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POVO TUPI - AMAZÓNIA - BRASIL
A ORIGEM DA NOITE
Antigamente, a noite não existia no céu. O dia era eterno. A noite dormia no fundo das águas. E os animais também não existiam, e os objectos falavam.
A filha da Grande Serpente casou com um homem, que tinha três criados fiéis. Ele disse-lhes uma vez: "Afastem-se, porque a minha mulher quer copular comigo." Mas não era a presença dos criados que incomodava a jovem. Ela não queria fazer amor senão na escuridão. Explicou ao seu marido que o seu pai detinha a noite, e que ele devia enviar os seus criados buscá-la.
Quando estes chegaram, numa piroga, junto da Grande Serpente, este deu-lhes uma noz de palmeira tucuman bem fechada, e recomendou-lhes que não a abrissem sob nenhum pretexto. Os criados voltaram a embarcar e, pouco depois, ficaram surpreendidos com um ruído que vinha do interior da noz: ten, ten ten, chi... semelhante ao ruído que os grilos e as rãs fazem durante a noite. Um dos criados quis abrir a noz, mas os outros opuseram-se. Depois de muitas discussões, e quando já estavam muito longe da morada da Grande Serpente, reuniram-se finalmente no meio da piroga, fizeram uma pequena fogueira, e fizeram fundir a resina que mantinha a noz fechada.
Mal a noz se abriu, a noite surgiu, e todas as coisas que havia na floresta, se transformaram em quadrúpedes e pássaros, e todas as coisas que havia no rio, transformaram-se em patos e peixes. O cesto transformou-se em jaguar, o pescador e a sua piroga tornaram-se patos: na cabeça do homem surgiu um bico, a piroga tornou-se o corpo, os remos as patas...
A filha da Grande Serpente compreendeu a razão da obscuridade que reinava agora. Quando a estrela da manhã surgiu, a jovem decidiu separar a noite do dia. Para o conseguir, transformou duas bolas de fio nos pássaros cujubim e inhambu (que anunciam a aurora). Para punir os criados, transformou-os em macacos.
Amazónia, Tupis
ANTÓNIO RAMOS ROSA
Havia na madeira uma penumbra
de criação que entrava pelas narinas
e quase triste num arvoredo madrugava
irrigando toda a construção sonora.
Num frescor de matéria se ensombrava
dos concêntricos alicerces se elevando
à folhagem da cúpula animal.
Agreste, o seu estuar é paz de sombra
demorando o assombro da frescura
em verdade de horizonte interno.
Poro a poro as crinas da madeira
rodeiam a atenção e a inclinam
para onde é mais limpo o coração.
E o olvido é a frescura da memória
que abre os largos vales solitários
em que pastam cavalos silenciosos
entre verdes girassóis incendiados
ANTÓNIO RAMOS ROSA
O livro está aberto e há demasiada luz.
Tudo o que escreves está contido nesse livro de letras
brancas como a tua morte.
Será possível ler o sol e o silêncio desse livro branco
eternamente branco e silencioso?
Como conter a àvida necessidade de devorá-lo como se o
livro pudesse matar-nos a irredutível fome de uma
linguagem legível e luminosa?
Estamos perante a impossibilidade de ler por um excesso
de luz que é a um tempo a nossa morte e a improvável
possibilidade de escrever o que não vemos, de ler o que não
lemos.
Devoramos o livro e com os olhos cegos de brancura
transformamos a impossível leitura na escrita de uns signos
imediatos que nos devolvem a linguagem da luz apagada
pela luz.
Poema de António Ramos Rosa in "Antologia Poética", Publicações Dom Quixote, edição de Fevereiro de 2001
As palavras saem mudas porque
o ouvido está surdo
e a boca não sabe repetir
o que o corpo não ouve.
O escritor italiano Claudio Magris tem um novo romance. Sobre a guerra e a paz. Pretexto para pensar a realidade mundial e a literatura.
