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Há palavras que
fogem do livro -
não são daquela história -
na fuga
tropeçam num hífen
e estatelam-se no chão.
Um passo... dois passos... três passos.
mentalmente contas a distância que te separa do invisível.
queres penetrar aquele círculo
iluminado da parede;
que te inquieta,
que te seduz,
que te hipnotiza.
queres saber de que matéria
é feito o invisível e
ousas avançar.
um... dois... três passos em frente.
o primeiro, tímido
os outros dois, resolutos.
e perdes-te no meio de zumbidos,
cores psicadélicas
tonturas
gravinhas que te prendem os braços
bocas que te incendeiam a boca
risos que se agarram à pele
fria
quente
húmida
cavalos sem crinas com asas brancas de
figos
uvas
e cerejas
no dorso, bandeiras de fogo
e um rio sem margens
infinito
transparente
com uma luz
muitas luzes mais ao fundo
e um barco
pequeno
sereno
à espera de continuar a viagem.
As folhas dançam
em voos
sinuosos
elegantes
leves,
tomando novas cores
novas formas
e caem
silenciosamente
no chão
O novo romance de Paul Auster, publicado nos Estados Unidos em Agosto, está entre os lançamentos agendados pela ASA para Novembro. Homem na Escuridão é a história de August Brill, crítico literário reformado de 72 anos, que recupera de um acidente de automóvel em casa da filha, em Vermont, enquanto conta histórias para tentar esquecer traumas recentes, como a morte da mulher. «E se a América não estivesse em guerra com o Iraque mas consigo própria? Nesta América, as Torres Gémeas não caíram e as eleições presidenciais de 2000 conduziram à secessão, com estado após estado a abandonar a união e uma sangrenta guerra civil a instalar-se», revela a editora portuguesa.
Preparava-me para, como todos os dias, chafurdar nas notícias dos jornais [o trabalho que dá mantermo-nos próximos da realidade tentando não nos afundarmos nela, passando por ela como aquela actriz de "rostinho estreito, friorento" de Cesário atravessando "covas, entulhos, lamaçais, depressa,/ com seus pezinhos rápidos, de cabra"!], preparava-me eu, dizia, para fazer pela vida quando dei com a morte, ou a sua sombra, num poema de Szymborska.
"Parece que nada mudou, /e no entanto mudou./ Que nada se mexeu,/ mas tudo mudou de lugar (…) /Ouvem-se passos nas escadas,/ mas não são 'esses'". E tudo, jornais, notícias, e aquilo que, à falta de melhor, chamamos vida, perdeu sentido. Talvez a vida seja outra coisa, menos barulhenta e mais solitária, mais fria, mais transparente, mais vasta. "Morrer não é coisa que se faça a um gato" nem a ninguém; "que pode fazer um gato/ num apartamento vazio?". Quando, amanhã, a realidade, ou lá o que é, voltar (porque, como os mortos, a realidade volta sempre), também eu irei ter com ela "com patas ofendidas", e sem alegria nem queixas. Pelo menos ao princípio.
A vida assim despida
exposta.
Mostra as chagas
cicatrizes antigas.
Já não importa
o pudor
a vergonha
o dedo apontado como seta venenosa.
Apenas a glória do bater das palmas e
a importância de ganhar
duzentos e cinquenta mil euros.
Era Primavera, e as árvores voaram para os seus pássaros.
Paul Celan - Arte Poética (O meridiano e outros textos), edições cotovia, 1996.
Foto de João Azevedo
Encontrei algures o teu nome
gravado a fogo na
tábua dos meus sonhos.
Da lua eu a via
sentada na cadeira,
braços partidos e
no forro
pequenas manchas descreviam
a matéria dos sonhos
em forma de vírgulas,
de espantos,
de espasmos
pendurados em cruzetas
onde baloiçavam
saquinhos de naftalina.
Cristovão Tezza nasceu em Lages, Santa Catarina, em 1952. Em junho de 1959, morreu seu pai; dois anos depois, a família se mudou para Curitiba, Paraná. Em 1988 publicou Trapo (Brasiliense), livro que tornou seu nome conhecido nacionalmente. Nos dez anos seguintes, publicou os romances Aventuras provisórias (Prêmio Petrobrás de Literatura), Juliano pavollini, A suavidade do vento, O fantasma da infância e Uma noite em Curitiba. Em 1998, seu romance Breve espaço entre cor e sombra (Rocco) foi contemplado com o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional (melhor romance do ano); e O fotógrafo (Rocco), publicado em 2004, recebeu no ano seguinte o Prêmio da Academia Brasileira de Letras de melhor romance do ano e o Prêmio Bravo! de melhor obra. Em dezembro de 2007, o romance O filho eternorecebeu o Prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor obra de ficção do ano. O livro foi lançado (junho de 2008) na Itália pela editora Sperling & Kupfer (tradução de Maria Baiocchi), e já tem edições contratadas na França, Espanha e Portugal. |
Consultar o site http://www.cristovaotezza.com.br/
Olho o mar e vejo:
pequenos montes em movimento
de prata, de verde, de azul
que sopram esmeraldas
escondidas em conchas
lançadas na areia da
minha praia.
Aluno mata professor durante aula
Um professor chinês foi morto por um aluno em Pequim, no terceiro homicídio do género registado na China em menos de um mês, disse a agência noticiosa oficial Nova China.
Professor matou aluno que não fez os deveres
Um professor de Matemática agrediu um aluno de 11 anos porque não tinha feito os trabalhos de casa, em Alexandria, no Egipto. Foi detido e acusado de homicídio, pois a criança acabou por morrer no hospital.
É arrepiante ouvir dizer, com grande serenidade, que a Inspecção das Finanças deste País democrático, leu e-mails de centenas de funcionários, sem o consentimento destes, só para averiguar eventuais fugas de informação. E tudo fez sem qualquer consequência.
George Orwell preconizou, em 1984, um Mundo em que a democracia desaparecia, dando lugar a um governo totalitário que controlava a vida dos cidadãos, através de câmaras de televisão omnipresentes. Hoje em dia, uma das grandes preocupações é a invasão indiscriminada da privacidade. Neste admirável Mundo novo, o direito à privacidade não pode ser, cada vez mais, uma mera quimera em que a individualidade é devassada com um toque de tecla. A Inspecção das Finanças reduziu a privacidade dos seus funcionários a um código de barras, pondo em causa a sua dignidade e individualidade. Só os Estados totalitários recusam o direito à privacidade porque convivem mal com a dignidade da pessoa humana.
Diz a Lei, nos arts. 80º do Código Civil e 26º da Constituição, que todos devem guardar dever de reserva quanto à intimidade da vida privada. O carácter universal destes direitos vincula todas as entidades públicas e privadas que estão sujeitas a critérios de ponderação proporcional e de concordância prática, em caso de conflito, com outros direitos fundamentais. São direitos jurídico-constitucionalmente protegidos. Não podem ser violados de forma gratuita, nem escancarados para averiguar fugas de informação. Os e-mails dos funcionários das Finanças só poderiam ser abertos e lidos de duas maneiras: por via de um inquérito e através de prévia autorização judicial, como sucede nas escutas telefónicas, ou através de autorização do lesado que prescinda desse direito e que consinta essa invasão.
