.
Onde perdeu a casa
na indecisa determinação
que Cabo Verde brande como lança de penas?
Nas alabardas os mapas de ferrugem
apontam à penúria as bocas sem mordaça,
o escudo português
inciso a fogo
um número sobre pele
começa a desfazer-se,
a esvair-se como o sangue sai do suicida
e o submete à própria crueldade.
Manuel Maria de Moura
deixou na pedra tumular
um voto de imprudência
«Até ao fim dos séculos não poderá abrir-se
o que ficou selado.»
Quando ao cair da noite via a lua roçar
contra o mar sua branda penugem
não suspeitou esgarçasse
a estável divisão
e o império, desfeito como um cirro,
liquefizesse abandonando os mortos.
Manuel Maria de Moura
ficaste solitário
acompanha-te o pelourinho branco,
intacto,
cornos de impala os ferros.
Aqui permaneceste
sujeito à supressão, pouco te resta,
apenas uma pedra inchada de certezas.
Poema de Fátima Maldonado
________________________________________________________________________________________
Fátima Maldonado (Santo Amaro, Sousel, 1941). Ex-jornalista. Antiga crítica literária do jornal Expresso. Fez a sua estreia como poeta em 1980 com Cidades Indefesas. Publicou ainda: Os Presságios (1983), Selo Selvagem (1985), A urna no Deserto (1989), Caça e Persuasões (com Paula Rego, 1991), Cadeias de Transmissão (1999) e Vida Extenuada (2007).
Como seriam as noites de Verão se os grilos não iluminassem o silêncio com os seus estridentes cantos?
Guimbras - adjacente ao lago - Santa Maria da Feira
ANTÓNIO GANCHO (1940-2005)
MÚSICA
A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada fazia prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erige a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.
Poema de António Gancho (O Ar da Manhã, 1995)
______________________________________________________________________________________________________
Pensar é ser um eco do que o Cosmos tem para nos dizer. É saber o que somos como tempo passado, como História
In Revista "E" do Jornal Expresso de 24 de Junho de 2017 - Entrevista a Eduardo Lourenço por Luciana Leiderfarb
RUY BELO (1933-1978)
MORTE AO MEIO-DIA
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopre e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e para trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer
POEMA DE RUY BELO
"Sonhos com Asas", editado pela Kalandraka, é o livro vencedor.
A ilustradora Fátima Afonso venceu a 21.ª edição do Prémio Nacional de Ilustração com o livro "Sonho com asas", anunciou hoje a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB).
Reunido hoje de manhã, o júri decidiu atribuir o prémio a Fátima Afonso pelo conjunto de ilustrações do livro "Sonho com asas", com texto de Teresa Marques, editado em 2016 pela Kalandraka.
As duas menções especiais foram atribuídas a Catarina Sobral, pela ilustração da obra "Tão, tão grande", com texto da própria, dada à estampa pela Orfeu Negro, e a Tiago Albuquerque e Nádia Albuquerque, pelo trabalho realizado em "Sou o lince ibérico", que tem texto de Maria João Freitas e foi editado pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda.
Notícia retirada do Jornal online "Diário de Notícias"
Todos os anos há violentos incêndios, há violentas inundações.
Chegou o momento do ajuste de contas, de medir forças, de contar espingardas; é tempo de eleições. E as desgraças muito recentes vão servir, infelizmente, esse propósito.
Os partidos da oposição vão esquecer que já foram poder e olvidaram os conselhos sábios e avisos prudentes de pessoas eminentes nas áreas da floresta e ordenamento territorial, e vão exigir com algazarra que as cabeças comecem a rolar.
O partido no poder vai defender-se acusando, quem os acusa, de nada terem feito, e de aproveitamento da desgraça para obterem proveito.
Inquéritos vão ser abertos - pura perda de tempo - ninguém vai ser culpado e condenado: é o costume. A culpa é sempre da responsabilidade não se sabe muito bem de quem, ou, então, se se descobre um culpado o processo é arquivado por falhas processuais.