Ler aqui entrevista dada ao Diário de Notícias
Karl Popper
«Penso que só há um caminho para a ciência ou para a filosofia: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte nos separe - a não ser que encontrem um outro problema ainda mais fascinante, ou, evidentemente, a não ser que obtenhamos uma solução.
Mas, mesmo que obtenhamos uma solução, poderemos então descobrir, para nosso deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que talvez difíceis, para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com um sentido, até ao fim dos vossos dias.»
Karl Popper
"Gosto do Outono, esta estação triste convém às recordações. Quando as árvores já não têm folhas, quando o céu conserva ainda, ao crepúsculo, o tom rubro que doura as ervas murchas, é bom ver apagar-se tudo o que ainda ontem em nós ardia... É triste, a estação em que estamos: dir-se-ia que a vida vai embora com o sol, corre-nos o coração um arrepio e também a pele, todos os barulhos se extinguem, empalidecem os horizontes, vai tudo dormir ou morrer."
Excerto retirado do livro de Gustave Flaubert «Novembro», edição de 2007 da Editorial Teorema
RUY BELO
TU ESTÁS AQUI
Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável e selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome domértico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas qu fiz fi-las para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir umas coisas das outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizere que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui
Poema de Ruy Belo in "O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor", edição Assírio & Alvim (1402), Julho 2010
«Sem erotismo, a vida não tem a menor graça.»
Chico César, músico e poeta, autor de Versos Pornográficos. O Globo.
Quanto maior a expectativa maior o desassossego.
Quanto maior o desejo maior a angústia
As viagens inventaram-se para quem está triste. Se não houvesse pessoas tristes, não havia agências de viagens.
Que julgam que o infante D. Henrique fez ao criar a Escola de Sagres? Um ponto de partida para se poupar à melancolia.
Agustina Bessa-Luís
What will survive of us is love.
Do poeta inglês Philip Larkin
Francisco Brines
Misericordia extraña
ésta de recordar cuanto he perdido,
y amar aún su inexistencia.
Poema de Francisco Brines (1932), poeta espanhol
Paul Celan
Hans Bender
Meu caro Hans Bender,
Agradeço-lhe a sua carta de 15 de Maio e o amável convite para colaborar na sua antologia Mein Gedicht ist mein Messer (O meu poema é a minha faca). (1)
Lembro-me de há tempos lhe ter dito que assim que o poema verdadeiramente está aí, o poeta volta a libertar-se da sua cumplicidade original. Hoje formularia esta opinião de maneira completamente diferente, ou então tentaria diferenciá-la; mas no fundo continuo a ter esta - velha - opinião. É claro que existe também o que hoje, tão fácil e despreocupadamente, se designa de ofício. Mas - permita-me esta redução do pensamento e da experiência - o ofício é, como a correcção em geral, condição de toda a poesia. Este ofício não se faz, com certeza, sobre um chão dourado. (2) - quem sabe até se ele assenta sobre algum chão. Tem os seus abismos e profundezas, e alguns - ah, mas eu não faço parte deles - Têm até um nome para isso.
Ofício - é coisa das mãos. E estas mãos, por outro lado, só pertencem a um indivíduo, isto é, a um único ser mortal que com a sua voz e o seu silêncio busca um caminho.
Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema. E não nos venham com o "poieín" e coisas assim. Isso significava, juntamente com as suas proximidades e distâncias, sem dúvida qualquer coisa totalmente diferente do que no seu contexto actual.
Existem, com certeza, exercícios - no sentido espiritual, caro Hans Bender! E para além disso há também, a cada esquina lírica, toda a espécie de experiências com o chamado material verbal. Poemas são também oferendas - oferendas àqueles que são atentos. (3) Oferendas que transportam um destino.
"Como se fazem poemas?"