Este oráculo de que se serviu a Inspecção das Finanças espelha a tendência cada vez maior de os Governos, em nome de qualquer coisa, arranjarem meios (i)legais para invadirem a privacidade do cidadão. A devassa da privacidade destes funcionários,que ficaram ética e moralmente despidos, além de ser intimidatória, não respeitou a Lei nem se preocupou com as regras de ponderação proporcional e de concordância prática, face à ofensa generalizada que foi cometida aos seus direitos, liberdades e garantias.
De facto as nossas vidas (virtuais) estão ao sabor de um qualquer clique. A mesquinhez do argumento, para a devassa e o abuso cometido, exige uma investigação para que a Inspecção das Finanças aprenda a lição.
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Não está muito distante o dia em que aos recém-nascidos seja colocado no interior do corpo um chip que controle todas as suas futuras actividades (premonição minha)
Filha de Amorim diz que evasão fiscal é normal
Normal era que o preço declarado fosse inferior ao real." Este é um dos argumentos apresentados pela defesa de Paula Amorim no processo-crime em que é acusada, juntamente com Filomena Pinto da Costa, de fraude fiscal. A filha do comendador Américo Amorim terá vendido um palacete à mulher do presidente do FC Porto por um preço bastante superior ao que foi declarado.
In Correio da Manhã
Agora, que os canhões emudeceram e os bandos fascistas recolheram a penates, a hierarquia católica usa armas de beatificação maciça contra a "podridão da legislação laica" que tenta identificar milhares de vítimas do franquismo atiradas para valas comuns e dar-lhes sepultura condigna. No ano passado foram 498 novos "beatos", este ano 800 e estão na calha mais 2000. Todos "assassinados [pelos republicanos, entenda-se, pois os "curas rojos" e os católicos assassinados por Franco, durante e depois da Guerra Civil, não têm direito aos altares] pelo ódio à Fé". Ordeiramente, Franco, Mola, Sanjurjo e Queipo de Lhano esperam na fila pela sua vez.
Fila à porta do Paraíso
Em 1936, logo após a rebelião de Franco, a Igreja Católica espanhola correu a abençoar as matanças de republicanos: "Não há forma de pacificação senão a das armas; é preciso extirpar a podridão da legislação laica" (cardeal Goma y Toma, primaz de Espanha); "não há perdão para os destruidores de igrejas (…), que a sua semente seja esmagada" (arcebispo de Burgos); "benditos sejam os canhões se deles florescer o Evangelho" (Diaz Gomara, bispo de Cartagena).
Um traço por baixo da palavra
que a sustenta
mas a interrompe
destaca-a
porque a quer matar.
Durante os últimos vinte e cinco anos da sua vida de estudo, o eminente homem de ciência e filósofo Emanuel Swedenborg (1688-1722) fixou residência em Londres. Como os ingleses são taciturnos, ganho o hábito quotidiano de falar com demónios e anjos. O Senhor permitiu-lhe vivistar as regiões ultraterrenas e partir com os seus habitantes. Cristo tinha dito que as almas, para entrarem no Céu, devem ser justas; Swedenborg acrescentou que devem ser inteligentes e depois Blake estipularia que fossem artísticas. Os Anjos de Swedenborg são as almas que escolheram o Céu. Podem prescindir das palavras; basta que um Anjo pense noutro para o ter junto dele. Duas pessoas que se amaram na Terra formam um único Anjo. O seu mundo está regido pelo amor; cada Anjo é um Céu. A sua forma é a de um ser humano perfeito; a do Céu é assim mesmo. Os Anjos podem olhar para o Norte, o Sul, o Leste e o Oeste; sempre hão-de olhar Deus cara a cara. São acima de tudo teólogos; o seu maior prazer é a prece e a discussão de problemas espirituais. As coisas da Terra são símbolos das coisas do Céu. O Sol corresponde à divindade. No Céu não existe o tempo; as aparências das coisas mudam segundo os estados de ânimo. Os trajes dos Anjos resplandecem segundo a sua inteligência. No Céu os ricos continuam a ser mais ricos do que os pobres, por estarem já habituados à riqueza. No Céu, os objectos, os móveis e as cidades são mais concretas e mais complexas que os da Terra; as cores mais variadas e claras. Os Anjos de origem inglesa tendem para a política; os judeus para o comércio de jóias; os Alemães trazem livros que consultam antes de qualquer resposta. Como os Muçulmanos estão acostumados à veneração de Maomé, Deus concedeu-lhes um Anjo que simula ser o Profeta. Os pobres de espírito e os ascetas estão excluídos dos prazeres do Paraíso porque os não compreenderiam.
In "O Livro dos Seres Imaginários, de Jorge Luís Borges, Editorial Teorema, Abril de 2005
A rua escorre até ao rio.
As margens são casas
pintadas de branco,
varandas,
vasos de sardinheiras
que perfumam roupas impúdicas
estendidas sobre cordas e
que habitam corpos com cheiros de
prazeres e mágoas.
Agustina Bessa-Luís
Dicionário Imperfeito
Guimarães Editores, 2008
Orhan Pamuk
Istambul - Memórias de uma cidade
Editorial Presença, Julho/Agosto 2008
No gesto suspensivo de um sobreiro,
o enforcado
Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.
Dele sobra o cajado.
Poema de Alexandre O' Neill, Poesias Completas, Assírio & Alvim, Edição 605, 2000
Com a quinta edição de O Arquipélago da Insónia (Publicações Dom Quixote) a chegar às livrarias, António Lobo Antunes, 66 anos, recebeu no ateliê onde escreve o «leitor» Gonçalo M. Tavares, 38 anos. Não se conheciam pessoalmente, mas acederam ao convite. Falar sobre literatura, deixando-se ouvir pela VISÃO. Deste encontro há-de resultar, dentro de dias, uma apresentação pública da nova obra por Rui Cardoso Martins e Gonçalo M. Tavares, assim o quis o próprio Lobo Antunes. Conversa solta à volta dos livros com a voz (quase) muda de uma jornalista em corpo presente.
ANTÓNIO LOBO ANTUNES: No princípio, fazia muitos planos, mas agora quando escrevo não tenho nada, absolutamente nada. As coisas aparecem-me e, quando está a correr bem, a mão fica feliz.
GONÇALO M. TAVARES: O que eu sinto é que há duas fases: essa fase do prazer e, depois, a fase dolorosa, que para mim significa sofrimento puro.
ALA: A parte das correcções é horrível. Eu corto, corto, corto… É como ser professor de português e ter que corrigir os pontos dos alunos. E, ainda por cima, pontos maus, porque as primeiras versões são de facto muito distantes daquilo que imaginávamos que o livro seria. Como aproximar tudo aquilo? Só através de correcções, correcções, correcções.
GMT: O António costuma cortar?
ALA: Eu sou mais de cortar. O Eça acrescentava e o Proust também, mas os escritores que cortam são mais frequentes do que aqueles que acrescentam.
GMT: Já era assim, nos primeiros livros?
ALA: Sempre fui assim. Andei um ano com o primeiro capítulo da Memória de Elefante. Estive agora a ver, nos manuscritos que lá tenho, a quantidade de livros que nunca foram adiante, falsas partidas. Mas depois de ter visto as várias versões da Guerra e Paz e, que se saiba, há 14 versões de A Morte de Ivan Ilitch… O Manuel da Fonseca estava sempre a dizer que ser espontâneo dá muito trabalho.