É tempo de eleições, a seguir ao Verão. Vai ser o tempo das promessas mil vezes prometidas, vai ser o tempo da caça ao eleitor. Todos os anos a floresta arde. Todos os anos há inundações. E há, e haverá sempre vítimas para vergonha nossa.
E as velhas políticas com ou sem novos protagonistas irão continuar de incêndio em incêndio, de juramento em juramento, de acusação em acusação até acontecer uma desgraça maior.
EUGÉNIO DE ANDRADE
À MEMÓRIA DE RUY BELO
Provavelmente já te encontrarás à vontade
entre os anjos e, com esse sorriso onde a infância
tomava sempre o comboio para as férias grandes,
já terás feito amigos, sem saudades dos dias
onde passaste quase anónimo e leve
como o vento da praia e a rapariga de Cambridge,
que não deu por ti, ou se deu era de Vila do Conde.
A morte como a sede sempre te foi próxima,
sempre a vi a teu lado, em cada encontro nosso
ela aí estava, um pouco distraída, é certo,
mas estava, como estava o mar e a alegria
ou a chuva nos versos da tua juventude.
Só não esperava tão cedo vê-la assim, na quarta
página de um jornal trazido pelo vento,
nesse agosto de Caldelas, no calor do meio-dia,
jornal onde em primeira página também vinha
a promoção de um militar a general,
ou talvez dois, ou três, ou quatro, já não sei:
isto de militares custa a distingui-los,
feitos em forma como os galos de Barcelos,
igualmente bravos, igualmente inúteis,
passeando de cu melancólico pelas ruas
a saudade e a sífilis do império,
e tão inimigos todos daquela festa
que em ti, em mim, e nas dunas principia.
Consola-me ao menos a ideia de te haverem
deixado em paz na morte; ninguém na assembleia
da república fingiu que te lera os versos,
ninguém, cheio de piedade por si próprio,
propôs funerais nacionais ou, a título póstumo,
te quiz fazer visconde, cavaleiro, comendador,
qualquer coisa assim para estrumar os campos.
Eles não deram por ti, e a culpa é tua,
foste sempre discreto (até mesmo na morte),
não mandaste à merda o país, nem nenhum ministro,
não chateaste ninguém, nem sequer a tua lavadeira,
e foste a enterrar numa aldeia que não sei
onde fica, ma seja onde for será a tua.
Agrada-me que tudo assim fosse, e agora
que começaste a fazer corpo com a terra
a única evidência é crescer para o sol
Poema de Eugénio de Andrade in Epitáfios de Agosto, 1978
Izabella Akhatovna Akhmadulina, conhecida como Bella Akhmadulina, poeta, tradutora e ensaísta russa.
Nasceu em Moscou, a 10 de abril de 1937, filha de um tártaro e de uma russa, com raízes italianas. Segundo Mikhail Vizel, em artigo especial para a Gazeta Russa do dia 10/04/2017, Bella era “filha do vice-ministro e tradutora da ONU (o que significava, mais provavelmente, uma agente da KGB), além de sobrinha-neta de um amigo pessoal de Lênin que está enterrado junto ao muro do Kremlin”.
Começou a escrever poemas muito cedo, trabalhou em um jornal de Moscou, frequentava os círculos literários organizados por Evgeny Vinokurov (1925-1993), participou das lendárias “noites de poesia no Museu Politécnico” e dos concertos no estádio Lujniki.
Em 1953, após a morte de Stálin, iniciou o “degelo da União Soviética (URSS)” quando Nikita Kruschev assume o poder. Este período, entre a década de 1950 e meados de 1960, conhecido como “degelo de Kruschev” foi caracterizado pela desativação do Gulag (sigla russa para Glavnoe Upravlenie Legarei, que significa “Administração Central dos Campos”) que eram campos de trabalhos forçados soviéticos e retorno da liberdade de expressão e criativa, assim as restrições sobre a literatura foram flexibilizadas e muitos nomes surgiram. A poesia ganhou força e eram declamadas em estádios para as massas.