Há anos atrás pude, por algum tempo, ver e, mais tarde, a partir de uma certa distância, observar atentamente como o "fazer" se vai transformando, através da factura, em contra-facção. (4) Sim, isto também existe, como deve saber... Não acontece por acaso.
Vivemos sob céus sombrios e... existem poucos seres humanos. Talvez por isso existam também tão poucos poemas. As esperanças que ainda me restam não são grandes; tento conservar aquilo que me restou.
Com os melhores votos, para si e para o seu trabalho,
Paul Celan
Paris, 18 de Maio de 1960
(1) A antologia em questão, que inclui a carta de Paul Celan, é uma edição aumentada, em relação à primeira, de 1955, e foi publicada pela Editora List, de Munique, em 1961. A páginas 166 pode ler-se a seguinte nota do organizador: "Paul Celan autorizou a publicação desta sua carta pelo organizador da Antologia, com o desejo expresso de que "ela fosse tomada por aquilo que é: como uma carta dirigida a si, com a data do dia de hoje (18 de Maio de 1960)".
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(2) A frase só se compreende à luz de um antigo provérbio segundo o qual um bom ofício, uma vez aprendido, é sempre rentável. Nos Provérbios de Sebastian Franck (Franckfurt, 1560) ele é citado na versão atribuída ao humanista Johannes Agricola: "Um ofício tem um chão de ouro".
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(3) Cf. nota 21 a "O Meridiano".
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(4) O original explora um jogo de palavras que se procurou manter: a machen (o acto) / die Mache (o processo e o resultado) / Machenschaft (o fazer intriga, trama, manobra) corresponde "fazer" / "factura" / "contra-facção".
"Carta a Hans Bender" foi retirada do livro de Paul Celan "Arte Poética - O Meridiano e outros textos", editado em 1996 por Edições Cotovia
Se estou
sozinha na neve
é óbvio
que sou um relógio
de outro modo como poderia
a eternidade deslizar
Poema de INGER CHRISTENSEN
BELLINI E PABLO TAMBÉM
Para o Alberto de Lacerda
Alberto Alberto
como os números enganam
você completou setenta
setenta anos de vida
três vezes mais de vivências
metade no coração
não diga nada já sei
você vai-me responder
(citando Yeats)
que o coração envelhece
mas não o seu
o seu não
o seu floresce todas as manhãs
mesmo quando o tempo é mau
e como o tempo agreste o martiriza
toca o telefone
é você
: já viu como o tempo está?
uma coisa pavorosa
não se aguenta
mas a conversa prossegue
e o seu clima interior levanta logo
começa
a resplandecer
você nisso é singular Alberto
nisso e muitas outras coisas
o seu spaghetti com peixe
por exemplo
quase ninguém acredita
- o Alberto a cozinhar?
e que gosto você põe
em fazer condimentos de alcaparras
você desencanta sítios para as comprar
você desencanta tudo
Victoria Square
(um assombro)
Paris no centro de Londres
e a pia baptismal de William Blake
e poetas que nunca foram publicados
e as galerias de arte de Mayfair
estou em crer que elas estão lá
só por si
para lhe agradar
toca o telefone
o telefone para nós dois
tornou-se fundamental
trim trim
é você de longe
Londres Boston Nova Iorque
: acabo de vir do MoMA
você não pode perder
a exposição que lá está
primeiro as suas recomendações
: vá cedo
não perca tempo
a exposição
é exigentíssima imensa
tem que ser vista com o maior rigor
depois vem o conversete
palavra sua
hoje nossa
interrompido por mil divagações
porque como
você diz
você escreveu
num poema que inspirou Octavio Paz
conversar é divino
e tem razão
e às vezes você anoitece
são nuvens sombras
o exílio
tantos exílios
ninguém pode sequer imaginar
e noutras ocasiões a gente liga
e o telefone toca toca
e você sem responder
: não ouvi
estava a ouvir música
esclarece você depois
e a sguir
: espere um momento
os seus momentos são eternidades
o auscultador pousado
apanha um leve tossir
um breve passarinhar
e de novo a sua voz
: está com paciência?
posso ler-lhe um poema
escrito no Café Picasso esta manhâ?
