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#1979 - Vive o Dia de Hoje!

por Carlos Pereira \foleirices, em 29.04.16

Vergílio Ferreira

 

Vive o Dia de Hoje!

Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro.

Vergílio Ferreira, in "Escrever"

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publicado às 19:00


#1978 - Herberto Helder - Letra Aberta

por Carlos Pereira \foleirices, em 28.04.16

 

a noite feita, ela toda, em segredo

passando da mão direita para a esquerda

e ficar acordado enquanto se adormece

e acordando se se vê que está escrito

de cabeça para baixo

que o mundo de tão lento não se encurva

que tudo está no ovo

e o ovo não aquece nem arrefenta

e que nada está onde é suposto

e o lenço é ar apenas na mão do mágico

e nada se encontra agora onde se encontra

nem a cabeça

nem a caneta

nem a palavra certa para ser escrita

há duzentos ou trezentos anos

quando eu era criança algures noutro alfabeto

e escrevia alto numa espécie de caderno

sem páginas de um lado e de outro

e sem palavra nenhuma

sobretudo

 

Poema de Herberto Helder in "Letra Aberta", editado em Março de 2016 pela Porto Editora

 

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publicado às 18:11


#1977 - Coexistência

por Carlos Pereira \foleirices, em 17.04.16

 Sculpture murale composée de trois supports en aluminium découpés au laser et peint à la main.

Autor: David Gerstein

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publicado às 19:08


#1976 - 37

por Carlos Pereira \foleirices, em 17.04.16

 MÁRIO DIONÍSIO

 

37

 

mil anos que viva não se apaga

a imagem sombria e vacilante

dum homem desconhecido numa esquina

com um lenço na mão manchado de sangue

 

uma imagem sombria e vacilante

cambaleante no regresso instável

das zonas baças onde o tempo pára

com um lenço na mão manchado de sangue

 

cambaleante no regresso instável

sem se lembrar da rua onde morou

só com uma ténue sombra do passado

no lenço na mão manchado de sangue

 

ninguém sabia a sua história

ninguém ouvira a sua voz

de seu só tinha bem pesado

um lenço na mão manchado de sangue

 

não tinha voz não tinha nome

não tinha pais não tinha amigos

não tinha lar só tinha um lenço

na mão manchado de sangue

 

Poema de Mário Dionísio [1916-1993] in "O Riso Dissonante", 1950

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publicado às 18:44


#1975 - Sonambulismo

por Carlos Pereira \foleirices, em 17.04.16

 JOAQUIM NAMORADO

 

SONAMBULISMO

 

Tombam os dias inúteis:

amanhece, é tarde, anoitece.

Mas a nós que nos importa

ser manhã, meio dia ou noite?!...

Sonâmbula a vida decorre

- nas ruas, a paz larvar dos grandes cemitérios;

dentro de nós, cada um

apodrece.

Enchem-se de títulos vibrantes os jornais

- mas tudo é tão longe...

Passam homens por homens e não se conhecem:

Boa tarde! Bom dia!

Cada um fechado nas suas fronteiras,

os gestos vazios,

a vida sem sentido

- sonambulismo apenas.

 

Acorda!

Ainda que seja só para o sobressalto,

que as ilusões do sonho se desfaçam

e as esperanças morram todas nessa hora!

 

Acorda!

ainda que o caminho a percorrer te espante

e o peso da obra a realizar te esmague!

 

Ainda que acordar seja

morrer depois aos poucos, em cada momento,

dolorosamente

 

Poema de Joaquim Namorado [1914 - 1986] in Agora, 1945

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publicado às 18:14


#1974 - Poema de Bhartrihari

por Carlos Pereira \foleirices, em 16.04.16

Neste vão e flutuante mundo

O que resta a um homem?