GMT: São necessárias cem versões para parecer que se escreve à primeira, não é? De qualquer modo, eu acho que há um momento a partir do qual se piora. Balzac falava muito nisso. Tira ponto, mete vírgula e, a certa altura, é preciso ir ao caixote do lixo à procura da primeira versão.
ALA: Aconteceu-me quando a Isabel [a filha mais nova] era pequenina. Estava de férias no Algarve, deitei tudo fora e, no dia seguinte, fui ao lixo procurar as folhas rasgadas no meio das cascas e da gordura. Naquela altura, deitava-me com o livro, sonhava com ele e, agora já não. Dantes também fazia planos.
GMT: O Arquipélago da Insónia não é nada de planos. O que me parece é que este livro clarifica a coisa, torna os outros mais claros. Como se os livros anteriores fossem uma floresta na qual, de vez em quando, vemos O Arquipélago da Insónia. Agora, sinto que chegámos a uma clareira e que é preciso um novo leitor. Aqui não se pode sair da frase que se está a ler. E isso é absolutamente novo.
ALA: O ponto é esse. As palavras são aquelas e não podem ser outras.
GMT: Muitas pessoas podem sentir dificuldade em ler porque há uma necessidade de referência.
(As pessoas procuram uma narrativa.)
GMT: Mas aqui nunca precisamos de pensar o que é que aconteceu, o que é que vai acontecer.
ALA: Não acho que os meus livros sejam difíceis, para mim são tão fáceis...
GMT: São fáceis e muito divertidos. Eu ri-me às gargalhadas.
ALA: Também dizem que os livros são tristes, mas o que é importante é o prazer da leitura. Não há nada melhor do que ler um livro. As obras de arte são como os tigres, não se devoram entre elas. Encontrar alguém com talento é uma felicidade, encontrar um livro bom é uma festa, uma alegria.
GMT: Gostava de contar uma história. Quando tinha 20 anos, enviei-lhe um manuscrito de um romance. Não se deve recordar, mas falou comigo ao telefone. Nessa altura, eu assinava com outro nome: Gonçalo Albuquerque Tavares.
ALA: Gonçalo Albuquerque Tavares. Lembro-me perfeitamente.
GMT: E gostou muito do livro. Recordo-me de terminar o telefonema a dizer: «Você é um escritor, não precisa de mim para nada, este livro está pronto para publicar, avance.» Quando desligámos, fiz um sapateado de alegria. Nunca cheguei a publicar esse livro, mas lembro-me da sua atenção e da sua disponibilidade para falar. Aos 20 anos, isso foi muito importante para mim.
ALA: Está a fazer de mim um velho.
GMT: Não… E acho que, apesar do seu conselho, fiz muito bem em só publicar aos 31 anos.
ALA: Lembro-me de falar à editora de um rapaz com uma grande margem de progressão, que era o que me interessava. Percebe-se que se trabalha… Quem quer escrever tem que escrever todos os dias. Porque este é um trabalho de disciplina. Claro que existe o talento. García Márquez, que é um grande narrador, dizia que o talento é como um berlinde na mão: ou se tem ou não se tem. Estava na América quando morreu o Paul Newman e, numa entrevista de arquivo, ouvi-o falar das pessoas que tinham talento natural e não trabalhavam.
GMT: A mim irrita-me o desperdício de tempo. Às vezes, apetece-me bater em algumas pessoas que tiveram a possibilidade de ler e não leram.
ALA: Não lê todos os dias como eu leio?
GMT: Leio todos os dias. Há dias perguntaram-me entre ler e escrever…
ALA: Ler dá mais prazer.
GMT: É uma necessidade brutal. O que sinto é que, por vezes, as pessoas desperdiçam dez anos sem dirigir o seu tempo. Há um enorme descontrolo do tempo.
ALA: É como aquelas pessoas que escrevem o primeiro livro aos 50 anos. Não se começa a escrever aos 50, escrever é algo que se constrói desde que se nasce. Desde que me conheço que sou assim.
(E publicar, é importante?)
ALA: Claro que sim. Vamos aprendendo com os livros publicados. Até porque eles estão dentro de nós.
(No caso do Gonçalo foi diferente, escreveu dezenas de livros que não publicou logo.)
GMT: Praticamente todos os que saíram até agora.
ALA: Não tentou sequer publicá-los?
GMT: Não. Para mim, era muito claro que a publicação, a partir de certa altura, seria uma coisa ruidosa.
ALA: Quem é que pensa que o pôs na Mondadori [editora espanhola, pertencente à Random House]? O Cláudio López é muito bom editor…
GMT: O Cláudio López percebe de literatura. Lê…
ALA: Que é uma coisa que os editores não fazem em Portugal.
GMT: Então, foi o António que me levou para a Mondadori…
ALA: Sim, não pense que foi a sua agente [risos].
GMT: Há coincidências engraçadas.
ALA: Não sabia?
GMT: Não, não sabia. Mas agradeço.
ALA: Eu é que tenho que lhe agradecer por escrever. Já há muito tempo que o Günter Grass tem direito de veto sobre os livros que a sua editora publica. Aquilo deve dar um trabalhão. Não tenho tempo para ler tudo, prefiro ler os livros de que gosto. Por exemplo, se eu alguma vez lia os 400 e tal originais candidatos ao Prémio Leya…
GMT: Isso é horrível.
ALA: Além disso, o prémio é estúpido. Um prémio só internacionaliza um autor quando, no passado, foi dado a outros autores importantes. Nunca concorri a um prémio. Nunca. Deus me livre. Também não lhes queria dar o prazer de não mo darem. Um escritor não concorre a prémios, a não ser que esteja à rasca. Já concorreu?
GMT: Já.
ALA: Porquê?
GMT: Porque estava à rasca.
ALA: De dinheiro?
(O dinheiro também é importante.)
GMT: É muito importante. O tempo está ligado ao dinheiro. Quando me deram o Prémio Portugal Telecom, perguntaram-me o que é que ia fazer com o dinheiro. Eu respondi que ia comprar tempo.
ALA: Devia ter dito que ia comprar um [bolo] económico e uma carcaça. Ninguém pergunta a um banqueiro o que é que ele faz ao dinheiro, mas perguntam-no a um escritor como se nós fôssemos mendigos. Parece uma tia minha que, quando dava uma esmola, dizia: «Agora não gaste tudo em vinho.»
GMT: Uma pessoa é convidada para falar meia hora e, em Portugal, isto é visto como se…
(Como se não valesse nada.)
GMT: Há uma desvalorização da palavra. E sobretudo da palavra oral.
ALA: Na Alemanha, tudo isso é pago. Aqui, à excepção dos amigos, não falo de borla para ninguém. Nem pensar. E a quantidade de vezes que me pedem para «escrever qualquer coisa»? Escreva aí qualquer coisa, umas palavrinhas para um livro meu, umas palavrinhas para aqui e para acolá.
GMT: É engraçado isso de escrever num instante. Vamos imaginar que se escreve um texto em 20 minutos. A questão é que não são apenas aqueles 20 minutos, a questão é: quem é que paga os 40 anos que a pessoa esteve a ler?