Casou-se em 1954, com o também escritor russo Evguêni Ievtuchenko (1933-2017). Seus primeiros poemas foram publicados em 1955, na revista “Oktyábr” (outubro). Terminou os estudos no Instituto de Literatura Maxim Gorki em 1960 neste momento já havia se divorciado de Ievtuchenko. Sua primeira coletânea foi publicada em 1962.
Muito atraente era considerada a musa de todos os poetas.
Seu segundo marido foi Yuri Nagibin. Em 1968, divorciou-se de Nagibin. Voltou a casar, em 1971, com Eldar Kuliev, de quem teve uma filha, Elizaveta Kuliev. O casamento durou pouco tempo. Em 1974, Akhmadulina casou-se com o artista Boris Messerer.
Bella Akhmadulina escrevia sobre relações humanas voltadas ao amor e amizade, evitava escrever sobre política, mas mesmo assim se popularizou pela transformação de alguns dos seus poemas em canções.
Ainda na minha pesquisa por mais detalhes sobre Bella, encontrei uma série chamada "Таинственная страсть"( Mysterious Passion):
Esta série é baseada no livro homônimo do escritor russo Vasily Aksyonov (1932-2009), publicado pouco antes de sua morte em 2009. O romance discorre sobre a década de 1960 e seus protagonistas são os ícones da literatura e da arte soviética deste período e entre os nomes representados está o de Bella, além disso o livro contém fotos raras dessa época.
Vasily Aksyonov era filho de Evgenia Ginzburg (1904-1977), jornalista comunista presa no Gulag, acusada de participar de um grupo trotskista contra-revolucionário, permaneceu por 18 anos presa no campo de concentração soviético. Escritor de inúmeras novelas, possui vasta quantidade de obras, mas nenhuma foi traduzida para o português.
POEMAS
Texto de Adriana Caló para a Revista OBVIOUS
A luz é baça: não ilumina nem aquece.
Apenas serve para
revelar o
microscópico pó
pousado
no vidro
de antigas molduras que protegem
retratos
que ainda cheiram a alfazema
de espíritos já ausentes
Um rumor roça as minhas pálpebras.
Finjo que sou mouco.
Amordaço os olhos.
Tapo a boca com uma venda.
Não quero estar presente.
Mas não posso fingir que estou ausente.
Engulo em seco. Suo poeira vermelha.
Abraço o tórrido vazio.
Quero erguer os braços suplicantes, não consigo.
Pesam mais que o ar denso.
Vozes iradas vindas não sei de onde gritam ameaças.
As pernas querem fugir mas a cabeça não deixa.
Sinto o hálito mortífero do deserto e a respiração espinhosa dos cactos.
O chão cospe cortinas transparentes de fogo, o corpo não vai aguentar.
Preciso urgentemente de água.
Acordo. Ligo o interruptor. Ilumino o medo.
Adormeço.
BORRAS DE IMPÉRIO
I
Os impérios sempre se fizeram
com os que são forçados a fazê-los
e com os que ficam para ser mandados
e cuspidos pelos que querem fazê-los
Por isso, há nos povos imperiais
algo de um visgo de alma: que ou é cuspo,
ou um prazer dolente como de escarra e cospe.
II
Há impérios que deixam no deserto ruínas de capitais pomposas.
E há os outros que se desculpam com tremores de terra
de terem passado sobre si mesmos como gafanhotos.
III
Pergunto-me a mim mesmo como foi possível:
ou os impérios gastam o seu povo até que ele seja
uma raça agachada, mesquinha e traiçoeira,
ou é com gente dessa que os impérios se fazem,
já que nada glorioso se constrói humanamente
sem 10% de heróis e 90% de assassinos.
Que coisa fedorenta a glória, sobretudo
enquanto não passam séculos e só ruínas
fiquem - onde nem o pó dos mortos
ainda cheire mal.