Pode dedicar-se à oração

Mas se isso porventura não resulta

O melhor é refugiar-se entre os seios duma mulher

Acariciar as suas coxas quentes

E possuir o que entre elas se oculta

 

Poema de Bhartrihari, poeta indiano do séc. VII, traduzido por Jorge Sousa Braga

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publicado às 20:02


#1973 - The Man Booker International Prize 2016

por Carlos Pereira \foleirices, em 15.04.16

 

 

José Eduardo Agualusa na shortlist do Man Booker International

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publicado às 14:05


#1972 - TESTAMENTO

por Carlos Pereira \foleirices, em 14.04.16

EWA LIPSKA

 

TESTAMENTO

 

Após a morte de Deus

abriremos o testamento

para saber

a quem pertence o mundo

e aquela grande armadilha

de homens.

 

Poema de Ewa Lipska

 

 

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publicado às 22:44


#1971 - AZULIANTE

por Carlos Pereira \foleirices, em 14.04.16

ANTÓNIO JOSÉ FORTE

 

AZULIANTE

 

Este poema
começa com um homem de tronco nu
à sua mesa de trabalho    e hiante
a esta hora em que de oriente a ocidente
se acendem lâmpadas trémulas e bárbaras e ferozes
e o mar é o teu nome    a esta hora pétala a pétala
em que subirei de avião para ir beijar-te os olhos
e    ver no meio do deserto    o único
o magnífico devorador de rosas a comer um pão
enquanto do Oceano resta apenas
o silêncio de uma lágrima caindo nos joelhos de uma criança
Espera-me onde um nome há no Ar escrito com saliva azul
com raiva azul
como a urina violenta dos amantes
com a sua flor azul à superfície onde crepita a morte

Choverá muito    eu sei choverá    muito
e não porei uma pedra branca sobre o assunto digo
sobre o tremor de terra em que tu danças
na tua roda de cigarros cada vez mais depressa
        cada vez mais depressa
e lento o peixe de plumas de águia letra a letra
dá a volta ao mundo dos teus olhos
enquanto a dentadura cintilante pronuncia o grande uivo
de oriente a ocidente

Certas palavras muito duras quando a noite cai
não devem ter outra origem sabes tão bem como eu
porque agora a lava das lágrimas ao crepúsculo
são as rosas com que o poeta fala
à multidão em volta do crocodilo o animal repugnante
de costas para a luz     contra o grande uivo:
de oriente a ocidente a mesma flor podre     o estado
segredos de estado as razões de estado a segurança do estado
o terrorismo de estado os crimes contra o estado
e o equilíbrio do terror
de oriente a ocidente     meu amor     de oriente a ocidente

Digo não     Eu digo não
digo o teu nome que diz não

No entanto às portas da cidade e ao pé de cada árvore
à espera que tu chegues ou passes simplesmente
estão os grandes do império com o chapéu na mão
                                                                           para cumprimentar-te
Então passas tu com a lua no peito
dividindo distribuindo os alimentos

passas tu devagar atirando as moedas
que os dias não aceitam e gastamos depressa
noite    mil e uma noites de quem espera

Meu amor países pátrias têm todos um nome
de letras imundas que não é para escrever
Se ainda podes ouvir o búzio da infância
ouvirás com certeza o sinal de partir

No comboio multicor sobre carris ferozes e azuis
que há mil anos dá a volta ao mundo
sou eu o homem que viaja nu porque eu sou
o arco-íris e a rosa no trapézio
e tu toda a paisagem que atravesso
como se fosse de bicicleta
como se fosse sílaba a sílaba
a primeira frase sobre a terra

tu com as tuas luvas de amianto ao lado do vulcão
com a tua máscara de olhar a aurora boreal
de me olhares para sempre nua    eu a tempestade
de coração a coração
Roda sórdida da razão cínica e canto de galos
depenados vivos que cantam nos intervalos da morte
no meu livro de horas deste século
está escrito que o homem livre fará o seu aparecimento
sob a forma de um cometa de cauda fascinante
que arrastará os amorosos até ao centro do mundo
donde partirão na rosa-dos-ventos    e este será o sinal

 

Poema de António José Forte [1931-1988]

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publicado às 22:33


#1970 - O embrulho vermelho

por Carlos Pereira \foleirices, em 14.04.16

 Jean Cocteau

 

O EMBRULHO VERMELHO

 

O meu sangue transformou-se em tinta. Era preciso impedir a todo o custo este nojo. Envenenei-me até aos ossos. Cantava no escuro e agora é essa mesma canção que me assusta. Melhor ainda: estou leproso. Conhecem essas manchas de bolor que simulam perfis? Não sei qual o encanto da lepra que engana o mundo e lhe permite beijar-me. Tanto pior para ele! Já não me diz respeito. Só mostrei feridas. Fala-se em fantasia fraciosa: culpa minha. É loucura expor-nos inutilmente. 