é claro que pode Alberto
você pode sempre Alberto
você com essa até me faz lembrar
a preta Irene do Manuel Bandeira
Manuel
poeta querido
amigo seu
tantos amigos
tantas
amizades
e a nossa também Alberto
que vai crescendo e permanece igual
que vence fusos horários
para dar vivas a Bellini
Bellini e Pablo também
que é local inter-urbana
e atravessa continentes
e me nome da qual pergunto
: tem paciência para ler isto?
é uma cantiga de amigo
que lhe dedica
a vinte de Setembro
o seu
mais do que amigo
irmão
Luís
Poema de Luís Amorim de Sousa in BELLINI E PABLO TAMBÉM, 2007. Este poema foi escrito em antecipação da data de 20 de Setembro
Londres/Fergus Falls, Minnesota 28/6-2/7 de 1998
Luís Amorim de Sousa
COISAS
Há coisas que vão ficando
fotografias louças contas antigas
não sei
debruçámo-nos tanto
sobre a minúcia do quotidiano
que o dia a dia excedeu as nossas vidas
não sei como resiste o que perdura
olho o telefone de coração na boca
e aponto coisas para não me esquecer
Poema de Luís Amorim de Sousa in NADAR NO ESCURO, 1997
"A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira, ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena."
Padre António Vieira, Sermão da Quinta Dominga de Quaresma, pregado na Igreja Maior da cidade de São Luís no Maranhão, no ano de 1654
- Existe a sua ordem preciosa, esse candeeiro esguio de ferro, feio e estéril, e existe anarquia, luxuriante, viva, que se reproduz a si própria; existe anarquia, magnífica em verde e dourado.
- Ainda assim - respondeu Syme pacientemente -, neste momento, você só vê a árvore à luz do candeeiro. Pergunto-me se algum dia conseguirá ver o candeeiro à luz da árvore.
G.K. CHESTERTON,
O Homem que era quinta-feira
António Lobo Antunes
Faz domingo à tarde quinze dias que a minha mulher saiu para passear o cão e não voltou mais. Ia com a roupa normal, sem bagagem, claro, sem dinheiro
(ainda há umas moedas em cima da mesa da cozinha)
nem sequer maquilhada, nem sequer muito bem penteada, exactamente conforme costuma andar em casa, de cabelo preso às três pancadas com um gancho, era só uma volta ao quarteirão para o bicho se aliviar contra um pneu, e até hoje. Telefonaram duas ou três vezes do emprego a perguntar se ela estava doente, respondi que não e se calhar fiz mal porque não telefonaram mais, provavelmente já a substituíram porque o que não falta por aí é gente à procura de trabalho, a mãe dela não sabe de nada, o irmão dela não sabe de nada, a Dália, que é a melhor amiga, não sabe de nada, eu e o meu filho claro que não sabemos de nada, não tomou café no café, o sujeito que mora dois prédios a seguir ao nosso e estava a limpar o carro dos pombos e das folhas das árvores viu-a passar com o bicho pela trela, ainda se cumprimentaram, ainda sorriram um ao outro, a minha mulher pareceu-lhe completamente normal
– Educada como sempre, amigo
a senhora do rés do chão mais à frente, que costuma estar sempre à janela, trocou um
– Boa tarde
com um
– Finalmente já cá temos a primavera
a minha mulher voltou na rua que conduz à praceta com o busto do matemático num canteiro e, que eu saiba, mais ninguém recorda nada conforme me explicaram na esquadra da polícia
– Tirando o vizinho e a velhota não temos informações
