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Jorge de Sena
PURIFICAÇÃO DA UNIDADE
Não procures o que é efémero...;
não procures o que é Eterno,
tu não podes saber, tu não chegas para saber
o que é ou não é eterno.
Não procures senão o silêncio fechado,
recolhido e morno,
e começarás sentindo uma frescura que desce de cima
e te há-de começar a encher...
como a água do alto do abismo que vai cobrindo
e em cujas pedras se te entalaram os pés.
Deixa a água passar para cima da tua cabeça,
deixa-a subir bem,
não estertores,
não penses que te afogas!
... e então te desprenderás
e subirás na flutuação com ela,
há vácuo, em ti, suficiente
para flutuares com ela.
O silêncio, o silêncio fechado, recolhido e morno,
descerá do alto... ah mas não te enganes
porque ele não é Deus! Não é Deus!
É somente um resquício,
um sopro, um suor de eternidade,
de eternidade que não é de tempo,
de eternidade que é só altura,
e só diferença de mundos!... O banho
em que te banhas sem ouvir...
ah mas não te enganes que ele não é Deus,
a carne te complica,
a matéria te envolve,
tu não terás uma alma que te fuja, uma alma tua
e a Presença que ficará depois
esse sim ah mas não te enganes: não é Deus.
Tu não podes sentir, não podes ver,
é lon ge, é alto, é fora,
tudo o que ouvires é engano,
engano dos teus ouvidos materiais,
odiosos, desprezíveis...
O banho em que te banhas
de silêncio recolhido e morno,
deixa-te cobrir e flutuar,
os sons ali não se propagam,
a luz ali não se propaga,
a carna, lá, não vibra,
a música que ouves não toca em parte alguma...
ah mas não te enganes,
a vida rodeia-te, rodeia-te de ser,
e a água cai de longe, do alto, de fora,
um dia só depois,
um dia só depois, como e talvez,
ah mas não te enganes!,
o banho aceite recolhido e morno
e a frescura dentro ah não te enganes...
e NÃO O ENGANES: tu não chegas
e le, ele, não é ainda ele o próprio Deus!
POEMA ESCRITO POR JORGE DE SENA EM 20 DE AGOSTO DE 1940 DEDICADO AO POETA RUY CINATTI, RETIRADO DO LIVRO "ANTOLOGIA POÉTICA" EDITADO POR GUIMARÃES EM NOVEMBRO DE 2010