ALA: Exactamente o que aconteceu com o Picasso quando lhe perguntaram quanto tempo é que ele demorava a pintar um quadro. E ele respondeu: o tempo que demorei a pintá-lo mais todos os anos da minha vida.
GMT: Há um chupismo, um vampirismo horrível. Para os outros, parece sempre que é fácil.
ALA: As crónicas que escrevo para a VISÃO não dão trabalho nenhum, mas perco sempre um dia. E, depois, como é voltar ao ritmo do livro? E não se trata apenas de pagar aqueles textos, que são piscinas para crianças, têm sempre pé e água a dar pela cintura.
GMT: A certa altura não é o tempo que se demora a fazer... Mas voltando ao livro, penso que este livro precisa de dois tipos de leituras: uma leitura de uma certa velocidade que apanhará determinado ritmo e, por outro lado, uma leitura lenta através da qual conseguimos obter o prazer da frase. E isto é muito raro. Há livros que devem ser lidos rapidamente…
ALA: Por exemplo?
GMT: Os autores mais narrativos.
(García Márquez, por exemplo.)
GMT: Sim, não vejo que seja preciso parar numa frase de García Márquez para contemplar. Acho que isso acontece com os autores mais narrativos que põem as pessoas vidradas em acontecimentos sucessivos. A leva a B, B leva a C.
ALA: Aquilo a que Bourgois [Christian Bourgois, editor francês recentemente falecido] chamava a prosa «pas trop naturaliste». García Márquez é um admirável contador de histórias, mas o Steiner [o ensaísta George Steiner] tem razão quando diz que Simenon é o melhor.
GMT: Ele coloca-o como um dos grandes escritores…
ALA: E é um grande escritor. Gide, que normalmente tinha um gosto muito seguro, tinha um grande apreço por Simenon. E eu também tenho.
GMT: Mas o que eu acho interessante neste livro é que, se o lermos lentamente, vamos ter o prazer local do verso. Esta frase, por exemplo, é muito elucidativa para onde está a caminhar: «De maneira que fico aqui à espera porque com um bocadinho de sorte pode ser que alguma coisa aconteça.» É como se as palavras estivessem à procura dos acontecimentos.
ALA: Exactamente. Não sei como escreve, mas eu escrevo à mão…
GMT: A computador e, às vezes, à mão.
ALA: Chego a estar duas horas à espera que aquilo venha.
GMT: Noto que o movimento da escrita, mesmo corporalmente, alimenta mais escrita.
ALA: Ele pode dar a entrevista sozinho, está a dizer tudo.
GMT: A sensação que tenho é que, neste livro, o que verdadeiramente interessa são as relações. O Arquipélago da Insónia tem pai, tem mãe e tem memória. E isto basta. É brutal.
ALA: Achou-o brutal?
GMT: A brutalidade tem mais a ver com a mistura entre animais, homens e objectos. A certa altura, há muito mais humanidade num animal. É quase apocalíptico porque o homem não se distingue de toda a porcaria.
ALA: Acho que não é possível julgarmos os nossos próprios livros, mas também lhe digo que este livro foi escrito em circunstâncias muito especiais. Antes e depois da doença.
GMT: Outra frase: «Alguém que não conheço a perfumar os baús no andar de cima de um andar que não há.» Só faltava acrescentar: fazer algo que não sei o que era. Alguém que não sei quem é, a fazer alguma coisa que não sabe o que é, num sítio que não se sabe qual é. Aqui, não há mais nada para além da frase.
ALA: Tudo o que ele diz é importante e, por isso, eu só faço apartes. Num dos seus livros, Beckett escreve que «o que escrevo passa-se agora».
GMT: Em Malone está a Morrer, Beckett diz que a personagem ora se chama Joana, Antónia ou Maria. E, de facto, dar um nome a uma personagem tem um grau de arbitrariedade enorme. Aqui também existe a ideia de uma língua individual, da inteligência da linguagem.
ALA: Já várias vezes disse que o importante é que o livro seja inteligente, não o autor.
GMT: Os verbos que não estão são os que não fazem falta. Lembro-me de uma discussão com um revisor por causa de uma elisão. Mas para quê? Estar lá era apenas uma forma de mostrar que eu sabia que o correcto era estar. Não acrescentava nada.
ALA: O Gonçalo dispensa-me de abrir a boca. Estou de acordo com tudo aquilo que ele diz. E ele tem uma capacidade de leitura muito maior que a minha.
(É um bom leitor.)
ALA: Muito melhor leitor que eu.
GMT: Quase que podíamos fazer uma antologia poética do livro. É verdade que nas obras de Hemingway, por exemplo, nunca há uma frase disparatada. Mas não há frases de impacto como estas.
ALA: Hemingway é um escritor de que vamos aprendendo a gostar. Aos 20 anos, gostava. Aos 30, detestava e, agora, gosto outro vez. Uma vez em conversa com o meu agente americano disse-lhe que achava os diálogos de Hemingway muito naturais. E ele então desafiou-me a lê-lo em voz alta. É verdade que, lido em voz alta, ninguém fala assim, mas lido com os olhos toda a gente fala assim. Flaubert também lia os livros em voz alta. E eu também faço isso: leio em voz alta e com voz de desenho animado. Se a palavra não resiste, deito fora.
GMT: Há ainda a questão da violência, que foi trabalhada por escritoras como a Flannery O'Connor, por exemplo. Outra frase brutal: «Podia matá-los a ambos com a caçadeira do meu avô sem que o Deus deles se indignasse.» Acha que é preciso manter a elegância mesmo quando se corta a cabeça?
ALA: Nunca pensei nisso. Sou capaz de falar sobre os livros dos outros, sou capaz de dar uma conferência sobre a Flannery O'Connor ou sobre a Emily Brontë, mas não sou capaz de falar sobre estes livros. Tenho a sensação de que, se os compreender, mato a galinha dos ovos de ouro. Tenho medo de perder qualquer coisa. Não sei se lhe acontece o mesmo...
GMT: Até mesmo como leitor, não me interessam os livros em que percebo tudo. É exactamente isso: escrever sem saber para onde é que se está a ir.
ALA: O completo imprevisto com que, a cada passo, nos defrontamos. Como se fosse um organismo vivo independente de nós, com leis próprias. E temos que escrever para ser os melhores, temos que ter a certeza que somos os melhores. Um escritor não é bom escritor se não pensar que é o melhor. Se não for para ser o melhor, não vale a pena escrever. E depois acabamos como o Tolstoi no seu diário: lutei toda a vida para ser melhor que Shakespeare. E sou. E agora?
GMT: A megalomania é uma metodologia
ALA: Precisa de estar seguro de que é um génio. Não vou deixar que um livro me vença, não vou deixar vencer-me por um livro. Julgo que não há nenhum artista verdadeiro que não pense nisto, mesmo os falsamente modestos como Tchekhov, um escritor que admiro profundamente.
GMT: O que me parece é que é fácil fazer coisas aos 38 anos. O difícil é continuar, continuar, continuar... Porque está tudo lá fora. Há raparigas bonitas a passar e nós sentamo-nos a escrever.
ALA: Às vezes sento-me contrariado, não me apetece. Mas obrigo-me e, às nove da manhã, cá estou eu.
GMT: A parte mais difícil é mesmo sentarmo-nos.
ALA: E resistir às tentações.
