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"Estamos no dia seguinte de qualquer coisa. Estaremos na véspera de qualquer coisa?"
CHARLES MORICE, 1905
UM CAMPO BATIDO PELA BRISA
A tua nudez inquieta-me.
Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.
A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.
Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.
Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.
Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.
Fernando Assis Pacheco, in “A Musa Irregular”
“Uma coisa parecia certa”: assim começa Teu Rosto Será o Último, vencedor do Prêmio Leya 2011, que, além do valor monetário (100.000€, “quantia simpática”, segundo o autor) foi vitória pessoal do estreante português João Ricardo Pedro: há 2 anos, foi demitido e decidiu escrever a obra que em Portugal vendeu mais de 30 mil exemplares em 6 meses.
Pois o início, “Uma coisa parecia certa”, lembra que nada é mais incerto que uma coisa que parecia certa. E a pseudocerteza anuncia uma metáfora possível para as 207 páginas por ler: a busca do sentido de estar no mundo e para o que se passou. Achar algo que pareça certo, motivos sólidos para acordar de manhã ou para um pneu furado. Busca feita sobretudo na memória. Lembrar, filtrar, esquecer: dar ao passado o verniz da lógica. Pinçar da memória capítulos para narrar-se com algo que cheire a verossímil.
Todos fazem isso. João Ricardo o faz no livro que abre a coleção Novíssimos da Leya. Mas a memória onde pesca sentidos não é a sua. É da família do Dr. Augusto Machado e de Portugal dos anos 30 à beira do século 21.
Seguro e irônico (“pressentindo que isso de golpes era coisa para levar o seu tempo”, sobre a rural dona de casa pensando no almoço para os homens que debatem política no 25 de abril de 1974), em vez de narrar três gerações da família do Dr. Augusto, o autor pendura memórias quase aleatórias, retratos de personagens em diversas épocas que, ao se revelarem, revelam brechas entre si num texto sem medo de lacunas. Fendas para o leitor embutir sentidos ou intrigar-se com o pai obrigando os filhos a comer o próprio gato ou com uma misteriosa carta pela metade.
Entre incertezas e figuras errantes em busca do sentido que não há ‒ o jovem Dr. Augusto que parte, sem mais, para o interior; Celestino, forasteiro que ele acolhe; o filho do Doutor que vai e vem de guerras coloniais mesmo após o fim delas; e o neto Duarte perdido entre partituras ‒, duas coisas são certas: a meio do livro, metáfora sem-querer-querendo do sem sentido, ou como se o narrador fosse errante também, a narração do livro perde rumo. A prosa segura enche-se de maneirismos. Enciclopedismo e listagens se acumulam e tipos curiosos (oboísta sem uma orelha, argentino dado a calças justas e anéis, pintora misteriosa...) brotam e somem como se o autor quisesse exibir todas suas ideias.
Não que haja recurso certo e errado. É que as firulas não deram efeito estético, nem simbólico, nem estranhamento ao todo. Mas cabe lembrar: é o primeiro livro dele. Só que o belo início subiu o próprio sarrafo. Fez esquecer que é sim estreia e, como tal, sujeita à gana juvenil (mesmo aos 39 anos) de provar numa só vez tudo o que sabe fazer, garoto com 15 minutos para furar a peneira do time de futebol. Em paralelo, a trama de nós soltos se desfaz. O livro foca em cenas de Duarte, com Portugal de fundo. Mas mantém o tom memória-seletiva de quem elege fatos para se narrar e ver sentido nos próprios gestos.
No caso de Duarte, de outros personagens ou de Portugal, ao fim, parece que o único sentido possível é dado pelo simplório Celestino. O sujeito estropiado que chega à vila e, indagado sobre seu estado, diz: “azares da vida”.
Eram sete e meia.
O mais tarde que podias entrar era até às oito
e depois das oito tornava-se reparado.
Havia ordem no mundo
e meia-hora para nós,
meia-hora que não foi como queríamos
meia-hora em que cada um de nós nos prejudicava
habituados que estávamos a não nos termos visto nunca.
Levámos meia-hora a combinar outra hora para nós
meia-hora que afinal só começou depois de terminada
ao despedirmo-nos até à vista.
E até tornar a ver-te
eu não me senti, nem a fome, nem a sede
nem outra vontade que tu,
fiz como os poetas
que apagam a realidade
para lhe pôr outra melhor por cima.
(Inédito)
Poema de Almada Negreiros in Revista Ler n.º 50, 2001
"Não sou um homem moral (embora tente manter a minha consciência em equilíbrio) nem um sábio; não sou nem um esteta nem um filósofo. Sou apenas um homem nervoso, por força das circunstâncias e dos meus próprios actos"
Joseph Brodsky, A marca de água
Até que o pranto acabe e o cintilar
dos pássaroa sossegue
o ruído do chão será a tua música
as ventanias rústicas
o mar do teu naufrágio.
Austos, arbustos, a flora adocicada
dos Vergeis - ó temporal memória campesina -
seguem-te o andar , deambulando.
É no oco que incide o bolor lento
das mínimas corolas - os anos em permuta.
Se queres ouvir o sol terás de erguer os braços
e atacar o tempo nas ameias do canto.
Ambos seguindo, idade, identidade
- a terra grita, o chão frente
e entretanto:
Poema de Armando Silva Carvalho - OBRA POÉTICA (1965-1995) - Edições Afrontamento, julho de 1998
O livro “Como se desenha uma casa”, do escritor Manuel António Pina, recentemente falecido, é o vencedor da 8ª edição do Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes, organizado pelo Município de Amarante.
