"Não me ocorreu dizer mais nada." É a última frase dos três espessos volumes que reúnem em 2795 páginas várias centenas de textos dispersos de Agustina Bessa-Luís que a Fundação Calouste Gulbenkian apresenta hoje no Porto, numa sessão na Fundação Serralves.
Com recolha e organização da neta da autora, Lourença Baldaque, Ensaios e Artigos (1951-2007) permite a radiografia completa do seu pensamento sobre quase tudo, sendo muito curiosa a recordação das opiniões políticas no pós-25 de Abril, bem como os comentários sobre alguns ícones da música popular, Madonna e Bob Dylan (parcialmente reproduzido abaixo). Mas é a sua rudeza ou sedução nos comentários sobre os seus pares escritores que geram mais polémica, já que Agustina não se proíbe de dizer o que realmente pensa sobre a Literatura. Leia algumas partes no A a Z literário que se segue.
Agustina: "Decorre a apresentação do livro de Cavaco Silva no salão nobre [do Centro Cultural de Belém], e os carros pretos dos ministérios sobem a rampa com uma lentidão consular. (...) Freitas do Amaral acaba também de escrever um livro e é saudado triunfalmente. Eu escrevi cinquenta e não me prestam tanta atenção. Pelo que fico, por um momento, desencorajada." (1994)
Bob Dylan: "A multidão serve-se dos mitos no grande banquete frio de ideias feitas. A ideia romântica e a ideia triunfal, a ideia extradoméstica. Mas os anos 60 passaram. No seu rochedo sobre o mar, Bob Dylan está só. (...) Um tipo domesticado, como todos os velhos dizem. O seu lado espiritual deixa-o na sombra. O seu motivo cavalheiresco torna-o solitário." (1987)
Camilo Castelo Branco: "Um homem dotado para a vida é um homem angustiado; ele sabe que quanto mais o seu génio progride e se expande, mais cria para si próprio condições de invulgar desastre. (1964) " Tanto temia Camilo o punho da sociedade para quem escrevia e que, afinal, não era persistente na crueldade nem obstinada na estupidez. (...) Na verdade, não sei que lhe deu a Camilo para escrever este romance (A Enjeitada) a não ser o desprezo pela sua atividade face a um público que lhe exigia emoções calculadas, e para quem o melodramático se confunde com o sério." (1980)
Dostoievski: "Não há melhor maneira de perceber a intimidade de Dostoievski senão fazendo da sua obra uma Bíblia, pegando nela à boa maneira russa e deixando que se abram as folhas do destino, ao acaso, no encontro desse romântico calor e realidade profunda que foram seus dons. Como eu faço agora, detendo-me num parágrafo de Niétochka, um dos seus primeiros ensaios da longa novela, escrita na prisão e que tem por inteiro o estremecimento da aspiração frustrada do amor humano." (1981)
Éxito: "O êxito dos romances de Lawrence Durrell pode corresponder a uma fraqueza da personalidade, é natural que corresponda a uma fraqueza da personalidade de todos nós." (1965)
Fellini: "O que Fellini chama inocência é a libertação do aborrecimento. É o riso, o prazer, a espontaneidade inglória mas eficaz, e coisas assim. (...) Mas não é inocência. A inocência é o insulto que o amor aprova. E, como o amor, é rara. O que Fellini chama inocência é a libertação do aborrecimento. É o riso, o prazer, a espontaneidade." (1973)
Goethe: "O "eterno feminino", com que Goethe termina o segundo Fausto, é um aditamento à insuficiência humana com que todos os trabalhos e ideias se defrontam. Se a mulher assumisse o Poder, com todas as suas objetas funções o homem fica muito inexpressivo e o seu sentido da divindade perde-se."
Henry Miller: "Vejamos o caso de Henry Miller, que conta já mais de oitenta primaveras e diz fluentemente as mesmas coisas que um moço de vinte primaveras comenta por conta própria, ainda que de maneira mais ingrata e verde. Ambos se encontram no mesmo ponto: viver não é conhecer a vida." (1973)
Inspiração: "Escrever uma página inspirada não acontece todos os dias. Às vezes movemos o pensamento pelos atribulados caminhos do doméstico, que corrompem a subtileza e a graça; outras vezes pomos na cabeça o nosso gorro sábio, e resulta uma enfadonha tabuada de sentimentos." (1966)
José Régio: "É cedo ainda para que eu fale do Régio. Vejo-o ainda de desvelada maneira, "quieto no seu canto", porque a poesia é incomunicável. O que víamos era talvez uma dinâmica infeliz e um deserto de orgulho crucificado." (1970)
Kafka: "As criaturas isoladas, diamantinas, como Kafka, simulam toda a vida uma coragem normal de relações, contactos, até amores perdoáveis. Mas ficam sempre naquela terra hostil onde se murmura; nas selvas negras de Brecht onde se murmura: "Nós não pudemos ser amáveis... recordai-nos com indulgência." (1968)
Lobo Antunes. "Se me dissessem, há um tempo atrás, que eu haveria de fazer a apresentação dum livro de Lobo Antunes, e um livro chamado Tratado das paixões da alma, eu não teria levado a sério. (...) Das leituras que fiz algo de fundamental: que não se tratava de um carreirista das letras nem jovem zangado, como foi moda apelidar os snobs inteligentes. Tratava-se muito simplesmente dum homem em más relações com a justiça dos homens. A até com a injustiça deles." (1990)
Mecenas: "A cultura não é custear espetáculos. A cultura não se elabora, vive de uma filtragem moral e sentimental da sociedade que a produz. Não é obra de empresários nem de mecenas. Não é programa de Estado." (1977)