Almoços de 5.971 euros no estrangeiro Os ex-administradores da Gebalis gastaram, entre Fevereiro de 2006 e Outubro de 2007, quase seis mil euros em 48 refeições "em restaurantes e hotéis de luxo ou de especial requinte gastronómico", como frisa o despacho de acusação do Ministério Público, em diversas capitais europeias e outras cidades fora da Europa. Gestores gastaram 64 mil euros em almoços O relatório da Polícia Judiciária sobre a gestão da Gebalis, entre Fevereiro de 2006 e Outubro de 2007, é devastador para a administração de Francisco Ribeiro, Clara Costa e Mário Peças, então presidente e vogais da empresa responsável pela gestão dos bairros sociais da Câmara de Lisboa.
Empresa municipal - suspeita-se da utilidade das idas a seminários
In "Correio da Manhã"
Havia um "F" a seguir a MP (Ministério Público), mas, com o alvoroço, nem me apercebi. Tinha na cabeça a contratação por Rui Rio, a 3 790 euros por mês mais IVA, da irmã do seu vice-presidente para um cargo para o qual não tem qualificações específicas, e as de filhos e sobrinhos para tudo o que é gabinete ministerial, e deixei-me levar pelo entusiasmo.
Afinal a Câmara era o Senado brasileiro, e o Executivo o de Lula. Naquela singularíssima Câmara, os "funcionários contratados (…) terão de assinar um termo de compromisso declarando não serem parentes de senadores ou servidores que ocupem cargo de chefia" e 86 parentes deste e daquele, contratados para isto e para aquilo, foram demitidos. Por cá, noutra Câmara, a do Porto, não só o Executivo contrata parentes a peso de ouro como a oposição, apesar de considerar isso imoral e ilegal, se limita a fazer um "julgamento político" e só três anos depois anuncia a "sentença".
O novo livro de Luís Sepúlveda, "A lâmpada de Aladino", com a chancela da Porto Editora, é apresentado amanhã à tarde em Lisboa. "A lâmpada de Aladino" é um dos treze contos, histórias desenroladas em vários locais do mundo, de Hamburgo ao Rio de Janeiro passando por Santiago do Chile.
Trata-se de "um livro muito esperado pelo público", disse Manuela Ribeiro, comissária das Correntes d'Escritas, o encontro anual de escritores de línguas ibéricas da Póvoa de Varzim. "É um escritor que criou público que o acompanha e está sempre atento. Relativamente a este livro, penso que há uma maior expectativa pois o anterior, ‘O poder dos sonhos’ (2006), ficou um pouco aquém do esperado". A comissária das Correntes d'Escritas conta com o escritor na próxima edição que acontecerá naquela cidade minhota de 11 e 14 de Fevereiro próximo.
António Diegues Ramos da Livraria Byblos considera que "é um escritor com público fiel e sobre o qual há sempre uma certa expectativa". "Relativamente a este título, confirma-se isso mesmo, tanto mais que um dos contos refere-se a Portugal", disse Diegues Ramos. "Desventura final do capitão Valdemar do Alentejo" é como se intitula o conto sobre um velho marinheiro que está a morrer, mas cuja acção se passa no Oceano Pacífico. "Não sendo um conto sobre Portugal, ou sobre a região alentejana, fala de nós e isso interessará ao público", acrescentou.
"O velho que lia romances de amor" (1989) foi o título que colocou o nome de Sepúlveda na ribalta literária internacional. Um livro que dedica ao amigo brasileiro Chico Mendes, activista ambiental, e que reflecte a sua aproximação desde 1987 à organização ecologista Greenpeace.
Périplo para apresentação do novo livro em Portugal
Depois da primeira apresentação amanhã às 18h30 no El Corte Inglés, em Lisboa, Sepúlveda apresentará o livro, em acentuado ritmo em várias livrarias, "devido ao interesse manifestado, a que se procurou responder da melhor forma", segundo fonte da Porto Editora.
Sexta-feira o escritor chileno fará três apresentações em Lisboa, às 12h30 na Livraria Bulhosa, ao Campo Grande, às 16h00 na Bertrand do Chiado e às 19h30 na FNAC do Colombo.
No sábado "A lâmpada de Aladino" será apresentado em Oeiras na Bulhosa pelas 12h30, seguindo o escritor para o Porto onde falará sobre estes contos na Bertarnd das Antas às 16h00 e na FNAC do NorteShopping às 19h00. Domingo estará em Braga, na Bertrand às 12h30; em Vila Nova de Gaia no El Corte Inglés, às 18h00, e à noite, pelas 21h30, no Diana Bar, na Póvoa de Varzim.
Luís Sepúlveda foi já distinguido com vários prémios, entre eles, o Prémio Gabriela Mistral de Poesia (1976), Prémio Rómulo Gallegos de Novela (1978), Primer Prémio de Novela Corta Juan Chabás (1990), Prix France de Culture (1992) e Prémio Internazionale Ennio Flaiano (1993).
Entre as suas obras, refira-se "Encontro de amor num país em guerra", (1997), "Nome de toureiro" (1994), "História de uma gaivota e de um gato que a ensinoua voar" (1996) "Patagonia Express" (1996) e "Uma História Suja" (2004).
O Jornal "Público" noticia que o Estado gastou 134 milhões de euros em consultores externos entre 2004 e 2006
Portugal está em risco de ser ultrapassado pela Ucrânia no ranking da UEFA mas, ao menos, continuamos no topo, logo abaixo do México e da Turquia, do ranking dos países com maiores desigualdades sociais. Segundo a OCDE, se houve em Portugal uma melhoria da distribuição de rendimentos entre os anos 70 e 80 (o período "gonçalvista", origem, como se sabe, de todos os nossos males), a partir daí, durante 30 anos de governos de partidos com "socialista" e "social" no nome, nunca mais pararam de crescer as desigualdades, com os ricos sempre mais ricos e os pobres sempre mais pobres.
Hoje até famílias das classes médias pedem, em número cada vez maior, ajuda ao Banco Alimentar contra a Fome. Mas nem tudo são más notícias: se os portugueses (os que têm trabalho) ganham pouco mais de metade (55%) do que se ganha na zona euro, os nossos gestores recebem, em média, mais 32,1% que os americanos, mais 22,5% que os franceses, mais 53,5% que os finlandeses e mais 56,5% que os suecos. Portanto, como Cesariny diria (cito de cor), "se há gente com fome,/ assim como assim ainda há muita gente que come".
Alexandra de Pinho
Não sei se o meu olhar distraído
memorizou aquele instante.
A denúncia marcada num rosto anónimo
mas singular -
recordo eu -
Mas o resto?...
Lembrar será possuir?
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Estavas na linha do vento,
por isso soube que eras tu.
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Na mesa, dois pratos,
dois copos,
dois garfos,
duas facas,
um candeeiro
para iluminar a conversa.
Uma garrafa de vinho
as paredes de vidro orvalhadas.
Olhámo-nos.
Sorrimos.
É quanto basta.
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Raphael o pensativo
A madrugada solta-se das
cores sujas e
na linha mais baixa do horizonte
pálidas cores desenham
os contornos da montanha e
libertam os mecanismos dos despertadores
que gritam
apelam
- horas de levantar -
já gemem, cansados,
apenas sussurram,
cansados,
- horas de levantar.
