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Vergílio Ferreira
a noite feita, ela toda, em segredo
passando da mão direita para a esquerda
e ficar acordado enquanto se adormece
e acordando se se vê que está escrito
de cabeça para baixo
que o mundo de tão lento não se encurva
que tudo está no ovo
e o ovo não aquece nem arrefenta
e que nada está onde é suposto
e o lenço é ar apenas na mão do mágico
e nada se encontra agora onde se encontra
nem a cabeça
nem a caneta
nem a palavra certa para ser escrita
há duzentos ou trezentos anos
quando eu era criança algures noutro alfabeto
e escrevia alto numa espécie de caderno
sem páginas de um lado e de outro
e sem palavra nenhuma
sobretudo
Poema de Herberto Helder in "Letra Aberta", editado em Março de 2016 pela Porto Editora
Sculpture murale composée de trois supports en aluminium découpés au laser et peint à la main.
Autor: David Gerstein
MÁRIO DIONÍSIO
37
mil anos que viva não se apaga
a imagem sombria e vacilante
dum homem desconhecido numa esquina
com um lenço na mão manchado de sangue
uma imagem sombria e vacilante
cambaleante no regresso instável
das zonas baças onde o tempo pára
com um lenço na mão manchado de sangue
cambaleante no regresso instável
sem se lembrar da rua onde morou
só com uma ténue sombra do passado
no lenço na mão manchado de sangue
ninguém sabia a sua história
ninguém ouvira a sua voz
de seu só tinha bem pesado
um lenço na mão manchado de sangue
não tinha voz não tinha nome
não tinha pais não tinha amigos
não tinha lar só tinha um lenço
na mão manchado de sangue
Poema de Mário Dionísio [1916-1993] in "O Riso Dissonante", 1950
JOAQUIM NAMORADO
SONAMBULISMO
Tombam os dias inúteis:
amanhece, é tarde, anoitece.
Mas a nós que nos importa
ser manhã, meio dia ou noite?!...
Sonâmbula a vida decorre
- nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;
dentro de nós, cada um
apodrece.
Enchem-se de títulos vibrantes os jornais
- mas tudo é tão longe...
Passam homens por homens e não se conhecem:
Boa tarde! Bom dia!
Cada um fechado nas suas fronteiras,
os gestos vazios,
a vida sem sentido
- sonambulismo apenas.
Acorda!
Ainda que seja só para o sobressalto,
que as ilusões do sonho se desfaçam
e as esperanças morram todas nessa hora!
Acorda!
ainda que o caminho a percorrer te espante
e o peso da obra a realizar te esmague!
Ainda que acordar seja
morrer depois aos poucos, em cada momento,
dolorosamente
Poema de Joaquim Namorado [1914 - 1986] in Agora, 1945
Neste vão e flutuante mundo
O que resta a um homem?
Pode dedicar-se à oração
Mas se isso porventura não resulta
O melhor é refugiar-se entre os seios duma mulher
Acariciar as suas coxas quentes
E possuir o que entre elas se oculta
Poema de Bhartrihari, poeta indiano do séc. VII, traduzido por Jorge Sousa Braga
EWA LIPSKA
TESTAMENTO
Após a morte de Deus
abriremos o testamento
para saber
a quem pertence o mundo
e aquela grande armadilha
de homens.
Poema de Ewa Lipska
ANTÓNIO JOSÉ FORTE
AZULIANTE
Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e ver no meio do deserto o único
o magnífico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul
com raiva azul
como a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte
Choverá muito eu sei choverá muito
e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o tremor de terra em que tu danças
na tua roda de cigarros cada vez mais depressa
cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo
de oriente a ocidente
Certas palavras muito duras quando a noite cai
não devem ter outra origem sabes tão bem como eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz contra o grande uivo:
de oriente a ocidente a mesma flor podre o estado
segredos de estado as razões de estado a segurança do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente meu amor de oriente a ocidente
Digo não Eu digo não
digo o teu nome que diz não
No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore
à espera que tu chegues ou passes simplesmente
estão os grandes do império com o chapéu na mão
para cumprimentar-te
Então passas tu com a lua no peito
dividindo distribuindo os alimentos
passas tu devagar atirando as moedas
que os dias não aceitam e gastamos depressa
noite mil e uma noites de quem espera
Meu amor países pátrias têm todos um nome
de letras imundas que não é para escrever
Se ainda podes ouvir o búzio da infância
ouvirás com certeza o sinal de partir
No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis
que há mil anos dá a volta ao mundo
sou eu o homem que viaja nu porque eu sou
o arco-íris e a rosa no trapézio
e tu toda a paisagem que atravesso
como se fosse de bicicleta
como se fosse sílaba a sílaba
a primeira frase sobre a terra
tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão
com a tua máscara de olhar a aurora boreal
de me olhares para sempre nua eu a tempestade
de coração a coração
Roda sórdida da razão cínica e canto de galos
depenados vivos que cantam nos intervalos da morte
no meu livro de horas deste século
está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento
sob a forma de um cometa de cauda fascinante
que arrastará os amorosos até ao centro do mundo
donde partirão na rosa-dos-ventos e este será o sinal
Poema de António José Forte [1931-1988]
Jean Cocteau
O EMBRULHO VERMELHO
O meu sangue transformou-se em tinta. Era preciso impedir a todo o custo este nojo. Envenenei-me até aos ossos. Cantava no escuro e agora é essa mesma canção que me assusta. Melhor ainda: estou leproso. Conhecem essas manchas de bolor que simulam perfis? Não sei qual o encanto da lepra que engana o mundo e lhe permite beijar-me. Tanto pior para ele! Já não me diz respeito. Só mostrei feridas. Fala-se em fantasia fraciosa: culpa minha. É loucura expor-nos inutilmente.