Namora: "Com o livro de Fernando Namora, URSS Mal amada bem amada, dá-se um caso de protocolo sem boa construção. Se percorremos um país estranho, há que em ter em conta o que é realmente degradação e costume. (...) O livro de Namora é um roteiro em que a imparcialidade não nos comove, simplesmente porque ela não interessa a ninguém. Namora escreve com certa usura de emoções. Sempre foi assim, ou descobre um registo mais profundo ao ficar fora da sua própria identidade?" (1986)
Odisseia: "Há uma teoria quanto ao autor da Odisseia que atribui a uma siciliana a obra imortal de Homero. Essa atrevida opinião funda-se em traços psicológicos, que não são para desprezar. Por exemplo, o grande conhecimento da vida doméstica demonstrado pela primeira Nausica, em contraste com a sua ignorância a respeito de navegação e os trabalhos pastoris." (1992)
Público: "O que acorre a esta conferência (...) é gente nova quase toda, dita das Artes, e que se preocupa extraordinariamente com a moldagem da sua personalidade." (1960)
Quadro: "O retrato presidencial de Jorge Sampaio é um retrato à margem do retratado. Paula Rego tem dificuldades em pintar pessoas. Desenha-as mas não as inventa, não as estuda, não reage com elas a isto que se chama o mundo. O retrato do Presidente Mário Soares, que confiou num amigo para o fazer, obedece a um absurdo lógico. Parte do conhecimento da sua personalidade, arrebatada e impaciente, para exprimir o lado facecioso dum temperamento. Não trai, apenas se destina a círculo dos amigos e nem sequer à roda da família." (2006)
Romance: "O romance é ainda um "jogo de palavras" e não corresponde, mesmo quando obtém grande sucesso, à exigência do homem. Porque, para lá dos seus intuitos de diversão ou aventura, talvez pressinta o pequeno campo de imagens do romance como coisa que não deve ser tomada a sério." (1963)
Salman Rushdie: "Não se podem ler os livros sagrados dando-lhes um significado panfletário. (...) Gibreel , o homem armado, personagem de Versículos Satânicos, de Salman Rushdie, achava que a fé era como uma doença, e que havia de voltar sempre. Por isso preferiu puxar o gatilho e libertar-se da infância da sua credulidade e dos génios de outrora." (1991)
Timidez: "A mulher tímida encontra o sucesso ao pé da porta, e foi nessa nota que os empresários de Marilyn se garantiram. Mas é muito raro que as mulheres sejam tímidas. Para isso têm que possuir um elevado sentido metafísico, sem o qual a timidez é apenas insuficiência mental. Quando Greta Garbo diz: "Tive hoje uma grande discussão com Deus", está explicado o teor da sua beleza e fascinação."(1992)
Uso: "Os usos estéticos da língua portuguesa começam notoriamente nos cronistas do século XIV, com Fernão Lopes. Até então, a prosa escrita destinava-se a atos de doação e testamentos e ao registo de propriedades. A redação desses papeis era confiada ao tabelião ou secretário régio, que não punham empenho na elegância da língua, mal socorrida por um latim bárbaro e menos que vulgar." (2005)
Vinha do Douro: "De maneira muito inesperada, indo ao Douro onde ainda há uma casa de família meio entregue a fantasmas competentes e que não pomos em dúvida, encontrei-me com Madame Bovary ali ao lado. Filmava-se um mortório, e as jovens do lugar, vestidas de preto, rodeavam o caixão da Dona Augusta, que era a Laura Soveral muito engripada. É estranho essa encarnação em figuras que os não inspiram. (...) E se eu tivesse melhor caneta, mais diria. Mas acaba-se aqui a tinta; não o canto que faltou a Camões, porque nesse tempo vinho de cheiro não havia."
Wilhelm Reich: "Há muito tempo que não lia Wilhelm Reich. No meio de muitas ideias mal sucedidas, de muitos absurdos concubinatos com a verdade, Reich mantém algo de surpreendente no seu discurso. A linguagem é, às vezes, delirante, outras vezes profética. Decerto comoveu muitos psiquiatras com veia revolucionária. Recorrem a Reich como a um precursor no âmbito das informações genitais, mas ignoram a teoria do novo líder." (1992)
Xenófanes: "A ignorância do magistério que determina a obra de Xenófanes não basta para o tomarmos como autodidata. Quer aprendesse nos livros ou nas palavras dos mestres, ele foi poeta e admite-se que foi professor de Parménides. Xenófanes dizia que a verdade não é para ser divulgada, porque as imagens da opinião ou do senso comum são historicamente mais fortes do que a justiça da verdade ou a verdade da justiça." (1995)
Yourcenar: "Antes de tudo, posto que para Filipe La Féria o cenário antecipa o teatro e é o seu porta-voz, a cova de Electra, aos nossos pés. (...) Mas o drama não está lá. O estudo dos atores não foi fecundo. Os atores estão vestidos como se fossem hunos e não gregos. Eu penso que a peça de [Marguerite] Yourcenar é débil, muito perto de um drama burguês, com um tempero de psicanálise que nos fatiga e nos dececiona." (1987)
Zarco: "Há um monumento a Gonçalves Zarco, mas não exige que os corredores de fundo da História parem diante dele, esperando indicações preciosas para poderem prosseguir. (...) Chegada à Madeira, depois de duas ou três conversas com jornalistas, apercebi-me de que eles sabiam mais de mim do que eui própria. Sabiam quem me estima e que me detesta, facto que parece bizarro se o tornarmos público aqui. Isto quer dizer que a ilha exerce um poder desinibidor e que lá o sintoma de identidade não é visto da mesma maneira." (1995)
NOTÍCIA RETIRADA DO JORNAL ON-LINE "DIÁRIO DE NOTÍCIAS" , ESCRITA POR João Céu e Silva