a fotografia que saiu no jornal com a descrição dela não trouxe novidade alguma, não apareceu nenhum cadáver no rio, os hospitais népia, a morgue népia, evaporou-se por aqui onde nem sequer há um buraco aberto no alcatrão por causa de um cano ou assim, portanto sumiu-se para cima mas que eu saiba não voa, mesmo que subisse e baixasse os braços o peso dos sapatos mantinha-a na calçada, não tem grandes amizades no quarteirão porque não é pessoa de conversas compridas, aliás mesmo em casa pouco falava, herdou isso do pai que não soltava um pio, sentado no sofá a fumar sem se abrir com ninguém, o cão, esse, regressou sozinho, com a trela de rojo, porque na manhã seguinte estava a porta de casa a gemer. O meu filho trouxe-o para a cozinha e não larga o cesto, enrolado lá dentro a olhar-nos, porém esse não fala, experimentei passeá-lo eu, depois de lhe dar a cheirar um vestido da minha mulher que tirei do armário, procurando entusiasmá-lo
– Busca, busca
mas urinou num pneu e foi tudo, a seguir ao pneu começou logo a puxar-me na direção do prédio, saudoso do cesto, sou eu quem cozinha agora para o miúdo e para mim, quem vai às compras ao fim de semana, quem dá uma espécie de limpeza nas três assoalhadas, não tão bem como ela mas pronto e quanto à minha mulher continuamos na mesma, não está, não telefona, não escreve, não mete a chave à porta, claro, vou dizendo ao rapaz que a mãe foi de férias e ele um soslaio calado, só lhe falta o cigarro para ser igual ao avô, acho que a pouco e pouco me vou habituando à sua falta, guardei-lhe os chinelos no armário dado que não precisa deles, não tarda muito deito-lhe a escova de dentes no lixo, enfio as três ou quatro joias que tem na gaveta, ofereço os trapos dela ao prior e acabará por ser como se nunca houvesse morado aqui. É possível que surja outra mulher, é possível que não, não tenho tido tempo para pensar nisso porque andamos lá no emprego a preparar o balanço e por conseguinte o patrão e eu trabalho que não acaba, se calhar devia sentir saudades porém que me dê conta não me atacaram ainda, às vezes falta-me um corpo ao lado a meio da noite, não posso dizer que muito mas falta-me e depois esqueço, torno a adormecer e pronto. Isto de há quinze dias para cá, quando a minha mulher saiu para passear o cão e não voltou mais. Parece-me aliás que o meu filho e eu já começámos a esquecê-la. Pelas minhas contas dentro de um mês já não existirá nem rastro dela neste andar, cada vez lhe recordo as feições de forma mais vaga e quem diz as feições diz a maneira de falar, os gestos, o que ela gostava de comer, essas coisas que dentro de nós compõem uma pessoa e tudo isto acontece sem dor, sem lágrimas, claro, sem tristeza até. Sem espanto igualmente como se ela não tivesse existido e cada vez mais não existiu de facto. E se não existiu de facto para quê ralar-me? O meu filho nunca fala da mãe, o cão nunca fala da dona. Sou eu quem o passeia agora, às vezes fico séculos à espera segurando na ponta da trela que ele se decida entre dois pneus, cheira o primeiro, cheira o segundo, hesita, reflecte. Nota-se a indecisão no seu focinho, ergue a pata para um, ergue a pata para o segundo, olha um terceiro, acaba por se decidir por um tronco, não inteiramente satisfeito
(compreende-se pela expressão que não inteiramente satisfeito mas enfim)
até se aproximar de mim numa resignação mole, e tornamos devagar para casa um ao lado do outro como dois amigos de há muitos anos que já esgotaram as conversas. No meio disto só um pormenor me preocupa: é que eu possa, como a minha mulher, sumir-me também e o miúdo tenha dificuldade em se amanhar sozinho, mas julgo não existirem razões para me inquietar: ao fim e ao cabo a gente habitua-se a tudo não é? E ele graças a Deus é uma pessoa como as outras, isto para além de haver imensas bolachas no armário da cozinha.