IV
Portugal é feito dos que partem
e dos que ficam. Mas estes
numa inveja danada por aqueles terem
sido capazes de partir, imaginam-lhes a vida
a série de triunfos sonhados por eles mesmos
nas horas de descrerem da mesquinhez em que triunfam
todos os dias. E raivosamente
escondem a frustração nos clamores
da injustiça por os outros lá não estarem
(como eles estão), do mesmo passo
que se ocupam afanosamente em suprimi-los
(não vão eles ser tão tolos -
- a ponto de voltarem).
POEMA DE JORGE DE SENA ESCRITO EM 8 DE JUNHO DE 1971
____________________________________________________________________________________________
Desejar conhecer o escritor porque se gosta da sua obra é o mesmo que querer conhecer o ganso porque se gosta de "foie gras".
Margaret Atwood
No tampo da mesa
velhas cicatrizes
marcam o lugar onde os
cotovelos descansam e onde
os mornos pensamentos irão adormecer
afogados no
silêncio quente da
madeira
O rio que nasce no mar:
Água salgada
Peixes com asas voam entre as algas e o alecrim
A árvore pasmada
Os ossos já dobrados
Pela idade avançada
Inversão de sentido só na nascente de pedras graníticas
Jáspeas
Que fica bem alto
Bem longe
No princípio de tudo
O sol que arrefece no espelho da alma
Escolher o sítio da desova
O urso à espreita
Velha sentinela
A luta que dura há séculos com tréguas nos intervalos
Corredores de fundo e obstáculos
Melhores que olímpicos
Não há medalhas para vencedores nem
Loas para os vencidos
UM ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonânbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia ihual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
POEMA DE ALEXANDRE O' NEILL in "POESIAS COMPLETAS & DISPERSOS" - Edição Assírio & Alvim, Março de 2017
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
CANTO DAS IMAGENS
Ao princípio era só uma em cada olhar
após a grande divisão das águas
e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem
até ao seu século do real múltiplo
era una, única e própria. Dementes
chamou este cantor aos fotogramas
que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras
plurais, idênticas, dispersivas.
Era somente uma a imagem mística,
dos entes naturais aos transcendentes.
Só uma esta vermelha afelandra
embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.
O concreto pulsava neste ritmo
das coisas parcas, poucas, singulares.
E de repente, nos olhos do poeta
cada coisa reproduziu a imagem
inumeradamente, e a ideia
decaíra no banal prolixo.
Antes, podia hesitar-se entre o modelo
e as sombras de Platão, agora as flores
malignas, podem reproduzir-se no mundo
nítidas, iguais, supérfluas.
Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire
e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,
e cada cópia fotográfica muda
na liminarmente máxima diferença.
Ao crítico e amante da Pintura
as dúbias imagens decerto deram
a cada rosto um só outro rosto,
a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam
a incerteza aos traços, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem
infiéis. E o poeta pôde resistir
a esta perda das formas consagradas
e consubstanciais das coisas que ainda
ecoam a Criação como o eco cósmico
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão escrito em 30 de Outubro de 1993 retirado do livro "Obra Breve - Poesia Reunida", páginas 558 e 559, com prefácio de Eduardo Lourenço, e edição da Assírio & Alvim n.º 0976, Maio de 2006
_____________________________________________________________________________________
Dramaturga, tradutora e poeta, formada em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa, exerceu actividade de investigação na área da literatura e da linguística. Revelou-se com "Morfismos", no âmbito da iniciativa Poesia 61, colectânea que reflectia uma tendência poética atenta à palavra, à linguagem na sua opacidade, na busca de uma expressão depurada e não discursiva. A criação poética de Fiama Hasse Pais Brandão impõe-se pela busca de uma expressão original, onde as palavras tentam evocar uma essência perdida, anterior à erosão do tempo e do uso corrente. A desconstrução das articulações do discurso e a sua metaforização provocam um estranhamento que conduz o leitor a despir a linguagem da sua convencionalidade e a entrever o acesso pela palavra pura a um tempo primordial. O critério de "amor pela leitura" que presidiu à versão de Cântico Maior pode, por extensão, ser aplicado à obra da autora que apresenta como fontes de emoção poética "o texto que cabe na pupila: o simultâneo, a grande cena das metáforas e das comparações, a Visão multiforme do Conhecimento (pus no coração a Sabedoria de Ezra), que é parcelar nas palavras e nas imagens e que só por acumulação diurna e através da absorção pupilar (como a do ar) tende para o Todo." ("Do prefácio de Cântico Maior", reproduzido em "Apêndice" a Obra Breve, 1991). Sob o Olhar de Medeia, a obra que marca a primeira incursão no romance por parte desta autora, foi publicado em 1998. Faleceu em Lisboa no dia 20 de Janeiro de 2006.