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Paulo Madeira
A cabeça.
A minha cabeça.
Ruídos incómodos e
pontiagudos.
Pequenos relâmpagos
descem pelos braços
e fogem nos dedos e
escondem-se no chão.
QUANDO O DESEJO ESCORRE
Do desejo é dito correr para o mar como água de rio. Liberdade fingida pelas margens que o contêm. Necessariamente. Inevitavelmente. A vontade submissa ao imperativo obscuro da química(?), do sangue. Como se cada um agisse sob ditado inconsciente do qual pouco sabe, mas sente a fervura nas veias. E, na dança lenta dos gestos, no escorrer do desejo fluidificado por um no outro, nos dois pelos dois, nos lábios e olhos acorrentados, o tempo esvai-se. Enquanto as bocas peregrinam, meticulosamente, no corpo que, não sendo nosso, é.
Post retirado do blog "Sem Pénis, Nem Inveja" e escrito por Teresa C.
No centenário da morte de Machado de Assis
Por Adelto Gonçalves(*)
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BONS DIAS!, de Machado de Assis. Introdução e notas de John Gledson. Campinas: Editora Unicamp, 320 págs., 2008, R$ 40,00.
COMENTÁRIOS DA SEMANA, de Machado de Assis. Organização, introdução e notas de Lúcia Granja e Jefferson Cano. Campinas: Editora Unicamp, 2008, R$ 28,00.
QUEDA QUE AS MULHERES TÊM PARA OS TOLOS, de Victor Hénaux. Tradução de Machado de Assis. Estabelecimento do texto de Ana Cláudia Suriani da Silva. Apresentação de Élide Valarini Oliver. Introdução crítico-filológica de Ana Cláudia Suriani da Silva e Eliane Fernanda Cunha Ferreira.Campinas: Editora Unicamp, 88 págs., 2008, R$ 26,00. Site: www.editora-unicamp.br
I
Um escritor que está para a literatura brasileira assim como Miguel de Cervantes (1547-1616) está para a literatura espanhola ou Léon Tolstói (1828-1910) para a russa – é assim que Machado de Assis (1839-1908) chega a 2008, ano do centenário de sua morte. Para associar-se a todas as homenagens que lhe têm sido feitas em todo o País, a Editora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) está reeditando neste ano uma série de livros do maior romancista da literatura brasileira, em edições bem cuidadas e acompanhadas por estudos, introduções críticas e filológicas e notas explicativas que ajudam o leitor a compreender melhor a época em que viveu o escritor.
É o caso de Bons dias!, coletânea de 49 crônicas publicadas por Machado de Assis na Gazeta do Rio de Janeiro, de 5 de abril a 1888 a 19 de agosto de 1889, numa média de quase três por mês. Todas começavam com a saudação “Bons dias!” e acabavam na despedida que também funcionava como assinatura-pseudônimo (“Boas noites!”). Assinadas dessa maneira, essas divertidas crônicas não foram reconhecidas como de sua autoria até a década de 1950.
Na maioria, têm um fascínio especial no que diz respeito às opiniões políticas do autor. A série coincide com um momento importantíssimo na história do Brasil — a abolição da escravatura e as vésperas do fim do Império. Além da política da época, trazem para o leitor de hoje certos temas favoritos de Machado, como a medicina popular, os neologismos e o espiritismo (que sempre combateu).
A primeira e a segunda edição deste livro estão esgotadas há muito tempo; esta terceira, atualizada, traz melhoramentos nas notas e uma nova introdução especialmente preparada por John Gledson, professor aposentado de Estudos Brasileiros da Universidade de Liverpool (Inglaterra), um dos mais argutos e fecundos estudiosos da obra machadiana e autor de três livros sobre o escritor: Machado de Assis: ficção e história (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986; 2ªed.2003), Machado de Assis: impostura e realismo (São Paulo, Companhia das Letras, 1991) e Por um novo Machado de Assis (São Paulo, Companhia das Letras, 2006).
Como as crônicas são reações imediatas ao que ocorre na cena pública, à época da abolição da escravatura o cronista Machado de Assis não podia se furtar a comentar o que lia e via nas ruas: parecia entediado ao ver a grandiloqüência daqueles que se batiam pelo fim da escravatura. Não que fosse defensor daquele regime iníquo, mas, cético, sabia que não se podia esperar nada com entusiasmo excessivo porque a abolição seria apenas a simples passagem de um relacionamento econômico e social opressivo e aviltante para outro. De propriedade, o escravo passaria a alugado. Com a desvantagem de que, quando não mais precisassem de seus serviços porque idosos, os patrões poderiam descartá-los, mandando-os às ruas sem mais nem menos.
Pelas crônicas, percebe-se também que o neto de escravos alforriados não acreditava também naquela idéia de república que parecia empolgar os mais jovens e afoitos. Preferia, isso sim, a monarquia com todos os defeitos que tinha, mas que eram sabidos e conhecidos. “Seria fácil provar que o Brasil é mais uma oligarquia absoluta do que uma monarquia constitucional”, escrevia, como a avisar que a república nasceria da oligarquia e, portanto, a mudança de regime seria mais uma troca de tabuletas, como na famosa cena do romance Esaú e Jacó. Para piorar, a república nasceria de um golpe de estado, que haveria de inocular o vírus da anarquia nas forças armadas.
Mostrando que não era um profeta de fatos consumados – expressão que lhe era cara --, Machado de Assis sabia que os regimes republicanos ofereciam oportunidades sem conta a aventureiros de todas as espécies. Em menos de quatro anos, a ditadura do marechal Floriano Peixoto seria uma prova inequívoca de que seus piores sentimentos às vésperas da proclamação da república tinham mesmo razão de ser. Superada a balbúrdia nos quartéis, viria o federalismo, ou seja, o poder exacerbado das oligarquias provinciais, sobretudo, dos cafeicultores de São Paulo. Tudo o que Machado previra.
Como observa Gledson na introdução, a exumação destas crônicas é importante porque revela opiniões nunca expressadas por Machado com tanta clareza e coerência – pois nos contos e romances estão sempre disfarçadas por muita ironia e insinuações nem sempre fáceis de captar hoje, mais de um século depois.
II
Já Comentários da semana reúne crônicas escritas entre outubro de 1861 e maio de 1862 para o jornal de perfil liberal Diário do Rio de Janeiro, a uma época em que o autor andava ao redor dos 22 anos de idade e estava longe de indicar o futuro mestre que haveria de se tornar. A série reaparece depois de uma única publicação em livro já há muito esgotada (em Obras completas, da finada Editora Jackson, do Rio de Janeiro, em 1937) e, se já deixa transparecer um pouco da ironia mordaz e fina que o caracterizaria na maturidade, a verdade é que só foi recuperada por causa do interesse que desperta toda a obra de um escritor canonizado. Escritas com o fim imediato de publicação em jornal, com certeza, nunca teriam saído da poeira dos arquivos, se dependesse da vontade de seu autor. E, de fato, não trazem o encanto das crônicas reunidas em Bons dias!.