TEXTO DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES publicado na Revista VISÃO online de 19 de Maio de 2016
Nuno Júdice
A brevidade: por vezes, a mais longa das linhas
do tempo, cruzando-se com o desejo de permanência
que sustenta a sua ilusão. Logo, porém, a realidade nos
impõe a sua regra. O que é transforma-se no que foi,
com a melancolia que arrasta o sentimento da
passagem, como se o rio pudesse parar para sempre
no instante em que a felicidade parece suspender
o seu curso. Avançamos, então, contra essas sensações
que nos trazem um esplendor de rosa, aberta ao sol
do meio-dia, antes que a sombra da tarde a atinja
com a sua seta obscura. Uma ferida sangra entre pétalas
emurchecidas; e o ramo sugere a queda nocturna, onde
uma perseguição de prazer se confunde com a inquietação
da morte.
Olho-te, então, contra a perspectiva do efémero. Conto
cada uma das olheiras construídas no trabalho
do amor, sabendo que um vórtice de esquecimento
as restituirá à insónia da madrugada. Nessa hora, quantas
palavras trocaram esses amantes que o passado
vestiu com o seu manto de memória... Como se a manhã
não chegasse, trazendo a separação que corrói
a pele da alma, e prende toda a esperança a uma ilusão
de saudade. Por que lhe resistes?, pergunto. Em que
vazio afogarás este amor que insiste em respirar, como
se não soubesses que nada o substitui? Não
te enganes, como não se engana esse des cego às concessões
do presente, voando para os espaços mais inacessíveis,
e levando no bater das asas o mais fundo
dos abraços.
Segue esse voo com o impulso antigo; e
não percas o sabor desse filtro que os nossos lábios
trocaram, no mais solitário dos instantes.
Poema de Nuno Júdice
Carlos Nejar
Não quero que me encontrem
ou molestem. Isolo-me no quarto
de um país, onde posso
entretecer o génio.
Não usei como tantos,
bota rude na perna
cortando o lodaçal,
nem apanhei batatas
no dorso do quintal.
Não quero que me encontrem.
Talvez por desperdício
no sonho, ou por vício
de esquecer-me nos livros.
E a filosofia me convence
de exatidão. Com a erva
úmida a física fermenta
e incha a metafísica
aos ombros, nos torrões.
Não quero que me encontrem.
Evito o endereço nos postais.
E por pensar com o vento,
vou conciso. E um método
é preciso dos objetos
simples aos complexos.
E com a mecânica converso,
e da mente e a celeste.
Se a fantasia engana,
o mundo é a mesma corda
segurada no balde,
ou a gota pelo escuro
da paineira ou das moitas.
Renovar é volver
ao ponto de partida.
Olhar por dentro quando
é num relance a vista.
E o que aprendi a nada
me serviu. E quanto
me custou para adiante
servir-me. As novas ciências
eram noivas que possuí
sem casar com nenhuma.
Matemática, ordem
do universo, espuma
com voo em remos certos.
Mas uma filha tive.
Não, não era a ciência,
se aplaquei o desejo.
E de pensá-la ou percebê-la
existo. Quando nascer
é ato de vertigem.
Pulsando o coração,
como se um grito.
Ou barulho de riacho.
E eu, René Descartes, nada faço
sem antes refutar o preconceito,
a partir dos outros e de mim,
quando a razão que esposo
não demarca seu fim.
Nas coisas: beatitude
sem vestes, canavial
das horas. Nada se urde
no terror. Tais os anais
que longas ondas seguem
e um batel singra. Normas,
regras, tatos na constelar
matéria. E a verdade, martelo
na tensa natureza. Com a água,
movimento do impossível.
E os sentidos sem reparo
nos traem e há que abstrair
até a infância. Como este véu
que a vasta noite arranca.