1. A mulher-Sem-Cabeça - onde está ela?
A mãe avança sozinha, já sem cabeça, e procura os seus três filhos. Está no quintal, a cabeça foi cortada e o sangue que vai saindo traça um percurso, um itinerário que será fundamental para os três filhos a encontrarem. Porque a mãe quer encontrar os seus três filhos, mas está já sem cabeça - e assim não é possível.
A mãe sem cabeça corre no quintal e várias galinhas afastam-se, olham para cima e não percebem a forma daquele ser humano.
O quintal é grande e a mulher a quem cortaram a cabeça continua a avançar, passo a passo, como um ser humano a quem tivessem vendado os olhos. Parece a brincadeira infantil - a cabra-cega - mas àquela mulher não taparam os olhos com uma venda, cortaram a cabeça com um machado. Ela avança a chamar pelos filhos (mas por onde grita?) e subitamente percebe: está perdida. A Mulher-Sem-Cabeça está no que é certamente um Labirinto, e nesse Labirinto vai-se cruzando com os mais variados animais: cabras, porcos, galinhas, um cavalo - animais. Dois porcos copulam, mas a Mãe-Sem-Cabeça não vê.
(...)
Início do livro de Gonçalo M. Tavares "A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado", página 9, edição Bertrand Editora, Abril de 2017.
Manuel Alegre venceu o Prémio Camões 2017, foi anunciado no dia 8 de junho de 2017, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Em comunicado enviado às redações, o Ministro da Cultura anunciou que o "Prémio Camões 2017 foi atribuído ao escritor Manuel Alegre" no "seguimento da reunião do júri da 29ª edição do Prémio Camões, que decorreu no Rio de Janeiro no dia 8 de junho".
O prémio reconhece a "vasta obra literária, traduzida e publicada em diversos países".
O "Prémio Camões, instituído por Portugal e pelo Brasil em 1989, é o maior prémio de prestígio da língua portuguesa. Com a sua atribuição, é prestada anualmente uma homenagem à literatura em português, recaindo a escolha num escritor cuja obra contribua para a projeção e reconhecimento da língua portuguesa", lê-se no comunicado.
Manuel Alegre disse à RTP que ficou surpreendido porque não "sabia que o júri estava reunido" e considerou "natural" que lhe tivesse sido "atribuído o Prémio Camões" por causa do impacto "que os meus livros tiveram".
Manuel Alegre nasceu em Águeda em 1936. Foi o primeiro português a receber o diploma de membro honorário do Conselho da Europa. Entre outras condecorações, recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade (Portugal), a Comenda da Ordem de Isabel a Católica (Espanha) e a Medalha de Mérito do Conselho da Europa.
Como poeta, "começou a destacar-se nas coletâneas Poemas Livres (1963-1965). Mas o grande reconhecimento nasce com os seus dois volumes de poemas, Praça da Canção (1965) e O Canto e as Armas (1967), apreendidos pelas autoridades antes do 25 de Abril, mas com grande circulação nos meios intelectuais".
O júri da 29ª edição do Prémio Camões foi constituído por Paula Morão, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Portugal); Maria João Reynaud, professora associada jubilada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal); Leyla Perrone-Moisés, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (Brasil); José Luís Jobim, professor aposentado da Universidade Federal Fluminense e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil); pelos PALOP, Lourenço do Rosário, Doutor em Literaturas Africanas pela Universidade de Coimbra e Reitor da Universidade Politécnica de Maputo (Moçambique); José Luís Tavares, poeta (Cabo Verde).