Usando o pseudônimo Gil, Machado de Assis escreveu nove destas crônicas em outubro, novembro e dezembro de 1861. Depois, passou a assinar os textos com suas iniciais (M.A.). Na maioria delas, a preocupação é com os fatos políticos do momento, que o cronista acompanha com malícia e isenção. “(...) a crítica é afiada e não poupa endereçamentos desagradáveis aos ministros e ao governo: fatalistas, indolentes, medíocres, vulgares. Um olho atento à realidade dos fatos, o outro a comentá-los com personalidade crítica, a conversa com o leitor faz-se aqui, além de afiada, perigosa”, observam na introdução Lúcia Granja, doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp, e Jefferson Cano, doutor em História também pela Unicamp.
III
Depois de ter dividido a crítica durante muito tempo quanto a sua classificação textual (ensaio satírico ou peça de teatro?), Queda que as mulheres têm para os tolos, do belga Victor Hénaux, em tradução de Machado de Assis, ganha uma edição extremamente bem cuidada e anotada, que serve para afastar de vez as dúvidas e informações equivocadas a seu respeito que, ainda, são encontradas em pesquisa na Internet. A última vez que saiu à luz foi no livro Crônicas, XXII (Rio de Janeiro, Editora Jackson, 1953, p.-163-181).
Como bem explicam na introdução crítico-filológica as professoras Ana Cláudia Suriani da Silva, doutora em Letras Modernas pela Universidade de Oxford, e Eliane Fernanda Cunha Ferreira (1958-2007), doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais, este texto teve uma história bem controversa, desde que publicado pela primeira vez na revista carioca A Marmota, em edições de 19, 23, 26 e 30 de abril e 3 de maio de 1861, sem indicação de autor nem de que se tratava de uma tradução.
Foi o pesquisador francês Jean Michel Massa, autor de A juventude de Machado de Assis - 1839-1870 (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971), tradução de Marco Aurélio de Moura Matos de sua tese de doutorado La jeunesse de Machado de Assis (1839-1870): essai de bibliographie intellectuelle (Université de Poitiers, 1969, quem, ultimamente, sugeriu que Machado não era autor de Queda que as mulheres têm para os tolos, embora o livro publicado em 1861 pela Tipografia de F.Paula Brito, do Rio de Janeiro, deixasse claro na capa que se tratava de uma “traducção do snr. Machado de Assis”, sem se dignar a apontar o nome do autor. Era uma tradução de De l´amour des femmes pour les sots, de Victor Hénaux.
Em tese complementar, Machado de Assis traducteur, 2 vols., Université de Poitiers, 1970, o crítico francês foi além e comparou a tradução do escritor brasileiro com a quarta edição de Hénaux. Como o livro de Massa só agora foi publicado no Brasil – Machado de Assis, tradutor (Belo Horizonte, Editora Crisálida, 2008) em tradução de Oséias Silas Ferraz --, a crítica machadiana continuou ignorando olimpicamente a informação. Foi o que fizeram, por exemplo, estudiosos importantes da obra machadiana como Galante de Sousa, Lúcia Miguel Pereira e Afrânio Peixoto. E o erro se disseminou impunemente por artigos de jornais e revistas e em trabalhos acadêmicos e livros.
IV
Por desconhecimento, o texto foi considerado também peça de teatro, embora seja claramente um ensaio, como percebe quem lê apenas suas primeiras linhas. Não foi, porém, Massa quem primeiro insurgiu-se contra o equívoco. Já Amadeu Amaral em 1938, na revista Dom Casmurro, do Rio de Janeiro, já havia alertado para o fato de que o texto não era inédito nem de Machado de Assis, mas tradução. Mas, à época, poucos levaram consideração a advertência.
A ponto de Anita Novinsky em O olhar judaico em Machado de Assis (Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1990), José Raimundo Maia Neto em The Brazilian Phyrronian (West Lafayette/IN: Purdue University Press, 1994, e Ângela Canuto em Machado de Assis: memórias de um frasista (São Paulo: Lemos Editorial, 2002) considerarem Queda um texto original de Machado de Assis e o primeiro livro de sua carreira literária, como bem observaram as professoras Ana Cláudia e Eliane Fernanda na pesquisa que empreenderam.
Sem contar que Daniel Piza, no recente Machado de Assis: um gênio brasileiro (São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005), ainda assumiu uma postura hesitante, ao escrever que Queda é “provavelmente uma adaptação da obra do autor francês Victor Hénaux”. Na segunda edição do livro, de 2006, Piza corrigiu a informação, dando o texto como “uma adaptação (sem crédito) da obra do autor francês Victor Henaux”, mas continuou a chamar Henaux (sem acento) de francês, embora uma rápida pesquisa no Google tivesse sido suficiente para mostrar-lhe que o autor era belga.
Ana Cláudia e Eliane Fernanda trataram ainda de descobrir quem foi Hénaux, “um belga, jurista de profissão, que provavelmente atuava em Liège, dado serem todas as suas outras publicações relativas a essa cidade”. E levantaram que De l´amour teve repercussão na época de sua publicação na Bélgica, “uma vez que existem pelo menos quatro edições da obra, duas tendo sido publicadas num intervalo de apenas um ano”.
Para quem não conhece Queda, diga-se que se trata de um texto que defende a superioridade dos tolos sobre os intelectuais na conquista amorosa. Segundo Hénaux, os tolos saberiam aceitar tudo o que as mulheres desejam e elogiá-las, enquanto os homens de espírito acabariam por irritar as mulheres com suas elucubrações a respeito do amor. É um texto que não deixa de ser interessante, mas que teria permanecido para sempre esquecido, não tivesse tido a sorte de uma tradução de Machado de Assis.
___________________
(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
O novo livro de Maria Velho da Costa, Myra, com ilustrações de de Ilda David, estará, amanhã, disponível nas livrarias.
Edição Assírio & Alvim.
Com o título «Miguel Sousa Tavares tem as suas suspeitas sobre quem lhe levou portátil com inéditos» o Público de hoje acompanha a novela do roubo em casa do jornalista: «Miguel Sousa Tavares acredita que o roubo do seu computador pessoal da sua casa de Lisboa, durante o fim-de-semana, foi um acto direccionado para prejudicar o seu trabalho. No portátil estavam os únicos exemplares completos de duas novas obras literárias que está a escrever, um conto de viagens e uma peça de teatro. O seu editor, António Lobato Faria, da Oficina do Livro, classifica o furto como "um atentado censório, à liberdade de expressão e criação de um autor".»
Diz MST: «Tenho inimigos, haverá pessoas que gostariam que eu não escrevesse mais sobre alguns assuntos, mas fazer essa associação é excessivo. […] Posso pensar em alguns suspeitos, mas não em voz alta.»
Conta a BBC que o senador Ernie Chambers, do Nebraska (um dos estados do "corredor dos tornados", que vai do Norte do Texas ao Iowa), decepcionado com Deus, lhe pôs um processo-crime, acusando-o de provocar "morte, destruição e terror em larga escala sobre milhões e milhões de habitantes da Terra". Outros crentes deveriam, olhando o que se passa no mundo, fazer o mesmo, se não por terrorismo por denegação de justiça. Eu não sou crente, embora quando observo um gato a lavar-se ao sol, ouço Pollini tocando o 2º andamento do Concerto nº 2 para Piano e Orquestra de Brahms ou vejo Messi correr com a bola em direcção à baliza pelo meio de quatro ou cinco adversários, seja tentado a acreditar num Deus qualquer, só não sei qual.
