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ELOGIO DA DIALÉCTICA
A injustiça avança hoje a passo firme.
Os tiranos fazem planos para dez mil anos.
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são.
Nenhuma voz além da dos que mandam.
E em todos os mercados proclama a exploração: isto é apenas o meu começo.
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem:
Aquilo que nós queremos nunca nunca mais o alcançaremos.
Quem ainda está vivo nunca diga: nunca.
O que é seguro não é seguro.
As coisas não continuarão a ser como são.
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados.
Quem pois ousa dizer: nunca?
De quem depende que a opressão prossiga? De nós.
De quem depende que ela acabe? Também de nós.
O que é esmagado, que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha?
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.
E nunca será: ainda hoje.
Poema de Bertolt Brecht in "Poemas", Editorial Presença, Colecção Forma
Eu sou um construtor
que ama a clara simetria dos terraços
e em cada poema procuro construir a flexível identidade
de uma possível habitação
Mas sem a alta coluna do teu corpo
não poderia iniciar esta obra diária
A lâmpada solar do teu rosto ilumina a minha mão incerta
e eu vejo o horizonte da minha respiração
e reúno as pedras de uma casa sempre incompleta
mas sempre aberta às artérias do sol
às veias do vento
Em torno dessa imaginária casa verdadeira
há um jardim de plácidas árvores aromáticas
e corre um ribeiro com seus anéis cintilantes e voluptuosos
Um monte de um azul claro como o dorso de um réptil
dá-nos a fronte de aérea tranquilidade
de sermos tão da terra como uma palmeira ou um plátano
Termos assim a pacífica ciência de habitar
e o azul pertence-nos porque o rspiramos
Poema de António Ramos Rosa in "O teu rosto"- edição Pedra Formosa, Edições, Lda, Março 1994
"Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos - o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.
Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma - só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de Jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontâneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas féria fez a viagem ao Oriente de onde resultou o "Opiário". Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?...
Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que sùbitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de "ténue" à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoàvelmente mas com lapsos como dizer "eu próprio" em vez de "eu mesmo", etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado.
O difícil para mim é escrever a prosa de Reis - ainda inédita - ou de Campos. A simulação é mais fácil, até poruqe é mais espontânea, em verso."
(Excerto de uma carta de Fernando Pessoa dirigida a Adolfo Casais Monteiro, sobre a origem dos seus heterónimos. Publicada na revista "Presença", n.º 49, Junho, 1937).
Este texto foi retirado do livro "Poesias de Álvaro de Campos", Edições Ática, Março de 1980
O BOI DA PACIÊNCIA
Noite dos limites e das esquinas nos ombros
noite por de mais aguentada com filisofia a mais
que faz o boi da paciência aqui?
que fazemos nós aqui?
este espectáculo que não vem anunciado
todos os dias cumprido com as leis do diabo
todos os dias metido pelos olhos adentro
numa evidência que nos cega
até quando?
Era tempo de começar a fazer qualquer coisa
os meus nervos estão presos na encruzilhada
e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante
e a minha vida não é mais que um teorema
por de mais sabido!
Na pobreza do meu caderno
como inscrever este céu que suspeito
como amortecer um pouco a vertigem desta órbita
e todo o entusiasmo destas mãos de universo
cuja carícia é um deslizar de estrelas?
Há uma casa que me espera
para uma festa de irmãos
há toda esta noite a negar que me esperam
e estes rostos de insónia
e o martelar opaco num muro de papel
e o arranhar persistente duma pena implacável
e a surpresa subornada pela rotina
e o muro destrutível destruindo as nossas vidas
e o marcar passo à frente deste muro
e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro
até quando? até quando?
Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros: Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor
e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim e ao cabo
recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!
Quereria gritar: Dêem-me árvores para um novo recomeço!
Aproximem-me a natureza para que a cheire!
Desertem-me este quarto onde me perco!
Deixem-me livre por um momento em qualquer parte
para uma meditação mais natural e fecunda
que me afogue o sangue!
Recomeçar!
Mas originalmente com uma nova respiração
que me limpe o sangue deste polvo de detritos
que eu sinta os pulmões como duas velas pandas
e que eu diga em nome dos mortos e dos vivos
em nome do sofrimento e da felicidade
em nome dos animais e dos utensílios criadores
em nome de todas as vidas sacrificadas
em nome dos sonhos
em nome das colheitas em nome das raízes
em nome dos países em ome das crianças
em nome da paz
que a vida vale a pena que ela é a nossa medida
que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias
que o reino da bondade dos olhos dos poetas
vai começar na terra sobre o horror e a miséria
que o nosso coração se deve engrandecer
por ser tamanho de todas as esperanças
e tão claro com os olhos das crianças
e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele
Mas o homenzinho diário recomeça
no seu giro de desencontros
A fadiga substituiu-lhe o coração
as cores da inércia giram-lhe nos olhos
Um quarto de aluguer
Como preservar este amor
ostentando-o na sombra?
Somos colegas forçados
Os mais simples são os melhores
Nos seus limites conservam a humanidade
Mas este sedento lúcido e implacável
familiar do absurdo que o envolve
com uma vida de relógio a funcionar
e um mapa da terra com rios verdadeiros
correndo-lhe na cabeça
como poderá suportar viver na contenção total
na recusa permanente a este absurdo vivo?
Ó boi da paciência que fazes tu aqui?
Quis tornar-te amável ser teu familiar
fabriquei projectos com teus cornos
lambi o teu focinho acariciei-te em vão
A tua marcha lenta enerva-me e satura-me
as constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido!
Ó boi da paciência sê meu amigo!
Poema de António Ramos Rosa (O Grito Claro, 1958)