"O Prémio Camões foi já atribuído, por ordem cronológica a Miguel Torga (Portugal), João Cabral de Mello Neto (Brasil), José Craveirinha (Moçambique), Vergílio Ferreira (Portugal), Rachel de Queiroz (Brasil), Jorge Amado (Brasil), José Saramago (Portugal), Eduardo Lourenço (Portugal), Pepetela (Angola), António Cândido (Brasil), Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal), Autran Dourado (Brasil), Eugénio de Andrade (Portugal), Maria Velho da Costa (Portugal), Rubem Fonseca (Brasil), Agustina Bessa-Luís (Portugal), Lygia Fagundes Telles (Brasil), Luandino Vieira (Angola), António Lobo Antunes (Portugal), João Ubaldo Ribeiro (Brasil), Arménio Vieira (Cabo Verde), Ferreira Gullar (Brasil), Manuel António Pina (Portugal), Dalton Trevisan (Brasil), Mia Couto (Moçambique), Alberto da Costa e Silva (Brasil), Hélia Correia (Portugal), Radouan Nassar (Brasil)."
EUGÉNIO DE ANDRADE (1923-2005)
AS MÃES
Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto - não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem orfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes enconstam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das , tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela,regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando algumas azeitonas para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem nas feiras, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês - e que só ela, só ele vê.
Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressureição.
Poema de Eugénio de Andrade
Mário Cláudio com o livro "Astronomia" foi o vencedor do Grande Prémio Literário dst.
Este Prémio Literário é atribuído pela empresa Domingos da Silva Teixeira e tem o valor de 15 mil euros.
Este livro já tinha ganho em Abril passado o Prémio D. Dinis, da Casa de Mateus.
Sobrevivemos à guerra - sobrevivemos à paz:
volta e meia acreditávamos que os períodos passados
nunca mais se repetiriam
e de facto, nunca se repetiam
(mas seguiam-se um após outro),
a infância se foi para sempre,
não quis voltar a juventude perdida
e ninguém prestou contas
do nosso tempo desperdiçado.
Faltava-nos fé
e por isso acreditávamos em qualquer coisa
em qualquer luta falsa,
mas não em luta solitária, porque cada um de nós
que a arriscou
teve de lutar contra as sombras de ferro,
contra o algodão de ferro que o cercava,
impedia de respirar, expunha ao ridículo;
era cada vez mais difícil se mover,
o algodão das verdades mentirosas tapava nossos ouvidos,
até as pequenas esperanças tornavam-se difíceis
de se concretizar
e quanto mais depressa podíamos vencer grandes distâncias,
tanto mais tempo era preciso para o entendimento mútuo,
quanto mais longe nos aventurávamos no futuro,
tanto mais se alongava a distância de coração a coração,
quanto mais sabíamos da vida dos outros,
vivos, mortos e a nascer,
tanto menos conhecíamos a nós próprios;
meios de espasmo de massa
nos acostumavam sem dor às tragédias do mundo contemporâneo,
ainda éramos capazes de cuidar
das nossas flores e animais domésticos,
mas temíamos até pensar que os pequenos países
são polígonos de experiência das grandes potências;
votávamos - em silêncio,
só manifestávamos nossa presença
quando nossos amadores ganhavam dos profissionais,
e então os arranha-céus tremiam com o grito:
transformavam-se em altíssimas barricadas,
que ninguém atacava,
pois há muito tinham sido conquistadas.
[...]
Poema do poeta polaco Ryszard Krynicki
WILFRED OWEN (1893-1918)
CÂNTICO DA JUVENTUDE CONDENADA
Que sinos dobram por estes que morrem como gado?
- Apenas a monstruosa ira das armas.
Apenas o estrépito veloz do gaguejar das espingardas
Lhes pode recitar maquinalmente apressadas preces.
Por eles não há agora motejo; nem orações nem sinos,
Nem nenhuma voz de pranto a não ser a dos coros -
Coros estridentes e loucos de granadas lastimando-se;
E clarins reclamando-os em terras tristes.
Que velas se poderão acender para os apressar a todos?