Gente como eu responsabiliza os homens pelos efeitos das catástrofes naturais. No caso da recente tromba de água em Lisboa, não só o desleixo camarário mas também a especulação imobiliária que constrói em leitos de cheia e impermeabiliza solos. Como o devoto senador do Nebraska, o CDS, partido crente, deveria, não, como fez, exigir responsabilidades à Câmara, mas a Deus.
Há cerca de vinte anos eu dava aulas numa universidade. Um dia lembrei-me de falar de ‘A Cidade e as Serras’ – em trinta alunos, só dois tinham lido. Como era uma turma de 4º ano e de formação de professores, achei que deviam ler o livro.
Choque e pavor. Percebi depois quando uma aluna me explicou que tinha aulas de Psicopedagogia, Pedagogia, Didáctica, História da Educação, Administração Escolar, Legislação Escolar – e até uma para lhes ensinar a usar projector de slides ou retroprojector. Não tinham tempo para ler. Ou seja: sabiam como ensinar e manusear toda aquela geringonça, mas não tinham nada para ensinar. Para pôr lá dentro. Vinte anos depois, vai por aí uma grande festança com o ‘Magalhães’. Números de circo e tal. Mas duvido que saibam o que pôr lá dentro. Pobres professores.
Artigo de opinião de FJV no Correio da Manhã
Sobre o tema, em epígrafe, e sendo uma questão abordada por alguns blogers, a minha concordância com o post do LNT (A barbearia do senhor Luís).
No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite.
Suspiro?
Vôo de pássaro?
Porém nada dizia.
Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo od mortos.
E nas casas em ruína,
desprezo frio, umidade.
Porém nada dizia [...]
No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros:
meu anseio de fugir;
mulheres nuas; remoros.
Porém nada dizia [...]
Que cruel, obscuro instinto
movia sua mão pálida
sutilmente nos empurrando
pelo tempo e pelos lugares
defendidos? [...]
A pequena área da vida
me aperta contra seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecemos!
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue [...] Senti que me perdoava
porém nada dizia.
As águas cobrem o bigode,
a família, Itabira, tudo.
Poema de Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética, Dom Quixote, 2001
Há um tempo para as palavras.
Do inaudível ouvido
Tamborila a vida
Os seus altos direitos [...]
É tempo do mal ardente
E das súplicas em surdina.
Tempo de ser irmão sem terra.
Tempo de ser órfão do mundo.
Poema de Marina Tsvetáeva, extraído do Livro Depois da Rússia, edição Relógio D'Água, 2001
A OCDE divulgou, hoje, no relatório "Crescimento e Desigualdades" que Portugal é um dos países com maior desigualdade na distribuição dos rendimentos.
A Editorial Caminho vai lançar em dois volumes a edição completa da Correspondência de Eça de Queirós que chega às livrarias a 27 de Novembro.
Na passada quinta-feira abriu em Leça da Palmeira, Matosinhos, mais um centro comercial denominado "Mar Shopping". O "JN", de hoje, noticia que cerca de 80.000 (oitenta mil) pessoas visitaram , ontem, o novo espaço comercial.
Os portugueses adoram e veneram grandes espaços comerciais. Para muitos é a sua segunda casa e o seu jardim. É como se fosse um espaço público ao ar livre: a sua rua com as suas lojas, mercearias, prontos-a-vestir, restaurantes, cafés, cinemas, etc, mas mais chique. E os pais levam os filhos, os filhos levam os pais, os namorados passeiam entre outros namorados, outros carregam os seus telemóveis à cintura como acessório dos seus fatos de treino, muitos outros simplesmente passeiam pelos corredores olhando as montras fingindo que estão a passear numa avenida junto ao mar.
Não consigo entender este fascínio quase hipnótico, claustrofóbico e esquizofrénico por centros comerciais, em vez do prazer e liberdade dos espaços abertos com sol, ar, o cheiro das árvores, das flores e do mar...
A vida dos portuguesese é assim tão vazia, amorfa, cinzenta, e o centro comercial funcione como terapia? Alguém quer estudar este assunto?
Hey Jude
BEATLES
Emerson, Lake & Palmer
Lucky man
Os Estados Unidos tornaram a matar o n.º 2 da al-Qaeda no Iraque. É a sétima ou oitava vez que o matam. Não sei quantas vidas terá o homem, mas, por este andar, já não lhe hão-de restar muitas (mas só Aquele Que Não Morre o sabe), sendo difícil julgar o que é mais admirável, se o seu apego às inúmeras vidas com que o Poderoso o favoreceu para o servir se a persistência americana em dar cabo delas uma a uma. De qualquer modo, suscita perplexidade e escândalo tanto encarniçamento contra o desgraçado n.º 2. Deixando de parte o n.º 1 (que Alá o tenha bem guardado), o Exército norte-americano manifesta um desinteresse que roça a maravilha pelo n.º 3 e números seguintes. Pode acontecer que os americanos designem de "n.º 2" qualquer morto de túnica e turbante, o que explicaria que ele ora se chame Ayman al Zawahiri, ora Hamad Jama al-Saedi, ora Abu Ayyub al-Masri, ora Abu Azzam, ora Abu Qaswarah. Há também a hipótese de, morto o n.º 2, o n.º 3 passar a n.º 2, o n.º 4 a n.º 3 e por aí fora. Neste caso, até acabarem com a al-Qaeda, os americanos ainda hão-de anunciar a morte do n.º 2 aí umas 50 mil vezes.
O lugar do morto
GURU
Faz-me lembrar o grugru de um peru vaidoso e emproado que do alto do seu poleiro discursa sobre as vantagens do "maralhal" passar a comer, em vez do tradicional milho, rações tóxicas.
Nas avenidas, ruas e becos mora gente nervosa que remói as notícias que anunciam o fim do mundo. E olham por cima do ombro, com tiques de pavor e desconfiança, com receio de serem mortalmente atropelados pela crise que rola em grande velocidade.
Os sistemas mecânicos e electrónicos já não funcionam e a crise desliza desgovernada sem hipótese de controlo.
A crise é um topo de gama de uma marca de luxo comprada a prestações através de um sistema financeiro credível, sólido - responsável pela sua manutenção (está escrito no contrato assinado entre o prestamista e o utilizador do serviço) - e gerido por gente experiente e sábia. E o utilizador do serviço nem desconfiava que a crise, de rosto humano e afável, que dizia respeitar o programa das revisões, era uma vigarista que utilizava produtos e peças tóxicas e defeituosas recomendadas por engenheiros e mecânicos classificados como "os gurus XPTO".
Romance sobre a Índia dos pobres ganha Booker Prize
Os silêncios e as ausências eram rompidos, antigamente, pelo cheiro de tinta desenhado sobre folhas de papel com linhas, recatadas dentro de envelopes selados com a humidade da saliva das palavras que saiam de tinteiros de porcelana.
E a tinta escorria das penas de metal e contava as histórias de partidas e chegadas, nascimentos e mortes, baptizados e casamentos, notícias da égua e dos seus poldros, as arrobas dos porcinos, a lembrança do natal, recomendações várias, "os meninos como estão".
Antigamente era assim que se contavam as histórias da vida e dos mundos, no sossego de uma mesa enfeitada com toalhas de croché.