A minha desordem amontoa-se até ao céu. Os que eu amava estavam ligados ao céu por um elástico. Virava a cabeça... já ali não estavam.
De manhã debruço-me, debruço-me e deixo-me cair. Caio de cansaço, de dor, de sono. Sou inculto, nulo. Não conheço nenhum número, nenhuma data, nenhum nome de rio, nenhuma língua, viva ou morta. Tenho zero em história e em geografia. Sem alguns milagres corriam comigo. Para mais, roubei os documentos a um certo J. C. nascido em M. L..., dia..., morto aos dezoito anos, depois de uma brilhante carreira poética.
Esta cabeleira, este sistema nervoso mal implantados, esta França, esta terra, não são meus. Repugnam-me. De noite dispo-os em sonhos.
Larguei o embrulho. Que me prendam, que me linchem. Entenda quem puder: Sou uma mentira que diz sempre a verdade.
Texto de Jean Cocteau [1889-1963], poeta, romancista, cineasta, designer, dramaturgo, actor, e encenador de teatro francês
Jorge de Sena
A MISÉRIA DAS PALAVRAS
Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,
na liberdade.
Se a miséria e a pobreza
fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
viria a liberdade por acréscimo,
sem palavras, sem gestos, sem delíquios.
Assim, apenas se fala do que se não fala,
apenas se vive do que não se vive,
apenas liberdade é uma miséria
sem nome, sem futuro, sem memória.
E a miséria é isso: não imaginar
o nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a língua em algo mais
que o falar por falar.
Falem. Mas não comigo. E sobretudo
sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
no silêncio que à linguagem faz
imaginar-se mais que o próprio mundo.
Poema de Jorge de Sena in "Antologia Poética" escrito em 5 de Agosto de 1962, edição Guimarães, Novembro de 2010
In "Diário de Notícias"
Ruy Belo
TO HELENA
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
A maneira mais triste de se estar contente
a de estar mais sozinho em meio de mais gente
de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente
Emotiva atitude de quem age friamente
inalterável forma de ser sempre diferente
maneira mais complexa de viver mais
simplesmente
de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente
de estar num sítio tanto mais se mais ausente
e mais ausente estar se mais presente
de mais perto se estar se mais distante
de sentir mais o frio em tempo quente
O modo mais saudável de se estar doente
de ser verdadeiro e revelar-se que se mente
de mentir muito verdadeiramente
de dizer a verdade falsamente
de se mostrar profundo superficialmente
de ser-se o mais real sendo aparente
de menos agredir mais agressivamente
de ser-se singular se mais corrente
e mais contraditório quanto mais coerente
A vida enviesada para ir-se em frente
a treda actuação de quem actua lealmente
e é tão impassível como comovente
O modo mais precário de se ser mais permanente
de tentar tanto mais quanto menos se tente
de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente
de estar mais no passado se mais no presente
de não se ter ninguém e ter em cada homem um
parente
de ser tão insensível como quem mais sente
de melhor se curvar se altivamente
de perder a cabeça mas serenamente
de tudo perdor e todos justiçar dente por dente
de tanto desisitir e de ser tão constante
de articular melhor sendo menos fluente
e fazer maior mal quando se está mais inocente
É sob aspecto frágil revelar-se resistente
é para interessar-se ser indiferente
Quando helena recusa é que consente
se tão pouco perdoa é por ser indulgente
baixa os olhos se quer ser insolente
Ninguém é tão inconscientemente consciente
tão inconsequentemente consequente
Se em tantos dons abunda é por ser indigente
e só convence assim por não ser muito convincente
e melhor fundamenta o mais insubsistente
Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente
O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente
Poema de Ruy Belo in "O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor", edição 1402 da Assírio & Alvim, Julho de 2010
FERNANDO PESSOA
Tirem-me os deuses
Em seu arbítrio
Superior e urdido às escondidas
O Amor, glória e riqueza.
Tirem, mas deixem-me,
Deixem-me apenas
A consciência lúcida e solene
Das coisas e dos seres.
Pouco me importa
Amor ou glória.
A riqueza é uim metal, a glória é um eco
E o amor uma sombra.
Poema de Ricardo Reis in "Odes", edição Ática, Abril de 1978
Eugénio de Andrade
RETRATO
No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.
Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
quente, redonda, madura.
Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma.
Poema de Eugénio de Andrade in "Os amantes sem dinheiro" [1947-1949], Edições Limiar, Dezembro 1980
JOSÉ RÉGIO
TUDO-NADA
Passai!, belas carruagens brasonadas,
Forradas de alcatifas e de roubos!
Passai!, carroças trôpegas! e bobos
Com as fardas e as farsas desbotadas...!
Passai!, clarões, clarins, tinir de espadas,
Arruaças de lobos contra lobos!
Passai!, gentis idílios!, vãos arroubos!,
Êxtases vis nos pátios das escadas!
Passai!, grenhas e caspa de profetas,
E doces ignomínias de poetas...!,
Almas em lira e corações em escudo.
Passa!... - No mar de gelo encalha o barco;
Lá longe, o charco sonha... e cheira a charco;
Lá em cima, há um céu crivado de astros, mudo.
Poema de José Régio in "Cântico Negro", edições Quasi, Setembro 2005