Não nas mãos dos rapazes, mas nos seus olhos
Brilharão os sagrados lampejos das despedidas.
Os rostos pálidos das raparigas são as suas mortalhas;
As suas flores, a ternura de mentes resignadas,
E cada lento anoitecer um cerrar de persianas.
Poema do poeta inglês Wilfred Owen
________________________________________________________________________________
Wilfred Edward Salter Owen (18 de março, 1893 – 4 de novembro, 1918) foi um poeta e militar inglês (Plas Wilmot, Shropshire, 1893-Batalha de la Sambre, 1918). Estudou nas Universidades de Liverpool e Londres, e veio a morrer em combate, sete dias antes do armistício. As suas elegias sobre a guerra — Poems — publicadas por S. Sassoon em 1920, revelam-nos um poeta, na linha de Keats, de gosto depurado e pleno de autenticidade, que veio a exercer um fascínio decisivo na poesia inglesa da década de 30. Alguns dos seus poemas inspiraram o War Requiem de B. Britten.
George Steiner - (1929 - )
A retórica política é capaz de matar. A política pode assassinar por meio da linguagem. O horror do movimento nazi foi largamente baseado na retórica, na propaganda. Muito mais poderosas do que qualquer exército são as mentiras do totalitarismo. O totalitarismo funciona através da linguagem. E também existe outro fenónemo: pode ser-se um grande artista e um assassino, uma pessoa a favor do extermínio. Há um momento muito importante nos diários de Cosima Wagner, em que Wagner está lá em cima, no primeiro andar, e ela ouve-o ao piano a reveer o 3.º acto do "Tristão". Ele desce para almoçar, e de que é que eles falam? De como queimar os judeus. O homem que tinha estado a compor a melhor música do mundo desce para almoçar e discute alegremente como livrar-se dos judeus. O que quero dizer é que eu não poderia viver num mundo sem a música de Wagner. A minha dívida para com ele é enorme. A minha dívida para com Nietszche, para com Céline! Que livros belos e horrendos! Não tenho resposta para estas pessoas. Não há explicação. Perante os gigantes temos de ficar calados."
(...) O nacionalismo é um veneno absoluto. Lembro-me das palavras justíssimas de Georges Clemenceau: "Não somos patriotas, somos chauvinistas." É uma distinção importante. O patriotismo pode ser decente, mas o chauvinismo - o nacionalismo - é algo muito, muito feio. Desprezar outra pessoa por ter uma nacionalidade diferente, isso não o posso compreender nem aceitar. Porque, afinal, o que é que nós escolhemos? Não escolhemos onde nascemos, quando, com que condições. Somos convidados nesta terra. Vou dizer-lhe uma coisa central: acredito que cada lugar deste mundo pode ser interessante. Não consigo pensar num lugar que não o pudesse ser. Se fosse mais novo e tivesse de voltar a mudar de país, tentaria, primeiro, aprender a língua. Seria certamente fascinante aceder a uma nova civilização. Não há lugares aborrecidos na Terra. Isto é o que receio em relação aos mais novos hoje em dia: que por causa da sua obsessão com os media artificiais, tenham pouco entusiasmo pelas experiências genuinamente criativas."
Excerto da entrevista realizada por Luciana Leiderfarb a George Steiner e publicada na Revista "E" - A revista do Expresso, Edição 2327, de 3 de Junho de 2017
N.º 195, Maio-Ago. 2017 - Carlos de OliveiraPor Revista Colóquio/Letras, publicado em 5.5.2017 na secção Notícias
No ano em que os trabalhos sobre o espólio de Carlos de Oliveira, depositado no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, se materializam na exposição “Carlos de Oliveira: a parte submersa do iceberg”, a revista Colóquio/Letras dedica, no seu número 195, um dossiê temático ao autor, composto por cinco ensaios e vários inéditos. Os ensaios — da autoria de Osvaldo Manuel Silvestre, Rui Mateus, José Geraldo, Ricardo Namora e Clara Rowland —, exploram o espólio, apresentando novas perspetivas de abordagem e novos leitores de Carlos de Oliveira, aspeto fundamental para a duração longa de uma obra. Quanto aos inéditos, são uma primeira amostra dessa “parte submersa do iceberg” que é o espólio do escritor, e permitem perceber o potencial de releitura crítica aí contido. O dossiê conclui-se com alguns depoimentos de portugueses e estrangeiros, todos eles partes de um diálogo intenso que a própria correspondência do autor regista. Para além das habituais secções da revista, destacam-se ainda neste número a entrevista ao poeta sírio Adonis, a evocação de João Lobo Antunes e o belíssimo contributo de Ilda David com um conjunto de imagens inéditas. | |
MAHMUD DARWISH (1941-2008)
só me resta
perder-me pela tua sombra, que é a minha.