 

A minha desordem amontoa-se até ao céu. Os que eu amava estavam ligados ao céu por um elástico. Virava a cabeça... já ali não estavam.

 

De manhã debruço-me, debruço-me e deixo-me cair. Caio de cansaço, de dor, de sono. Sou inculto, nulo. Não conheço nenhum número, nenhuma data, nenhum nome de rio, nenhuma língua, viva ou morta. Tenho zero em história e em geografia. Sem alguns milagres corriam comigo. Para mais, roubei os documentos a um certo J. C. nascido em M. L..., dia..., morto aos dezoito anos, depois de uma brilhante carreira poética.

 

Esta cabeleira, este sistema nervoso mal implantados, esta França, esta terra, não são meus. Repugnam-me. De noite dispo-os em sonhos.

 

Larguei o embrulho. Que me prendam, que me linchem. Entenda quem puder: Sou uma mentira que diz sempre a verdade.

 

Texto de Jean Cocteau [1889-1963], poeta, romancista, cineasta, designer, dramaturgo, actor, e encenador de teatro francês

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publicado às 19:48


#1969 - A miséria das palavras

por Carlos Pereira \foleirices, em 14.04.16

 Jorge de Sena

 

A MISÉRIA DAS PALAVRAS

 

Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,

na liberdade.

 

Se a miséria e a pobreza

fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,

a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,

viria a liberdade por acréscimo,

sem palavras, sem gestos, sem delíquios.

 

Assim, apenas se fala do que se não fala,

apenas se vive do que não se vive,

apenas liberdade é uma miséria

sem nome, sem futuro, sem memória.

 

E a miséria é isso: não imaginar

o nome que transforma a ideia em coisa,

a coisa que transforma o ser em vida,

a vida que transforma a língua em algo mais

que o falar por falar.

 

Falem. Mas não comigo. E sobretudo

sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,

no silêncio que à linguagem faz

imaginar-se mais que o próprio mundo.

 

Poema de Jorge de Sena in "Antologia Poética" escrito em 5 de Agosto de 1962, edição Guimarães, Novembro de 2010

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publicado às 19:12

Investigação revela como são escondidas fortunas através de offshores, bancos e empresas fictícias. Putin é dos nomes citados

Uma gigante fuga de informação - 11,5 milhões de ficheiros - revela como chefes de Estado, políticos, criminosos, celebridades, multimilionários e estrelas do desporto usam paraísos fiscais (offshores) para "lavar dinheiro", esconder património e fugir aos impostos.

 

In "Diário de Notícias"

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publicado às 21:55


#1967 - To Helena

por Carlos Pereira \foleirices, em 03.04.16

 Ruy Belo

 

TO HELENA

 

Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente

A maneira mais triste de se estar contente

a de estar mais sozinho em meio de mais gente

de mais tarde saber alguma coisa antecipadamente

Emotiva atitude de quem age friamente

inalterável forma de ser sempre diferente

maneira mais complexa de viver mais

              simplesmente

de ser-se o mesmo sempre e ser surpreendente

de estar num sítio tanto mais se mais ausente

e mais ausente estar se mais presente

de mais perto se estar se mais distante

de sentir mais o frio em tempo quente

O modo mais saudável de se estar doente

de ser verdadeiro e revelar-se que se mente

de mentir muito verdadeiramente

de dizer a verdade falsamente

de se mostrar profundo superficialmente

de ser-se o mais real sendo aparente

de menos agredir mais agressivamente

de ser-se singular se mais corrente

e mais contraditório quanto mais coerente

A vida enviesada para ir-se em frente

a treda actuação de quem actua lealmente

e é tão impassível como comovente

O modo mais precário de se ser mais permanente

de tentar tanto mais quanto menos se tente

de ser pacífico e ao mesmo tempo combatente

de estar mais no passado se mais no presente

de não se ter ninguém e ter em cada homem um

              parente

de ser tão insensível como quem mais sente

de melhor se curvar se altivamente

de perder a cabeça mas serenamente

de tudo perdor e todos justiçar dente por dente

de tanto desisitir e de ser tão constante

de articular melhor sendo menos fluente

e fazer maior mal quando se está mais inocente

É sob aspecto frágil revelar-se resistente

é para interessar-se ser indiferente

Quando helena recusa é que consente

se  tão pouco perdoa é por ser indulgente

baixa os olhos se quer ser insolente

Ninguém é tão inconscientemente consciente

tão inconsequentemente consequente

Se em tantos dons abunda é por ser indigente

e só convence assim por não ser muito convincente

e melhor fundamenta o mais insubsistente

Acabo de inventar um novo advérbio: helenamente

O mar a terra o fumo a pedra simultaneamente

 

Poema de Ruy Belo in "O tempo das suaves raparigas e outros poemas de amor", edição 1402 da Assírio & Alvim, Julho de 2010

 

 

 

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publicado às 20:52


#1966 - Odes

por Carlos Pereira \foleirices, em 03.04.16

 FERNANDO PESSOA

 

Tirem-me os deuses

Em seu arbítrio

Superior e urdido às escondidas

O Amor, glória e riqueza.

 

Tirem, mas deixem-me,

Deixem-me apenas

A consciência lúcida e solene

Das coisas e dos seres.

 

Pouco me importa

Amor ou glória.

A riqueza é uim metal, a glória é um eco

E o amor uma sombra.

 

Poema de Ricardo Reis in "Odes", edição Ática, Abril de 1978

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publicado às 20:04


#1965 - Pieter Bourke & Lisa Gerrard - The Insider - Sacrifice

por Carlos Pereira \foleirices, em 03.04.16

 

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publicado às 19:52


#1964 - Retrato

por Carlos Pereira \foleirices, em 03.04.16

 Eugénio de Andrade

 

RETRATO

 

No teu rosto começa a madrugada.

Luz abrindo,

de rosa em rosa,

transparente e molhada.

 

Melodia

distante mas segura;

irrompendo da terra,

quente, redonda, madura.

 

Mar imenso,

praia deserta, horizontal e calma.

Sabor agreste.

Rosto da minha alma.

 

Poema de Eugénio de Andrade in "Os amantes sem dinheiro" [1947-1949], Edições Limiar, Dezembro 1980

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publicado às 19:40


#1963 - Tudo-Nada

por Carlos Pereira \foleirices, em 03.04.16

 JOSÉ RÉGIO

 

TUDO-NADA

 

Passai!, belas carruagens brasonadas,

Forradas de alcatifas e de roubos!

Passai!, carroças trôpegas! e bobos

Com as fardas e as farsas desbotadas...!

 

Passai!, clarões, clarins, tinir de espadas,

Arruaças de lobos contra lobos!

Passai!, gentis idílios!, vãos arroubos!,

Êxtases vis nos pátios das escadas!

 

Passai!, grenhas e caspa de profetas,

E doces ignomínias de poetas...!,

Almas em lira e corações em escudo.

 

Passa!... - No mar de gelo encalha o barco;

Lá longe, o charco sonha... e cheira a charco;

Lá em cima, há um céu crivado de astros, mudo.

 

Poema de José Régio in "Cântico Negro", edições Quasi, Setembro 2005

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publicado às 18:38


#1962 - 2002 Memoryhouse - Max Richter

por Carlos Pereira \foleirices, em 03.04.16

 

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publicado às 18:22


#1961 - Em memória de Gato Barbieri [1932-2016]

por Carlos Pereira \foleirices, em 03.04.16

 

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publicado às 18:15


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