Não quero que me encontrem,
mais que civilizado, francês,
viajor inveterado, por mim
avança a ideia infinita. Deus.
E a ciência que não
me deixou viver.
Poema de Carlos Nejar in "Os Viventes", edição Texto Editores, Ltda,2010, Brasil
´
In "Diário de Notícias"
A escritora sul-coreana foi distinguida por The Vegetarian
Translated by Deborah Smith
Published by Portobello Books
Yeong-hye and her husband are ordinary people. He is an office worker with moderate ambitions and mild manners; she is an uninspired but dutiful wife. The acceptable flatline of their marriage is interrupted when Yeong-hye, seeking a more ‘plant-like’ existence, commits a shocking act of subversion. As her rebellion manifests in ever more bizarre and frightening forms, Yeong-hye spirals further and further into her fantasies of abandoning her fleshly prison and becoming – impossibly, ecstatically – a tree. Fraught, disturbing, and beautiful, The Vegetarian is a novel about modern day South Korea, but also a novel about shame, desire, and our faltering attempts to understand others, from one imprisoned body to another.
Han Kang was born in Gwangju, South Korea, and moved to Seoul at the age of ten. She studied Korean literature at Yonsei University. Her writing has won the Yi Sang Literary Prize, the Today's Young Artist Award, and the Korean Literature Novel Award. The Vegetarian, her first novel to be translated into English, was published by Portobello Books in 2015. Human Acts was published by Portobello books in 2016. She currently teaches creative writing at the Seoul Institute of the Arts.
Exposição de Pintura de João Monteiro com o título de "Sombras Interiores" pode ser vista todos os dias de 14 de Maio a 25 de Junho na Biblioteca Municipal de Santa Maria da Feira.
“Mais importante que o destino é a viagem”. Estas palavras de Eduardo Lourenço servem de mote para o encontro Internacional “Literatura em Viagem”, organizado pela Câmara Municipal e que, durante alguns dias, transforma Matosinhos na capital nacional da literatura de viagem.
Uma viagem pelas viagens. Pelas palavras. Pelos mundos do mundo. Pelos trilhos percorridos naquele continente longínquo. Pelos desertos intermináveis da imaginação.
O Lev é o porto seguro de várias viagens e experiências. Um encontro feliz em torno da palavra e da viagem. Um ancoradouro de personalidades tão diversas, e de áreas tão distintas, que a promessa de uma mescla equilibrada e irresistível de vozes, faz de Matosinhos um destino único nestes dias de Literatura em Viagem.
Tenho uma cadeira escondida na cabeça onde sento o meu silêncio.
Uma borboleta pousa silenciosamente no meu ouvido e
num sussurro melancólico diz-me quão efémera é a sua
beleza.
põe um pé sobre a minha mão legítima que ela nunca mais escreva,
põe o outro pé sobre a parte mais alerta da cabeça e faz com que ela esqueça,
os dois pés sobre todo o meu corpo como se estivesse morto,
toca-me na testa e sopra-me na boca,
e eu fique tão sensível ao mundo que se transforme tudo,
ao quente do meu sangue,
ao frio do juízo,
que eu ganhe de repente o meu tamanho próprio,
como a luz deitada sobre si mesma, bicho que ao sol se
enrole tão enorme como a sombra deitada sobre a luz,
que eu me transforme enfim em tudo o que me toque,
que sopre por mim adentro com a extensão do fogo,
se tenho os braços abertos
para apanhar espiga a espiga todo o trigal do mundo,
e assim se faça o poema desde o leite que bebo
até ao frio fundo dentro das mãos fechadas,
oh punhos duros,
laços de sangue torto, sangue torto,
vívido, terrífico, oh sangue tão agudo,
e mo dobre o vento passando sobre as torres,
passando o fogo,
passando o ar mais acima do fogo,
mais acima da cabeça que ele toca se o sono é tocado pelo sonho,
para ser semeado à volta delas todas,
e grita do cimo dessas torres: - estrela! estrela! estrela!