só me resta
habitar a tua voz, que é a minha.
afastei-me da cruz estendida
como claridade em horizonte que não se inclina
até ao mais minúsculo monte que a vista alcança
mas não achei minha ferida, minha liberdade.
porque não sei onde moras
não encontro o caminho,
e porque meu dorso não se apoia em ti com pregos
inclinei-me tanto
como teus céus fazem
a quem espreita de escotilhas de avião
devolve-me os pedaços do meu nome
para que possa convocar as fibras das árvores
devolve-me as letras do meu rosto
para que possa chamar as tempestades próximas
devolve-me as razões do meu prazer
para que possa invocar esse regresso sem razão
porque a minha voz está seca como pau de bandeira
e a minha mão vazia como o hino nacional
porque a minha sombra é ampla como se fora uma festa
e os traços do meu rosto se passeiam de ambulância,
porque eu não sou mais do que isto:
o cidadão de um reino que não nasceu ainda.
Poema do poeta palestiniano Mahmud Darwish
___________________________________________________________________________________
Palestinian Mahmoud Darwish was born in al-Birwa in Galilee, a village that was occupied and later razed by the Israeli army. Because they had missed the official Israeli census, Darwish and his family were considered “internal refugees” or “present-absent aliens.” Darwish lived for many years in exile in Beirut and Paris. He is the author of over 30 books of poetry and eight books of prose, and earned the Lannan Cultural Freedom Prize from the Lannan Foundation, the Lenin Peace Prize, and the Knight of Arts and Belles Lettres Medal from France.
In the 1960s Darwish was imprisoned for reciting poetry and traveling between villages without a permit. Considered a “resistance poet,” he was placed under house arrest when his poem “Identity Card” was turned into a protest song. After spending a year at a university of Moscow in 1970, Darwish worked at the newspaper Al-Ahram in Cairo. He subsequently lived in Beirut, where he edited the journal Palestinian Affairs from 1973 to 1982. In 1981 he founded and edited the journal Al-Karmel. Darwish served from 1987 to 1993 on the executive committee of the Palestinian Liberation Organization. In 1996 he was permitted to return from exile to visit friends and family in Israel and Palestine.
Mahmoud Darwish’s early work of the 1960s and 1970s reflects his unhappiness with the occupation of his native land. Carolyn Forché and Runir Akash noted in their introduction to Unfortunately It Was Paradise (2003) that “as much as [Darwish] is the voice of the Palestinian Diaspora, he is the voice of the fragmented soul.” Forché and Akash commented also on his 20th volume, Mural: “Assimilating centuries of Arabic poetic forms and applying the chisel of modern sensibility to the richly veined ore of its literary past, Darwish subjected his art to the impress of exile and to his own demand that the work remain true to itself, independent of its critical or public reception.”
Poet Naomi Shihab Nye commented on the poems in Unfortunately It Was Paradise: “[T]he style here is quintessential Darwish—lyrical, imagistic, plaintive, haunting, always passionate, and elegant—and never anything less than free—what he would dream for all his people.”
Mahmoud Darwish died in 2008 in Houston, Texas.
SEBASTIÃO ALBA (1940-2000)
NINGUÉM MEU AMOR
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos
Poema do poeta português Sebastião Alba (1940-2000)
_____________________________________________________________________________________________