A obra, editada pela Assírio & Alvim, foi escolhida de entre os 166 livros, de cento e cinquenta e nove autores, apresentados a concurso, tendo o júri sido constituído pelos escritores Abel Barros Batista, António José Queiroz, João Paulo Sousa, Joana Matos Frias e Luís Adriano Carlos.
Com entrega marcada para 15 de dezembro, no auditório da Biblioteca Municipal Albano Sardoeira, o Prémio Teixeira de Pascoaes, de periodicidade bienal, foi instituído em 1997, aquando do 120º aniversário do nascimento do poeta.
OS POBREZINHOS
Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros. Na minha família os animais domésticos eram os pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana, buscar com um sorriso agradecido a ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços para poderem ser calçados pelos donos, de preferência rotos para poderem vestir camisas velhas que se salvavam desse modo de um destino natural de esfregões, de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina) deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos e sobretudo manterem-se orgulhosamente fiéis à tia a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder ofendido e soberbo a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria
- Eu não sou o seu pobre eu sou o pobre da menina Teresinha.
O plural de pobre não era pobres. O plural de pobre era esta gente. No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes e deslocavam-se piedosamente ao sítio em que os seus animais domésticos habitavam, isto é um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à estrada militar, a fim de distribuírem numa pompa de reis magos peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas alvoraçados e gratos e as minhas tias preveniam-me logo enxotando-os com as costas da mão
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer moedas aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
( - Esta gente coitada não tem a noção do dinheiro)
de forma deletéria e irresponsável. O pobre da minha tia Carlota, por exemplo,foi proibido de entrar em casa dos meus avós porque quando ela lhe meteu dez tostões na palma, recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico
- Agora veja lá não gaste tudo em vinho
o atrevido lhe respondeu malcriadissimo
- Não minha senhora vou comprar um Alfa-Romeo.
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais que um destino, era uma espécie de vocação como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o Padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O Padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e a partir da altura em que me revelaram esse milagre tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse
- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar
e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre Cruz e a Sãozinha eram casados tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado Almanaque da Sãozinha, se narravam em comunhão de bens os milagres de ambos, que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos de incenso.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me.
E creio que foi por essa época que principiei a olhar com afecto crescente uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis.
Crónica de António Lobo Antunes in "Livro de Crónicas", editado por Dom Quixote, 1998
No lugar sagrado,
na casa feita de aurora,
na casa feita de crepúsculo,
na casa feita de nuvem sombria,
na casa feita de bruma e chuva, de gafanhotos, de pólen,
onde a negra bruma cerra a entrada
- senda aonde o arco-íris leva -
onde os raios rasgam o alto,
ó viril divindade!
Com teus mocassins de nuvens negras, vem até nós,
com calças e camisa e cabeleira de nuvens negras, vem até nós,
com o pensamento envolto em nuvens negras, vem até nós,
com o sombrio trovão por cima, vem voando até nós,
com a nuvem formada aos pés, vem voando até nós,
com a obscuridade formada pela nuvem negra que está sobre a tua
cabeça, voando vem até nós,
com os raios cruzados ribombando ao alto sobre a cabeça,
com o arco-íris suspenso ao alto sobre a cabeça, voando vem até nós,
com a obscuridade formada nas asas por nuvens negras,
com a longíqua obscuridade formada na ponta das asas por chuva
e bruma, voando vem até nós,
com os raios cruzados, com o arco-íris suspenso ao alto sobre a ponta
das asas, voando vem até nós,
com a obscuridade próxima formada por nuvens negras, por chuva
e bruma, vem até nós,
com a obscuridade da terra, vem até nós.
Que flutue a espuma à tona da água sobre as raízes do trigo alto.
Em tua honra preparei um fogo que fumega,
em tua honra consumei o sacrifício.
Oh, aquece-me os pés,
aquece-me o corpo, os membros, o espírito, a voz.
Afasta o encantamento, aquece-me, favorece-me, afasta o encantamento.
Arrancaste-o de mim, levaste-o para longe, para longe de mim.
E agora curo-me, recupero a força, recupero a frescura,
a frescura sobe-me à cabeça, a força.
Movo-me com movimentos novos, ouço com ouvidos novos, olho com olhos novos.
Caminho, livre do tormento caminho, com uma luz no coração caminho, felizmente caminho.
Quero abundância de nuvens sombrias,
quero abundância de erva,
abundância de polén,
abundância de orvalho.
Que venha contigo até aos confins da terra o belo fermento branco,
que venham até aos confins da terra o belo fermento amarelo, o belo fermento azul,
o belo fermento de todas as espécies,
as plantas de todas as espécies,
os bens de todas as espécies,
as jóias de todas as espécies,
que venham contigo até aos confins da terra.
Que venham contigo à frente, atrás, por baixo, por cima, à volta, que venham contigo até aos confins da terra.
Que se consume a obra.
Avanço dentro da beleza,
com a beleza à minha frente, sim, eu avanço,
com a beleza por trás das minhas costas, sim, eu avanço,
com a beleza por cima de mim e à minha volta, sim, eu avanço.
Em plena beleza tudo se consuma, sim, tudo se consuma, sim, eu avanço.
América do Norte, Navajos - Versão de Herberto Helder
Jérome Ferrari vence o Prémio Literário GONCOURT 2012 com o romance "Le Sermon sur la chute de Rome" (Actes Sud), de acordo com a edição online do jornal "Le Monde"