nome a nome a nomeação da terra com suas pedras sôltas,
a cada pedra onde ela pedra é tão assim tocada,
no ar cego,
pelo ar como o amor toca o sangue e é o sôpro de quem ama
- o pé em cima da mão verídica com a chaga e com o beijo:
que eu não escreva nunca
nem abaixo nem acima do umbigo,
mas no umbigo mesmo,
que me dêem o nó agora à tripa entre mãe e filho,
que eu vá com toda a astúcia à minha vida tão difícil
Poema de Herberto Helder in "Letra Aberta, edição Porto Editora, Março de 2016
FERNANDO GUIMARÃES
ANNA AKHMATOVA
Estou agora sozinha. A noite pronuncia os nomes necessários.
Havia outrora alguém que deixava cair sobre os meus ombros
a areia rugosa. Dissera mesmo, com um sorriso: "Os teus
ombros de clepsidra..." E eu sentia esse rumor límpido, que levava
as pessoas a fitarem-se durante instantes, com uma suspeita
inesperada; uma espécie de veneno, digo-vos. O olhar
pousado neste espelho imobiliza-se; os dedos que teceram
os dourados ícones esperam ainda. Ficou à minha volta
apenas um ligeiro odor de tabaco, porque há muito as conversas
esmoreceram. Recomeço o maquillage e sei como os dedos
perseguem um corpo frágil e destruído; ao tocarem
com cuidado as sobrancelhas ainda poderão erguer esse pó azul
que as transforma numa espécie de versos, quando Tomachevski
nos vinha explicar: "a rima é a forma canonizada, métrica
da eufonia." E sinto ainda esse rumor triste, que ficou perdido
entre as vozes ciciadas, agora tornadas cúmplices. Uma mulher
aparecera com uma ave destruída nas mãos; o ar ficou
iluminado e sabíamos que ela pensava ainda num voo
que se tornara impossível. Foi assim que pude ver à minha volta
esta renda que chegava da idade, o tremor límpido que percorria
os braços, o contorno apenas adivinhado das veias. Sabia
que devagar começara o tempo a envolver-me; atravessei
um jardim e olhei as pegadas deixadas há muito nos caminhos. Pensei
nos bolbos, nas escamas da terra. Junto às portas entreabertas podia ver-se
alguns sinais que não sabia interpretar: talvez as sementes que nasciam
da própria casa, e sozinha escutava o rumor que atravessava estes corredores
vegetais. Tornava-se maior a minha sombra
em cada quarto, um pouco inclinada para os móveis abandonados onde
ficou um pano
estendido como se esquecêssemos o seu peso. Recebo daqueles que amei
a luz; assim me inclino um pouco sobre esta mesa e inicio
uma leitura morosa, paciente. Por vezes, em qualquer recanto, escuto ainda o grito
agudo dos que se suicidaram e reparo num vestígio de sangue
nas suas têmporas: como um fio vermelho que marca as páginas
de um livro. - Ficou caída sobre os joelhos esta manta cujas pregas
componho devagar; atravessada pelo frio húmido, desce até ao soalho que
cuidadosamente
enceraram. Quase em surdina, alguém ao meu lado disse: "Espero a noite
e os cavalos que a seduzem." A noite... É nela que irei procurar os limites
silenciosos destas paredes a que me acolhi; a sombra e a luz confundem-se
sobre os meus cabelos que sempre gostei de ter um pouco curtos. Reparo
nos favos da casa; há uma janela próxima que estremece
quando as folhas a vêm tocar, e principio a escrever ali as palavras que
ficaram esquecidas.
Era assim que começava um poema ? Tornaram-se mais cansados os
gestos. Apenas sei
que caminho ao encontro dos companheiros que nunca pude esquecer, e agora
os meus passos são de água.
Poema de Fernando Guimarães in [Casa: O seu desenho, 1986]